O incerto da brasa
O conhecimento do fogo expressa a nossa maioridade
Achamos que o fogo é o que conta. Ainda mais em forma de brasa, que parece a evocação legítima do que há de mais primitivo no fogo: o consumir-se. No entanto, o fogo é plural e a brasa, também.
Aquele gostinho especial do churrasco exposto à brasa tem um nome técnico: reação de Maillard. É fruto da caramelização da gordura.
Se você pensar que os índios tinham diferentes brasas, pode imaginar o que produziam em termos de sabores.
Os guaranis faziam vários usos: colocando carnes, peixes ou vegetais longe cerca de 1,5 metro da brasa, tinham as coisas "moqueadas", isto é, com um tipo de defumação; mas usavam também algo como a parrilha, mais perto do fogo, produzindo churrasco ou cozinhando numa panela.
E havia as coisas que iam direto sobre a brasa, envoltas ou não em folhas, resultando em pamonhas ou humitas.
Outras iam sob as brasas, enterradas e, por fim, aquelas envoltas nas cinzas ainda quentes. Havia então cinco entendimentos das brasas, que garantiam resultados que eram esperados justamente do seu controle.
Isso quer dizer que toda uma vasta culinária pode nascer do simples entendimento das brasas, deixando de lado o calor que age através de intermediários como pedras, panelas de barro ou de ferro e outros metais.
O conhecimento do fogo é uma coisa muito especial em qualquer cultura. Basta lembrar que não deixamos crianças se aproximarem. O fogo é coisa que expressa nossa maioridade. Manipulá-lo, fazendo que realize o resultado esperado, é já especialidade.
Um grande cozinheiro, o argentino Francis Mallmann, escreveu um livro, chamado "Sete Fogos", que resume toda a culinária "criolla" argentina. Graças ao controle que ele tem sobre o fogo, de suas mãos saem os melhores assados. Não só carnes e peixes, mas também legumes. A abóbora que ele assa, envolta e enterrada sob a fogueira, é considerada uma das maravilhas do mundo gourmet.
Então, o que parece simples é ainda mais complexo pela sua simplicidade, pela possibilidade de o fogo "escapar" ao controle por um simples erro de cálculo ou uma imperícia qualquer.
Quando essas coisas são gritantes, o próprio fogo nos aplica a punição, queimando a comida ou nossas mãos. Por isso, é mesmo prudente manter as crianças afastadas.
O fogo é implacável. Por essa razão, devemos ter o maior respeito e admiração por aqueles que o dominam para nos servir. O que deve ser doce ou azedo deve permanecer assim, sem que o fogo imprima seu amargor nivelador em tudo sobre o que trabalha.
É como se o alimento passasse por um túnel escuro, tendo que sair do outro lado exatamente como esperamos.
E quem conduz o alimento nessa trajetória única, que pode ser fatal, é o cozinheiro.
Sim, podemos não gostar. Basta então o olhar de decepção para que o cozinheiro perceba que não deu certo, que precisa, de novo, percorrer o caminho solitário através do fogo até o nosso prazer.
CARLOS ALBERTO DÓRIA é sociólogo, autor de "Formação da Culinária Brasileira" (edit. Três Estrelas) entre outros