A despedida

Usain Bolt

Astro jamaicano que acumulou medalhas e fãs deixa as pistas após Mundial de Atletismo depois de transformar o esporte ao longo de dez anos de domínio absoluto nas provas de velocidade

Entrevista exclusiva - Usain Bolt

‘Quero ser lembrado como alguém que venceu e fez as pessoas sorrirem’

Usain St. Leo Bolt, 30, é um raio que eletrificou e transformou o esporte mundial nos últimos nove anos.

E que, em 2017, faz suas últimas aparições.

O astro jamaicano despede-se das pistas no Campeonato Mundial de Londres, entre 4 e 13 de agosto, com o feito de ter redefinido o que é ser vencedor no atletismo.

Nenhum velocista foi, em todos os tempos, tão dominante quanto o caribenho, que na juventude dividia suas pretensões no esporte com o vício em nuggets e reggae.

Foram oito medalhas de ouro em Jogos Olímpicos, com inéditas conquistas triplas nos 100 m, 200 m e no revezamento 4 x 100 m (ele é recordista mundial de todas estas distâncias). Além disso, venceu 11 provas em Campeonatos Mundiais.

Bolt soma nove anos de domínio nas três provas em principais competições (Olimpíada e Mundial). Na única vez que deixou de levar o ouro, nos 100 m no Mundial de Daegu, em 2011, perdeu para si mesmo. Foi eliminado por queimar a largada.

Porém, reduzir Bolt a números é ver apenas a superfície. O homem mais veloz de todos os tempos foi um showman.

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Enquanto os rivais ficam tensos à espera do tiro de largada nos 100 m, ele faz caras e bocas descontraídas para em seguida alcançar velocidades máximas de até 44 km/h.

Com isso, atraiu uma publicidade sem precedentes para o atletismo e se tornou um dos esportistas mais bem pagos do mundo.

Em Londres, Bolt buscará o tetracampeonato mundial dos 100 m e o penta do revezamento 4 x 100 m –ele não disputará os 200 m, sua prova preferida.

Em entrevista à Folha, ele, que se auto-intitula uma lenda, disse que espera ser lembrado como alguém que fez as pessoas sorrirem.

E que, em uma época cujo assunto doping anda lado a lado com as grandes performances, foi soberano sem jamais ter sido flagrado.

"Tudo o que posso fazer é competir limpo e mostrar às pessoas que é possível vencer sem trapacear", afirmou.

Folha - Em retrospectiva, qual terá sido seu grande legado para o esporte e o atletismo?

Usain Bolt - Eu acho que serei lembrado como uma lenda do esporte. Alguém que venceu consistentemente, quebrou recordes e fez as pessoas sorrirem.

Você acha que conseguiu mudar o atletismo?

Eu mostrei que atletas altos podem ser bem-sucedidos nos 100 m. No passado, as pessoas acreditavam que os corredores de 100 m deveriam ser menores. Eu sinto que meu sucesso trouxe atenção para o atletismo. As pessoas assistiam para ver se eu iria vencer ou quebrar um recorde. (Nenhum campeão olímpico dos 100 m nas últimas três décadas era tão alto quanto Bolt, que tem 1,95 m. O mais baixo vencedor foi o norte-americano Maurice Greene (1,76 m), em Sydney-2000. Mas a prova também teve campeões de estatura elevada. Lindford Christie (1992) e Carl Lewis (1984 e 1988), por exemplo, medem 1,88 m.)

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O que o deixa mais orgulhoso na sua carreira? E o que você lamenta?

Eu me orgulho de todos os meus títulos, especialmente os dos Jogos Olímpicos porque se trata do maior palco para um esportista. E eu tento não me lamentar de nada.

Você sempre diz que os 200 m são sua prova favorita, e que queria bater o recorde mundial dela novamente antes de se aposentar. Não ter conseguido é uma decepção?

Eu gostaria de ter corrido a prova abaixo de 19 segundos, mas infelizmente não era para ser. Quebrar este recorde requer um longo período de treinamento sem qualquer problema de lesão. (Bolt é o detentor do recorde mundial dos 200 m desde 2009, com 19s19, mas nunca mais se aproximou da marca. Nos Jogos do Rio, ele chegou a dizer que estava em condições de batê-la, mas levou o ouro com 19s78.)

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Quanto tempo você acha que vai demorar para alguém quebrar seus recordes mundiais dos 100 m e 200 m,?

Os recordes estão aí para serem quebrados. Neste momento eles parecem intocáveis, mas nunca se sabe quando alguém pode aparecer e desafiar minhas marcas. (Nos 100 m, o recorde mundial de Bolt (9s58), também de 2009, só foi ameaçado uma vez: na final dos Jogos de Londres-2012, quando ele cravou 9s63 para levar o ouro. Nos 200 m, o também jamaicano Yohann Blake chegou a correr 19s26 em 2011, mas há anos não vive boa fase.)

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Quinze anos se passaram entre seu primeiro momento de estrelato, no Campeonato Mundial Júnior de 2002, e a aposentadoria. O quanto Usain Bolt mudou neste período?

Eu não acho que sou uma pessoa muito diferente de antes. Obviamente, amadureci e ganhei mais experiência, mas ainda sou aquela mesma pessoal. (No Campeonato Mundial Júnior de 2002, em Kingston, Bolt conquistou o primeiro grande título internacional ao vencer os 200 m em 20s61.)

Como você imagina que será este Campeonato Mundial?

Eu gostaria de encerrar minha carreira no topo. E, a partir daí, partir em direção a desafios diferentes seja em outro esporte, nos negócios ou em meus trabalhos de caridade.

Quem você aponta como seu sucessor?

Neste momento, eu acho que é uma discussão em aberto. Há alguns jovens querendo conquistar espaço e será interessante vê-los nos próximos anos.

Não há qualquer chance de você reconsiderar sua decisão de aposentadoria e competir nos Jogos de Tóquio?

Não, sem chance. Eu vou me aposentar depois do Mundial em Londres.

Você lamenta que, apesar de todo o brilho de sua era, sempre houve tanta sombra do doping?

É um assunto que aprendi a aceitar devido à história do esporte. Como eu disse ao longo de toda minha carreira, tudo o que posso fazer é competir limpo e mostrar às pessoas que é possível vencer sem trapacear. (A Wada (Agência Mundial Antidoping) costuma fazer apontamentos de que o controle antidoping feito pelas autoridades esportivas jamaicanas é falho; Bolt nunca foi pego em exame antidoping.)

Além disso, você acha que o doping muitas vezes ofusca ou põe em xeque grandes performances, inclusive as suas?

Não acho que minhas conquistas foram ofuscadas pelo doping ou por suspeitas, para ser sincero. Em todos os lugares que vou as pessoas estão verdadeiramente empolgadas e felizes por me ver.

Assim que você foi informado do caso positivo de um colega, você devolveu sua medalha de ouro do revezamento 4 x 100 m de 2008. O que perdê-la representou para você?

Eu fiquei decepcionado de ter de devolver minha medalha, apesar de não ter cometido nenhuma irregularidade. Mas, como não há muito a fazer e eu tive de devolvê-la, agora é seguir em frente. (Companheiro de Bolt na conquista do ouro no revezamento 4 x 100 m em Pequim-2008, Nesta Carter foi flagrado com o estimulante metilhexaneamina. O diagnóstico foi obtido em reanálise feita no ano passado das amostras colhidas em Pequim.)

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Quão profundamente as situações relacionadas com o doping e a corrupção na IAAF (Associação Internacional de Federações de Atletismo) danificam o esporte que você ajudou a consolidar?

Eu acredito que o novo presidente da IAAF, Seb Coe, tem feito algumas boas ações para recuperar a credibilidade do esporte e nos livrar destas histórias negativas recentes. (Após investigação de comissão independente da Wada, foi constatado doping estatal no atletismo da Rússia, potência da modalidade. As verificações fizeram com que a IAAF barrasse o país de competições internacionais, entre elas os Jogos Olímpicos do Rio. Além disso, o ex-presidente da IAAF Lamine Diack, seus filhos e outros ex-dirigentes da entidade são investigado por acobertamento de doping e corrupção.)

Em qual direção você quer conduzir sua vida após o Mundial?

Eu tenho muitas coisas alinhadas. Meus interesses de negócio, por exemplo. Eu ainda tenho muito trabalho a fazer com meus parceiros comerciais. Além disso, serei embaixador da IAAF. Também quero me dedicar a minha fundação e tenho ofertas para disputar outros esportes e ser comentarista de televisão. A curto prazo, eu planejo construir um centro médico na Jamaica para ajudar a próxima geração e curar lesões.

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