O fenômeno pop do escracho

Anna Virginia Balloussier
De São Paulo

Oito meses. A carreira dos Mamonas Assassinas durou só isso, interrompida pela morte precoce de sua trupe, num acidente de avião há 20 anos. O grupo é agora relembrado com um musical, que estreia no dia 11 em São Paulo, uma série de TV prevista para julho na Record (e, depois, na Fox) e um especial no “Arquivo N”, da Globo News, nesta quarta (2.mar).

Por que falamos deles até hoje? Quem viveu na década de 1990 sabe que a trupe liderada por Alecsander Alves, o Dinho, com roupas que homenageavam de “Chapolin” a “Star Trek”, encarnou com maestria o espírito de escracho de um país saído só dez anos antes da ditadura militar.

O primeiro e único disco, que tinha apenas 39 minutos e oito segundos e trazia a banda sob o desenho de grandes seios –já voltaremos a eles–, vendeu três milhões de cópias. Os cinco garotões na casa dos 20 anos, a maioria ex-office boy em Guarulhos (SP),estavam por todos os cantos, seja convidando o Brasil "para uma tal de suruba", no punk-fado "Vira-Vira", seja tomando as dores do ciborgue de “andar erótico” que se transforma num “ato cirúrgico”, na sci-sofrência de “Robocop Gay”. Ambas onipresentes nas festinhas infantis. Ah, anos 1990…

O ano em que estouraram, 1995, foi também o primeiro de Fernando Henrique Cardoso na Presidência. Bill Gates lançava seu Windows 95, e a Globo batia recordes de audiência com “A Próxima Vítima”. “Era impossível pensar que os Mamonas conseguiriam fazer sucesso neste grau”, diz Carlos Lombardi, que assina o roteiro da série de TV.

Se não impossível, no mínimo improvável. Afinal, Dinho, Júlio (o ruivo), Bento (com ascendência japonesa e cabelo rastafári) e os irmãos Sérgio e Samuel não tinham pedigree musical. Cresceram num conjunto habitacional de Guarulhos, o parque Cecap.

A aposta de que decolariam com o primeiro projeto musical, batizado Utopia, não passou disso aí. Venderam mal, uns cem discos. Em 1992, conheceram Rick Bonadio, produtor que também revelaria outras máquinas de hits, como Charlie Brown Jr. e CPM 22 no topo

Após cogitarem se chamar Os Cangaceiros do teu Pai e Tangas Vermelhas, o grupo foi de Mamonas Assassinas do Espaço –nome depois reduzido. Chegaram rápido ao topo.

Cobravam R$ 70 mil por show, uma fortuna para a época. Tocaram em 24 Estados e Brasília (menos Acre e Tocantins). Ganharam o Troféu Imprensa de melhor música em 1995. “Sabão Crá-Crá” foi tema de André Marques (que fez o Mocotó) em “Malhação”, na segunda temporada do novo fenômeno da Globo.

Após o acidente, o pai de Dinho, Hildebrando Alves, leiloou por R$ 95 mil a famosa Brasília amarela que aparece no clipe de “Pelados em Santos”, declaração à “pitchula” do cabelo “da hora”. “Me arrependi, porque a pessoa não cuidou direito”, diz.

Há quatro meses, recomprou peças do carro –que, segundo ele, foi desmontado num ferro-velho. Incorporou-as numa nova Brasília, estacionada em sua chácara.

O modelo original pertencia ao avô de uma ex-namorada de Dinho. Corretor de imóveis que precisava pegar muita estrada, Hildebrando sempre gostou da marca. “E, sabe como é, carro preto sujava muito, branco ninguém queria, prata não existia. A [cor] mais cheguei era a amarela.”

Já a origem de outro totem mamonesco, os peitos na capa do álbum, é incerta. A modelo Mari Alexandre, 41, conta que os Mamonas lhe disseram que seriam inspirados numa foto sua da “Playboy”. “Vou te falar, são iguais aos meus. Fiquei honrada.”

Amigo da banda “desde moleque”, André Oliveira, o Ralado, 43, defende que o busto era de outra. “Os peitos de que você está falando são na Nereide [Nogueira, ex-auxiliar de Milton Neves na TV].”

Outra polêmica envolve Marco Feliciano. Hildebrando ameaçou entrar na Justiça contra o pastor e deputado do PSC-SP. Queria acioná-lo por um vídeo de 19 anos atrás, em que o evangélico diz que “Deus fulminou aqueles que tentaram colocar palavras torpes na boca das nossas crianças”. Desistiu porque “Feliciano tem foro privilegiado”, afirma.

“A vida e a morte são atos de Deus”, diz hoje o pastor. O troco, para Hildebrando, veio quando Feliciano foi abordado por jovens num avião, que cantaram “Robocop Gay” para protestar contra projeto de lei para legalizar a “cura gay”, defendido pelo parlamentar. O vídeo dessa cena, de 2013, fez barulho na internet.

Evangélica da Assembleia de Deus, a mãe de Dinho lembrou em testemunho na igreja (gravado e publicado na internet) que o filho faria 25 anos três dias após a tragédia. “Na passagem do ano de 1995, [o filho] cumprimentou a todos, afastou-se e por mais de 40 minutos e, com as mãos erguidas, buscou ao Senhor em oração”, narra Célia Alves. Na contracapa, os Mamonas dedicam o CD a Deus, famílias, amigos, Gozales (“mexicano clandestino que arrumava nossos quartos no hotel”) e Santos Dumont, “que inventou o avião, senão a gente ainda tava indo mixar o disco a pé”.

Meu Xuxuzinho

A pedido da ‘Ilustrada’, artistas interpretam a letra de ‘Pelados em Santos’, dos Mamonas Assassinas. Assista aqui o vídeo com os atores Dan Stulbach e Mika Lins, o apresentador Rafael Cortez, o escritor Marcelino Freire e o dramaturgo Hugo Possolo

Vocalista
Alecsander Alves

Era o líder e a verdadeira alma da banda. Era conhecido por fazer imitações de personalidades. Foi assessor do vereador Geraldo Celestibo (PFL). A frase: “Em cinco anos, espero estar vivo”

Baterista
Sérgio Reoli

Foi o verdadeiro criador do grupo. Era irmão do baixista, Samuel Reoli. A frase: “A gente não bebe”

Guitarrista
Alberto Hinoto

Adorava ioiôs e chegou a ganhar algumas competições. O fato: foi o único dos Mamonas a começar um curso superior (física, na Universidade de Guarulhos)

Tecladista
Julio Rasec

Era um técnico em eletrônica. Costumava consertar computadores e equipamentos eletrônicos em geral antes de entrar para o grupo. A frase: “A gente vê as coisas do dia a dia de um jeito engraçado”

Samuel Reoli
Baixista

Samuel começou a tocar por influência do irmão. Antes de entrar para o grupo, ele cuidava de uma videolocadora, montada por ele e pelo o irmão, que funcionava em sua casa.
O fato: foi office-boy

Ouça o disco

Com a mistura de rock, brega e pagode, praticamente todas as faixas do “Mamonas Assassinas” se tornaram hits: “Pelados em Santos”, “Robocop Gay”, “Sabão Crá-Crá”, “Sábado de Sol”, “Vira-Vira”, “Chopis Centis”, entre outras.

Opinião

Se vivessem hoje, artistas sofreriam com ‘censura do bem’

Luiz Felipe Pondé

Se os Mamonas Assassinas aparecessem hoje provavelmente, não teriam carreira. Algum membro do Ministério Público careta e autoritário teria proibido muitas de suas letras em nome do bem e do “respeito” a algum grupo de ressentidos.

Aliás, bem no espírito iconoclasta dos Mamonas, eu diria que ficamos tão atentos a “censura do mal”, que esquecemos que a censura sempre se vê como sendo do bem. O mal político sabemos identificar mas hoje é o bem político que se traveste de cordeiro pra corroer a liberdade de expressão. Todo o mundo com medinho. Muita gente que atua no mundo público da cultura e do pensamento hoje é medrosinho. Pra garantir a janta e a foto, só diz o que todo mundo bacana quer ouvir. E gente bacana é sempre gente boba.

As letras dos Mamonas são, hoje, um documento histórico. “Minha pistola é de plástico (quero chupar-pa) ... Tem gay que é Mohamed tentando camuflar” (Robocop Gay). Já aqui alguém teria gritado em nome de duas “minorais oprimidas”, gays e muçulmanos. Suas letras são um documento histórico de como o Brasil encaretou. Mais vinte anos e a mediocridade será absolutamente correta. Nas escolas ninguém mais respirará, nas universidades já não se respira, na mídia teremos apenas “causas” a defender e nenhum conteúdo a se produzir.

O mundo artístico vai, aos poucos, virando um espaço sem atmosfera, onde não se tem ar pra respirar porque (quase) todo o mundo está preocupado com política e militância. Nelson Rodrigues anteviu isso quando dizia que todo artista ruim tem uma causa, mas nenhuma obra de fato. Se não bastasse ser apenas um horror por si só, isso tudo é também brega. Artista que quer ser “do bem” é, na verdade, um mau artista. Assim como poesia sincera é sempre poesia ruim, como pensava Oscar Wilde, que se vivesse hoje, seguramente, vomitaria em cima dos politicamente corretos.

E que tal esse trecho da música “Lá vem o alemão”:

"Toda vez que eu lembro de você Me dá vontade de bater, te espancar Oh meu amor Só porque ele é lindo, loiro e forte Tem dinheiro e um Escort Como modess você me trocou"

A histeria seria plena. Estímulo a violência! Preconceito contra pobre, pretos e fracos! Falta de respeito com a menstruação!

Enfim, assim como o Escort, como carro chique, atesta o passado em que viveu os Mamonas, suas letras atestam que hoje todo o mundo tem medo de todo mundo. Isso é sintoma de censura, só besta e mentiroso não vê.

Galeria dos leitores

Fãs da banda enviaram para a Folha fotos que homenageiam os Mamonas. De fotografia tirada com os integrantes a tatuagem no ombro, os admiradores de Dinho e cia. dizem que não esquecem das músicas e da irreverência do grupo