Festejado pelo governo britânico como seu maior instrumento de “soft power”, Shakespeare é hoje mais popular no resto do mundo, em países como o Brasil e a China, do que no próprio Reino Unido. O Shakespeare global que inspira a bardolatria ao redor do planeta nasceu em 5 de setembro de 1607, dia em que “Hamlet” foi representado pela primeira vez fora da Inglaterra, a bordo do Red Dragon, na costa da África, com tradução simultânea para o português. Passados 400 anos de sua morte, a influência de Shakespeare está presente no Brasil pela obra de seu maior escritor, Machado de Assis. No cinema, os filmes que dividem o posto de melhor adaptação de Shakespeare, o “Hamlet” russo de 1964 e o “Falstaff” de Orson Welles de 1965, são hoje mais acessíveis ao público brasileiro.
Há algo de podre no reino da dinamarca. William Shakespeare
Os ecos do dramaturgo pelo mundo e o reconhecimento fora da inglaterra; pesquisa mostra que mais brasileiros (79%) do que britânicos (59%) dizem compreendê-lo.
O governo do Reino Unido sabe muito bem que Shakespeare é uma arma. Em white paper, documento político que apresentou ao Parlamento há um mês, o gabinete destacou como a relação com Shakespeare exemplifica nossas intenções. Falamos da contribuição da cultura para o nosso “soft power”. No poder suave, que influencia por cultura e valores e não força, o modelo é a turnê extraordinária do Hamlet do Shakespeare’s Globe por 196 países. A compreensível, didática encenação, com atores de origens diversas, passou aqui em 2014.
E agora uma pesquisa YouGov em 15 países, divulgada pelo British Council, órgão britânico para relações culturais, mostra como dá certo: 84% dos brasileiros dizem que Shakespeare é relevante para o mundo hoje, contra 57% dos britânicos. Na Índia, são 89%. Na China, 68%.
Mais brasileiros (79%) do que britânicos (59%) dizem compreendê-lo. Na conclusão do conselho, 400 anos depois da morte, Shakespeare tem impacto positivo sobre a economia do Reino Unido e sua influência no mundo. Quaisquer que sejam os interesses políticos, eles pouco importam, rebatia Machado de Assis já no século 19. Tudo indica que Machado não acreditava nem esperava nada da política, afirma Alfredo Bosi, da USP, comentando crônica de 1896, em que ele desdenhava a turbulência política que comovia o planeta:
Um dia, quando já não houver império britânico nem república norte-americana, haverá Shakespeare; quando se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare. Que valem então as atuais discórdias? O próprio Egito, ainda que os ingleses cheguem a possuí-lo, que pode valer ao pé do Egito da adorável Cleópatra? escreveu Machado.
Como enfatizou o diretor do Globe, Dominic Dromgoole, na reta final dos dois anos de seu Hamlet, o Shakespeare global nasceu em 5 de setembro de 1607. Nesse dia, a tragédia foi representada pela primeira vez no exterior, a bordo do navio mercante Red Dragon, na África. Estava a serviço da Cia. das Índias, tida como primeira multinacional, fundada em 1599.
A empresa trouxe consequências globais por estar no coração do império nascente, diz James Shapiro, da Universidade Columbia. A peça se tornou parte das transformações culturais que ela própria abordava, escreveu ele no best-seller 1599.
Hamlet nasceu com o nascimento da globalização. Em 1607, a peça fez sua estreia noutra língua. Segundo Gary Taylor, da Universidade da Flórida e editor das obras completas pela Oxford, em português. A partir do diário do Red Dragon, Taylor afirma que essa primeira tradução simultânea foi de um intérprete da região em que o navio ancorou, então domínio português. Um homem de maravilhoso espírito e prontidão, que fala um português eloquente, anotou o capitão.
O navio havia se perdido antes, indo parar na costa brasileira. O Atlântico tinha presença maior de ingleses do que se costuma lembrar e indica influência mais antiga sobre a região, segundo Sheila Hue, da Uni-Rio. Uma expedição chegou a tomar Santos. Nela estava um amigo de Shakespeare, Thomas Lodge, cuja Rosalind inspirou Como Você Quiser.
O Shakespeare global pode ter nascido com o capitalismo, mas demorou a se firmar. Jonathan Bate, de Oxford, autor da biografia Soul of the Age (Random House, 2010), diz que mais de um século após sua morte ele ainda não era considerado superior aos contemporâneos.
Isso só foi mudar quando o ator David Garrick o restabeleceu nos palcos londrinos, com papéis como Ricardo 3º. Depois daí, Shakespeare se tornaria a base do romantismo não só na Inglaterra, mas na Alemanha. Um dos líderes alemães do movimento chegou a proclamar que Shakespeare é inteiramente nosso.
O avanço da bardolatria sobre a Alemanha e os EUA, governantes inclusive, de Thomas Jefferson a Hitler, é o foco de um dos lançamentos populares que precederam os 400 anos, Worlds Elsewhere (Henry Holt and Co.), de Andrew Dickson.
Como num livro de viagem, ele vai da conquista do Oeste americano à China atual, onde Shakespeare é Shashibiya e o primeiro-ministro se diz bardólatra. Uma febre que se acelerou com o cinema, inclusive Bollywood. Na virada do ano, ao lançar novo livro, 1606, James Shapiro procurou explicar: Tanta coisa do que nós pensamos sobre o nosso próprio mundo, inclusive as nossas concepções de raça, nação, diferença religiosa, globalismo, estava emergindo no final do século 16 e início do 17. Não é surpresa que nos voltemos para os grandes escritores daquele tempo, que reconheceram e responderam a essas mudanças tão poderosamente em seus escritos.
A despedida é uma dor tão suave que te diria Boa Noite até o amanhecer…Romeu e Julieta
Escritor brasileiro aprendeu com Shakespeare a cifrar o desconcertante em superfície serena
Em 1871 veio ao Brasil a companhia do italiano Ernesto Rossi. Pela primeira vez, em lugar de meras adaptações, encenava-se o texto de William Shakespeare. Machado de Assis não ocultou o entusiasmo no artigo Macbeth e Rossi, escrito no calor da hora: Shakespeare está sendo uma revelação para muita gente.
No ano seguinte, no prefácio de Ressurreição, seu primeiro romance, ele esclareceu: Minha ideia ao escrever este livro foi pôr em ação [um] pensamento de Shakespeare extraído de Medida por Medida. Em 1873, Machado redigiu seu ensaio mais conhecido, Notícia da Atual Literatura Brasileira: Instinto de Nacionalidade, e, para explicitar a noção-chave de certo sentimento íntimo, recorreu a argumento revelador: E perguntarei mais se (…) Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.
No conto Tempo de Crise, o personagem C. sintetizou o juízo do brasileiro: Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia compô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano. Shakespeare se beneficiou sistematicamente da especiaria alheia para a confecção do molho de sua fábrica na saborosa expressão machadiana. Praticamente todas as peças shakespearianas resultam da combinação de fontes diversas, não de enredos originais. Somente quatro textos possuem uma história imaginada pelo dramaturgo, e, mesmo nesses casos, ele pilhou aqui e ali para compor as peças.
O método Shakespeare é profundamente libertador para autores de culturas não hegemônicas, pois ele se apropriou com proveito dos clássicos e, ao mesmo tempo, estudou seus pares, tirando partido de suas ideias e soluções cênicas. Não surpreende que a história da cultura latino-americana possa ser escrita com base nas apropriações de A Tempestade, cujo exemplo mais agudo é o soneto de Machado No Alto. Machado aprendeu com Shakespeare nem tanto temas ou tramas, porém uma forma de lidar com a tradição e o contemporâneo. E ainda a arte de escrever para múltiplos públicos, cifrando, na superfície serena dos textos, possibilidades desconcertantes de leitura.
Dom Casmurro constitui uma leitura radical nem tanto de Otelo quanto de Conto de Inverno. O Rei Leontes, enlouquecido pelo ciúme, é o modelo acabado de Bento Santiago. Leia-se a segunda cena do terceiro ato: a figura de Leontes simultaneamente vítima, procurador e juiz fornece a estrutura profunda de Dom Casmurro.
No romance, no capítulo 9, A Ópera, menciona-se a teoria de Marcolino, um tenor italiano. No princípio dos tempos, o mundo foi uma ópera: Deus é o poeta. A música é de Satanás. (…). Depois de muita insistência, Deus decidiu representar a peça, criando um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira. Eis o corolário da teoria, expresso numa dicção antecipadora de um Jorge Luis Borges:
O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.
O Shakespeare machadiano é um autêntico Pierre Menard de Deus! Claro, pois no dicionário de Shakespeare/Machado, escritor é assim definido: sujeito que lê o tempo todo e, por isso, eventualmente, escreve.
Em 1993, ensaiando Hamlet para reabrir o Oficina pós-ditadura, Zé Celso foi atrás do Hamlet soviético, tido como a melhor adaptação de Shakespeare para o cinema. Foi dirigido em 1964 por Grigori Kozintsev, com tradução de Boris Pasternak e música de Shostakovich.
Depois de muito buscar, foram achadas caixas de celuloide na garagem de um ex-distribuidor russo, na Penha, zona leste de São Paulo.
Em preto e branco, sombrio e grave, é quase todo em externas, acentuando a abordagem política, de Elsinore como prisão, do Estado podre o oposto da versão freudiana de Laurence Olivier (1948). Hoje é possível vê-lo on-line, mas Kozintsev acaba de ganhar a concorrência de outro filme antes de difícil acesso.
Falstaff: O Toque da Meia-Noite (Chimes at Midnight, 1965) cruzou décadas sussurrado como o melhor Shakespeare do cinema e o melhor filme de Orson Welles, por quem o viu nos festivais europeus e na curta temporada nova-iorquina nos anos 60.
Welles dizia ser seu melhor filme. Em 2015, vencidos os últimos obstáculos na disputa pela propriedade, foi relançado com os outros que conseguiu completar a partir do bardo o premiado Othello e o problemático Macbeth. No Brasil, saíram pela Versátil.
É fácil ver o que faz Falstaff excepcional: é a atuação de Welles como o patético e dissoluto Falstaff, demasiado humano, o amigo e quase segundo pai do príncipe Hal, de Keith Baxter. A cena em que ele é renegado pelo ex-companheiro de roubos e bebedeiras, já tornado Henrique 5ë, é de tirar lágrimas.
Outra cena emblemática é da longa e violenta batalha, uma denúncia da guerra que é citada desde então em filmes do gênero. Outra ainda é Falstaff na cama, em carinhos impotentes mas apaixonados com a prostituta interpretada por Jeanne Moreau.
O roteiro é adaptado de vários textos shakespearianos, sobretudo as duas partes de Henrique 4ë, e culmina um esforço que o diretor havia iniciado adolescente, com as mesmas peças históricas.
A acidentada e fascinante trajetória de Welles com Falstaff e Shakespeare é tratada em detalhe nas 496 páginas de One Man Band (Viking, 2016), terceiro volume de sua biografia por Simon Callow.
Nele se descobre o quanto o ator Welles era inseguro diante de shakespearianos como John Gielgud que de sua parte gostou tanto do diretor ao atuar em Falstaff que o convidou para dirigi-lo em A Tempestade, projeto que não vingou.
Facetas do escritor têm múltiplas interpretações ao longo da história; hoje, ministro espanhol diz que autor veria crise no país com otimismo
A Espanha vive, nos dias de hoje, uma crise de identidade. Saindo de uma grave recessão econômica, tenta animar a nova geração num cenário em que três de cada cinco jovens não têm emprego. Vê, ainda, crescer um movimento independentista (o catalão) que ameaça redesenhar suas fronteiras.
Como se isso não bastasse, as últimas eleições terminaram num impasse. Nenhum dos partidos conseguiu a maioria necessária e, com isso, o país está há mais de três meses sem governo dependendo de um acordo entre partidos que não se entendem e sob o risco de ter novas eleições convocadas em breve.
O que Miguel de Cervantes (1547-1616), seu principal escritor e dos mais importantes da literatura mundial, diria da confusão em que estão metidos seus compatriotas? Acho que responderia de modo contrário ao que estamos fazendo. O espanhol de hoje é reclamão, vê tudo que tem a ver com o futuro do país como cinzento, desesperançado. E Cervantes não tinha apenas bom humor, era um otimista porque acreditava que todos podiam tomar as rédeas de sua própria história e, assim, enfrentar dificuldades imensas, como ele enfrentou, de modo positivo, diz José María Lassalle, 49, ministro da Cultura da Espanha, em entrevista à Folha.
Lassalle acrescenta: Cervantes sempre acreditou no diálogo e em ouvir os outros, algo que não estamos fazendo. Além disso, tinha um olhar generoso com os estrangeiros, com os muçulmanos especialmente, algo que poderia nos ensinar a lidar, por exemplo, com a crise dos refugiados que abala a Europa e faz aumentar a intolerância.
Especialistas em Cervantes e críticos literários concordam que grandes escritores clássicos são geralmente interpretados por meio das perguntas feitas por cada época.
Com Cervantes, não é diferente.Sua imagem já foi moldada para servir a diferentes leituras. Nos primeiros tempos, queriam fazer dele um exemplo da grandeza da Espanha. Então, não se falava de sua origem humilde ou das dificuldades, mas dele como um grande soldado e um verdadeiro herói romântico, conta o historiador Jean Canavaggio, da Universidade de Paris X.
Com o tempo, vieram várias gerações de biógrafos, os que se preocuparam com a questão religiosa se Cervantes era cristão velho, cristão novo ou mesmo muçulmano, os que focalizaram em sua ficha criminal ou em suas viagens e, recentemente, em aspectos de sua sexualidade.
Como há poucas esperanças de que surjam novos documentos ou registros, é preciso contar com os que já existem e com sua obra, que diz muito sobre sua personalidade.
Cada vez mais temos um retrato mais próximo de quem foi Cervantes. Um homem que teve uma vida difícil, muitas aventuras, muitas vivências. Esteve preso, foi um soldado apenas mediano jamais um herói de guerra, que teve sonhos de viajar pelo mundo, que falhou muitas vezes e se frustrou, e que conhecia os aspectos obscuros da vida humana por ter convivido com personagens à beira da marginalidade, afirma Canavaggio.
Ainda assim, admite o historiador, imensos buracos de sua trajetória ficarão para sempre sem preenchimento. Há fases longas de sua vida em que não sabemos onde esteve, ou com quem. Gosto de acreditar que, nesses períodos, Cervantes foi feliz e esteve tranquilo. Afinal, as épocas em que escreveu eram sempre quando estava em dificuldades financeiras, ou preso ou simplesmente infeliz com seu trabalho, completa.
Junto a instituições como o Instituto Cervantes e a Real Academia Espanhola, o ministério da Cultura espanhol prepara comemorações em todas as regiões do país (http://400cervantes.es) e também na América Latina (Brasil incluído).
No fundo, trata-se de uma opção não apenas cultural, mas gerada por uma transformação econômica e geopolítica. Por causa da crise espanhola dos últimos anos, muitas empresas migraram seus investimentos para a América Latina, inclusive as editoras. Hoje, já há mais pessoas que falam espanhol como língua materna fora da Espanha do que dentro dela.
Novas edições de Dom Quixote miram, portanto, esse universo mais amplo e multicultural das 500 milhões de pessoas que se comunicam em espanhol no mundo. Foram lançados, neste ano, uma nova versão oficial do Dom Quixote, a cargo do filologista Francisco Rico, obedecendo à norma culta da época.
Alguns cervantistas, porém, creem que a obra vem sendo menos lida pelos jovens justamente por conta de sua linguagem antiquada. Com essa preocupação, surgiram uma adaptação ao espanhol falado nos dias de hoje, por Andrés Trapiello, e uma versão mais enxuta, para adolescentes, pelo renomado Arturo Pérez-Reverte.
O que continua unindo os cervantistas, para além das questões de como apresentar o homem ou o texto, é aquilo que Quixote, especialmente, mas também seus outros escritos, tinham de vanguardista: o uso da metaficção, o manejo da ironia nas entrelinhas e os questionamentos sobre quem é a figura do autor.
Cervantes brinca com isso o tempo todo, diz que o que está contando é algo que encontrou nuns papéis, depois insinua que uma outra passagem é algo que ele viveu, ou que ouviu alguém contar. Brinca com seu próprio plagiário, respondendo a ele no meio de um outro livro. Afinal, quem é dono de uma história e quem pode contá-la? A pergunta é muito moderna e fica para o futuro, resume Canavaggio.
Um jovem autor catalão, Jorge Carrión, 40, não apenas acha que Cervantes influenciou para sempre a literatura, mas definiu como se dividem as novas gerações de escritores: Creio que só existem dois tipos de autores, os que se mantêm fiéis ao espírito experimental e ambicioso de Cervantes, e os que se conformam com fazer uma versão possível da novela cervantina.
Quem lê muito e viaja muito, muito vê e muito sabe Dom Quixote
Nélida Piñon, 78, é uma das escritoras brasileiras mais celebradas no mundo hispânico. Filha de imigrantes galegos, sua relação com a literatura espanhola vem desde criança. Dom Quixote é, assim, um de seus livros do peito. Em conversa com a Folha, ela falou não só da importância do livro para sua formação, mas também para o cânone literário.
Folha - Você já falou que vê em Dom Quixote uma crítica ao poder de Filipe 2ë (1527-1598). Pode explicar melhor?
Nélida Piñon - O Quixote é uma acusação à miséria espanhola no período. Cervantes mira a prepotência militar do rei. Onde havia riqueza, começam a surgir bodegões, albergues… Muitas ações do livro se passam nesses espaços.
Mas você vê uma crítica atual ao poder instituído?
Sim, ao desmedido poder que gravita em torno de si mesmo. Acho que falta a todos nós a capacidade de criticar o poder. O poder é ingrato, ele não trabalha em favor do povo. A única coisa que importa ao poder é cuidar dele próprio, das amantes, das mulheres e dos filhos.
Qual foi o seu primeiro contato com Dom Quixote?
Comecei com os livros de aventura. Tenho uma gratíssima lembrança por aqueles grandes mentirosos que me introduziram no mundo da inverossimilhança. Somos seres das peripécias. Cervantes você vai descobrindo cada vez mais. Você já pensou no milagre que é um autor se modernizar como se estivesse vivo? Ai, meu Deus, como é que o gênio lhe outorgou esse milagre? Quando você o lê, você prolonga sua existência narrativa.
O livro instala princípios narrativos e estéticos de um vigor… Quem não quer ser aventureiro? Esse é um fascínio que Quixote exerce.
Cervantes começa contando a história como um conto, mas acaba escrevendo dois volumes…
Há críticos que dizem que ele queria fazer um livro pequeno e depois o prorrogou. De todo modo, penso que toda história tem uma volúpia, um desejo de ir além dos seus limites. É como se ela dissesse: Ô, narrador! Vamos embora, porque tenho outras coisas para contar! Você não percebeu esse fio do qual você pode partir para puxar todos os fios do cordel?.
Como um clássico assim sobrevive ao tempo e às traduções. Há algo intrínseco à própria narrativa?
Tenho a impressão de que há um grande conteúdo teórico dentro de Dom Quixote. As reflexões e as considerações estéticas [de Cervantes] estão embutidas na ação. Isso ajuda o mundo. Cervantes é um contador de histórias.
Em A Camisa do Marido, você defende Dom Quixote como um pilar da civilização ocidental. Por quê?
O Quixote é uma cápsula, uma esfera, um epicentro. Faz você se dar conta da sua humanidade. Como quando você conhece um santo. Não há nada do que é humano que não esteja dentro do livro.
Vá direto à fonte. Não perca tempo com livrinhos vagabundos. Após milhões de anos, conseguimos o quinto dedinho da mão, fizemos coisas espantosas e cruéis. Somos um milagre. Podemos perder tempo com banalidade?
A liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão Dom Quixote
Não foi por falta de insistência. Entre 1582 e 1590, Miguel de Cervantes fez vários pedidos à Coroa espanhola para viajar para as Américas. Não se tratava de um desejo abstrato, o escritor-aventureiro esteve obcecado com a ideia. Postulara a cargos na Guatemala, no México e no que hoje seria a Colômbia.
Não teve jeito. A resposta que recebia era sempre a mesma: Peça algo por aqui. Chegou mesmo a ir a Lisboa, na tentativa de embarcar de qualquer jeito em algum navio para o Novo Mundo. Poderíamos ter um dos mais importantes escritores da história desembarcando em nossas praias. Porém, se isso de fato ocorresse, talvez jamais tivéssemos conhecido o Dom Quixote.
Afinal, biógrafos concordam que sua grande obra, que conta a história do fidalgo que enlouqueceu por ler muitos romances de cavalaria, é em parte fruto de sua frustração. Mas por que Cervantes queria deixar a Espanha?
Primeiro, porque se sentia desprestigiado. Achava que merecia uma recompensa por ter lutado corajosamente na batalha de Lepanto contra os turcos, em 1571, onde levou três tiros de arcabuz um deles praticamente destruiu sua mão esquerda. Iniciava-se, então, um período de andanças e dificuldades.
Após Lepanto, seguiu mais uns anos na Itália, onde já havia sido camareiro de um nobre. Após a guerra, como soldado inutilizado, entregou-se às noites nas tavernas e às bebedeiras em Nápoles.
Em 1575, ao tentar voltar à Espanha, teve o navio em que viajava abatido e ele, levado prisioneiro para a Argélia. Passaria ali cinco anos, tentando escapar quatro vezes, todas fracassadas.
Quando de fato conseguiu retornar à Espanha, teve dificuldades financeiras. Mesmo tentando diversos serviços, nada lhe garantia renda fixa.
Não se sabe quando, exatamente, começou a escrever regularmente. Em 1585, publica La Galatea e arrisca suas primeiras obras de teatro, mas não consegue emplacar.
Quando vê enterradas as expectativas de ir à América, consola-se com o posto que lhe é conferido de arrecadador de impostos e, depois, de víveres para a famosa Armada espanhola, conhecida como invencível até ser derrotada em 1588 pela Inglaterra.
Apesar de haver discrepâncias, a versão mais aceita é a de que Cervantes começou a escrever o Quixote quando esteve preso em Sevilha, a partir de 1597, acusado, supostamente, de ter desviado bens da própria Armada.
Quando o Quixote veio à público, em 1605, Cervantes já tinha 58 anos, um idoso para a época. Só então passou a conhecer algo de fama. Lançou outros livros importantes, como a coletânea Novelas Exemplares, em 1613. Dois anos depois, a segunda parte do Quixote.
Porém, em 22 de abril de 1616, fragilizado pela diabetes, morre não sem antes descrever como via o próprio fim, na dedicatória de Los Trabajos de Persiles y Sigismunda.
Quando se sonha sozinho é apenas um sonho. Quando se sonha juntos é o começo da realidade Dom Quixote
Como Cervantes e Shakespeare redigiram o manual de regras literárias modernas; Juntos, desafiaram as fronteiras do tempo
Já se passaram 400 anos desde que Shakespeare e Cervantes morreram. Juntos, eles desafiam as fronteiras do tempo e das convenções que separam a vida cotidiana da fantasia. No momento em que comemoramos os aniversários de 400 anos da morte de William Shakespeare e Miguel de Cervantes Saavedra, vale observar que, embora seja geralmente aceito que os dois gigantes morreram na mesma data, 23 de abril de 1616, na verdade não foi no mesmo dia.
Em 1616, a Espanha já usava o calendário gregoriano, enquanto a Inglaterra ainda usava o juliano, de modo que estava atrasada em 10 dias. (A Inglaterra continuou com o sistema juliano antigo de datação até 1752, e, quando a mudança finalmente chegou, houve tumultos e turbas nas ruas gritando devolvam-nos nossos dias!) Desconfio que tanto a coincidência de datas quanto a diferença nos calendários teriam agradado e muito às sensibilidades eruditas e travessas dos dois pais da literatura moderna.
Não sabemos se eles tinham consciência um do outro, mas tinham muitas coisas em comum, a começar bem ali na área do não sabemos, porque ambos eram homens cercados de mistérios; há anos faltando no registro de suas vidas e, o que é ainda mais revelador, documentos que faltam.
Nenhum dos dois deixou muito material pessoal. Muito pouco ou nada em matéria de cartas, diários de trabalho, rascunhos abandonados apenas suas obras concluídas, colossais. O restante é silêncio. Consequentemente, ambos viraram vítimas do tipo de teoria idiota que procura contestar sua autoria.
Uma busca superficial na internet revela, por exemplo, que não apenas Francis Bacon escreveu as obras de Shakespeare como também escreveu Dom Quixote (minha teoria maluca favorita a respeito de Shakespeare reza que as peças de Shakespeare não foram escritas por ele, mas por outro de mesmo nome).
E é claro que Cervantes viu sua autoria ser contestada ainda em sua vida, quando um certo pseudonímico Alonso Fernández de Avellaneda, cuja identidade também é incerta, publicou sua falsa sequência de Dom Quixote, incitando
Cervantes a escrever a verdadeira parte dois, cujos personagens têm consciência do plagiário Avellaneda e nutrem grande desprezo por ele.
É quase certo que Cervantes e Shakespeare nunca se conheceram pessoalmente, mas, quanto mais de perto você olhar as páginas que eles nos deixaram, mais ecos ouvirá.
A primeira ideia que eles compartilham, e, a meu ver, a mais valiosa, é a de que uma obra literária não precisa ser meramente cômica, trágica, romântica ou política/histórica: que, se for corretamente concebida, ela pode ser muitas coisas ao mesmo tempo.
Dê uma olhada nas primeiras cenas de Hamlet. Primeiro Ato, Cena Um, é uma história de fantasmas. Não é mais do que simples fantasia?, Bernardo pergunta a Horácio, e é claro que a peça é muito mais que isso.
O Primeiro Ato, Cena Dois, apresenta as intrigas na corte de Helsingor: o príncipe estudioso e revoltado, sua mãe que enviuvou recentemente e se casou com seu tio (Ó pressa iníqua de subir para o tálamo incestuoso!).
Primeiro Ato, Cena Três: aqui vemos Ofélia contando a seu pai cético, Polônio, o início daquela que será uma história de amor triste: Senhor, ultimamente fez-me muitas propostas de afeição. […] Mas sua insistência sempre foi de moral honrosa e digna.
Primeiro Ato, Cena Quatro, é uma história de fantasmas outra vez e há algo de podre no reino da Dinamarca.
À medida que a peça avança ela continua a se metamorfosear, tornando-se alternadamente uma história de suicídio, uma história de assassinato, uma conspiração política e uma tragédia sobre vingança. Ela tem momentos cômicos e uma peça no interior da peça. Contém alguns dos mais belos trechos de poesia já escritos em inglês e se encerra em meio a melodramáticas poças de sangue.
Nós, que viemos depois, herdamos do bardo a consciência de que uma obra pode ser tudo ao mesmo tempo.
A tradição francesa, mais severa, separa a tragédia (Racine) da comédia (Molière). Shakespeare mistura os dois gêneros, e assim, graças a ele, nós também podemos fazê-lo.
Em um ensaio famoso, Milan Kundera propôs que o romance tem dois progenitores: Clarissa, de Samuel Richardson, e A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne; mas essas duas obras de ficção enciclopédicas revelam a influência de Cervantes.
O tio Toby e o cabo Trim, de Sterne, se inspiram abertamente em Dom Quixote e Sancho Pança, enquanto o realismo de Richardson deve muito ao fato de Cervantes ter ridicularizado a tola tradição literária medieval cujas ilusões dominam Dom Quix ote.
Na obra-prima de Cervantes, assim como nas obras de Shakespeare, os tombos cômicos, como de palhaços, convivem com a altivez, o páthos e a emoção, com a libertinagem, culminando no momento infinitamente comovente em que o mundo real se afirma e o cavaleiro da triste figura reconhece que tem sido um velho tolo e louco, que procura as aves deste ano nos ninhos do ano passado.
Tanto Shakespeare quanto Cervantes são escritores autoconscientes, modernos de uma maneira que a maioria dos mestres modernos reconheceria um deles criando peças que têm alto grau de consciência de sua teatralidade, de serem encenadas, e outro criando ficção que tem consciência aguda de sua natureza fictícia, ao ponto de inventar um narrador imaginário, Cide Hamete Benengeli. Fato interessante, é um narrador que tem antecedentes árabes. E os dois gostam tanto do submundo quanto das ideias nobres, e são tão adeptos em retratar a ambos; suas galerias de pilantras, putas, batedores de carteiras e bêbados ficariam à vontade nas mesmas tavernas. Esse lado ordinário revela que ambos são realistas de modo grandioso, mesmo quando se fazem passar por fantasistas, e assim, mais uma vez, nós que viemos depois podemos aprender com eles que a magia não tem sentido exceto quando está a serviço do realismo alguma vez já houve um mago mais realista que Próspero? e que o realismo pode beneficiar-se de uma injeção de uma saudável dose fabulista.
Finalmente, embora ambos empreguem tropos que se originam em contos populares, mitos e fábulas, eles se recusam a apontar para conclusões morais, e nesse aspecto, sobretudo, são mais modernos do que muitos que os seguiram. Eles não nos dizem o que devemos pensar ou sentir, mas nos mostram como fazê-lo.
Dos dois, Cervantes foi o homem de ação, que combateu em batalhas, foi gravemente ferido, perdeu o uso da mão esquerda e passou cinco anos escravizado pelos corsários de Argel, até sua família levantar o dinheiro e pagar seu resgate. Shakespeare não tinha dramas comparáveis em sua experiência pessoal, mas, dos dois, parece ter sido ele o escritor mais interessado na guerra e no ofício militar.
Otelo, Macbeth e Rei Lear são todas histórias de homens em guerra (em guerra interior, sim, mas também no campo de batalha). Cervantes utilizou suas experiências dolorosas, por exemplo na História do Cativo, em Quixote, e em duas peças, mas a batalha na qual Dom Quixote se lança é, para usar palavras modernas, absurdista e existencial, mais que real.Estranhamente, o guerreiro espanhol escreveu sobre a inutilidade cômica de ir para a batalha e criou a grande figura icônica do guerreiro como tolo (pensamos em Ardil 22, de Heller, ou Matadouro Cinco, de Vonnegut, explorações mais recentes desse tema), enquanto a imaginação do poeta e dramaturgo inglês (como Tolstói, como Mailer) mergulhava diretamente na direção da guerra.
Em suas diferenças, Shakespeare e Cervantes encarnam opostos muito contemporâneos, assim como, em suas semelhanças, eles coincidem em relação a muito que ainda é útil para seus herdeiros.