Entenda
De Norte a Sul, por que afinal ouvimos tanto o que ouvimos?
15.dez.2017 - 01h00
Por que o brasileiro ouve tanto sertanejo, funk e gospel?
Para especialistas, porque os artistas desses gêneros surfaram melhor as novas ondas: mudanças nas formas de produzir e consumir música, novas estratégias de promoção de artistas e eventos, redes sociais e até novos valores da juventude brasileira.
O professor Jean Henrique Costa, 34, credita a ascensão da tríade à descentralização da produção, que "possibilitou novos mercados de massa que não se orientam por razões puramente estéticas".
Ele é docente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e autor de tese de doutorado em que estuda o consumo do forró eletrônico, preponderante no Nordeste.
Números revelam o real sentido de "mercado de massa". Segundo o levantamento da Folha, a cantora de "feminejo" Marília Mendonça teve 4,1 bilhões de audições nos últimos três anos. Isso equivale à soma de quase 20 artistas superpopulares, como Justin Bieber, Lady Gaga, Katy Perry e o "rei" Roberto Carlos.
Tecnologia, redes sociais e flexibilização autoral, diz Costa, expandiram mercados "fortemente performáticos, baseados em experiência, nos quais não interessa só a música, mas os shows, a festa e a economia simbólica".
Vera Regina Veiga França, professora de comunicação na Universidade Federal de Minas Gerais, e Vanrochris Helbert Vieira, mestre em comunicação social pela instituição mineira, também creditam experiência e valores pelo sucesso dos sertanejos.
No artigo "Sertanejo Universitário: Expressão e Valores de Jovens Urbanos no Brasil Contemporâneo", eles analisam o fenômeno a partir do que os fãs ouvem e vivem nos festivais e rodeios.
Segundo eles, o discurso de exaltação da ostentação ("camaro amarelo" versus velha motocicleta), do sexo como conquista, não amor, e da individualidade em oposição ao valor comunitário caiu como luva no jovem do século 21.
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IDENTIFICAÇÃO
"O sucesso do sertanejo costuma ser ligado ao interior paulista e goiano e ao agronegócio, mas sua expansão fala sobre identificações profundas: problemas amorosos, a alegria da festa", reforça Felipe Trotta, 46, professor da Universidade Federal Fluminense.
Essa visão da música como meio, não fim, também explica a ascensão do gospel, que cresce em ritmo menor, mas estável, há duas décadas.
Diretora da SIM São Paulo, evento que, em 2017, reuniu 30 mil pessoas em painéis e shows, Fabiana Batistela, 40, vê vantagens adaptativas na canção de louvor tupiniquim.
"Ao contrário do que nos EUA, o gospel brasileiro não é um estilo musical; qualquer coisa pode ser gospel se falar em Deus e sair da igreja. É um produto de dominação."
Ela assinala uma facilidade relativa dos religiosos em comparação com outros agentes culturais. "Ao contrário do dono de casa de shows, que paga impostos, Ecad, equipamento de som e banda, a igreja ocupa uma garagem, põe fiéis para tocar de graça e vira a única opção de diversão em periferias."
BOMBAR NAS REDES
No caso do funk, a chave é o entendimento dos potenciais das novas ferramentas para fazer e divulgar música.
MC Kevinho é um exemplo. Tal qual outros expoentes do funk, como MC Guimê, o jovem de Campinas (SP) é agenciado pelo produtor e empresário KondZilla, cujo canal no YouTube tem mais de 23 milhões de inscritos —eram 12 milhões em abril.
Kevinho teve 2,8 bilhões de audições nos últimos três anos —o nono artista mais ouvido do país.
O exemplo torna difícil entender que até setembro tenha tramitado no Congresso Nacional uma proposta para criminalizar o gênero.
Não se pode nem alegar novidade: em 1987, o antropólogo Hermano Vianna já contabilizara 600 bailes dedicados ao estilo no Rio, unindo "mais ou menos 1 milhão de pessoas" por fim de semana.
"Só a praia parece atrair público 'fiel' maior", escreveu no artigo "Funk e Cultura Popular Carioca", em 1990.
Se hoje o gênero expia temores ligados à violência e aos valores tradicionais, naquele momento a crítica tinha a cor do ufanismo: seria fruto de invasão destinada a impor a homogeneização cultural, como preconizada por Umberco Eco (1932-2016).
Está lá, no texto de Vianna de, reforcemos, 27 anos atrás: "Mas o que vem a ser a tal da 'cultura popular carioca'? Quem determina o que é autêntico e o que não é?"
VELHAS NOVIDADES
A jornalista e pesquisadora Debora Pill, 41, levanta outra bola: nem tudo é tão novo. "A audiência é construída a partir de estratégias velhas, incluindo o caquético 'jabá' [incentivo financeiro à divulgação de uma canção ou de um artista]. Muita gente gosta de artistas simplesmente porque alguém quer que gostem."
O sertanejo, ela diz, segue o clássico esquema de associação entre gravadoras, empresários e meios de comunicação. "O funk se apropriou disso também, mas atualizado pelo novo veículo de massa, o YouTube. E o gospel alimenta sua literalmente fiel audiência no culto de cada dia."
Jornalista e apresentadora do programa de rádio "Faro", no Rio, Fabiane Pereira, 35, reforça o papel do bom e velho rádio sobre o sucesso virtual.
Os números aferidos no YouTube, ela diz, batem com a programação dos "dials" brasileiros. "Há inúmeras rádios populares que, em um só dia, tocam dez vezes a mesma música de um mesmo artista."
Essa imposição radiofônica, diz Fabiane, é a causa de um "problema": "Temos talvez a maior variedade sonora do mundo, mas, com raras exceções, ouvimos música sertaneja do Oiapoque ao Chuí".
O pesquisador Trotta também salienta "a notável coincidência entre as músicas mais tocadas nas rádios e os vídeos mais vistos no YouTube, inclusive através de recomendação aos usuários, que são pagas". Para ele, essa regeneração do "jabá" comprova que os símbolos da nova era não estão livres "de agenciamentos de gravadoras e rádios".