Sebastião Salgado na Amazônia - Marubos

Mudou para pior a vida dos índios <b class="red">marubos</b>, mostra o produto de duas expedições fotográficas separadas por 20 anos feitas ao sul do Amazonas; eles se sentem ameaçados por movimentos recentes de caráter econômico, político e criminoso

A comida é farta na festa do macaco gordo

A comida é farta na festa do macaco gordo

Para os índios marubos, a avareza é o pior de todos os defeitos. O sovina é condenado, enquanto a pessoa generosa é sempre prestigiada. Por isso, quando celebram algo, eles capricham na fartura. Isso fica evidente na festa do macaco gordo (isso-shënya). O fausto é sinal de que os anfitriões não mediram esforços para receber bem os convidados.

A comemoração ocorre na época das chuvas, tecnicamente no verão, mas que na Amazônia é chamada de inverno, porque a sensação térmica é mais fria. Com mais água, as árvores ficam cheias de frutas, e os macacos engordam. É tempo de abundância.

Tão logo a expedição de Salgado chegou ao Maronal, um barco com 12 pessoas também chegava de uma caçada de dois dias. A quantidade de comida que trouxeram era impressionante: grandes cestos com folhas e galhos embrulhavam a carne de quatro antas e 32 macacos (de duas espécies, barrigudo e macaco-preto), além de diversos cachos de banana. Como esse grupo, muitos já tinham voltado de caçadas nos dias anteriores e outros ainda sairiam em breve.

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Quando notou a admiração do repórter diante da fartura, o líder Ivinimpapa, Alfredão, brincou: "Aqui não tem supermercado, não dá para comprar frango na esquina. Temos que caçar". Ele é o responsável pelos rituais xamânicos que vão dar proteção, coragem e sorte aos caçadores.

Um desses ritos tortura até os mais valentes: na época da caça, as pessoas que querem ter mais sorte ou produtividade no período que se inicia se submetem a picadas de marimbondos, cujo veneno vai deixá-los mais espertos e preparados para a missão. É uma prova de resistência e coragem para jovens e velhos, homens e mulheres.

Na véspera de uma caçada, o líder de uma aldeia localiza uma casa de marimbondos. Ele avisa a todos os corajosos ou necessitados, e eles se organizam para derrubar a árvore onde estão as vespas. Quando o ninho é derrubado, os insetos se alvoroçam e saem picando os agressores. As pessoas vão em direção ao cacho caído para tomarem ferroadas. Mulheres cobrem o rosto com folhas grandes para não serem picadas ali.

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"As picadas de marimbondos vão tirar o panema (azar). A gente fica mais disposto, pronto para os trabalhos que vão se tornar mais intensos a partir da época das chuvas. O veneno do inseto nos purifica", explica Wino Këyashëni, o Beto Marubo.

Ivinimpapa também oferece aos caçadores a chamada "vacina do sapo", a secreção da pele de um anfíbio que é colocada na pele de uma pessoa, causando uma reação que os índios descrevem como de aumento de atenção. O campô (veneno de sapo, em sua língua) pode também ser misturado ao rapé (pó preparado com folhas de tabaco e aspirado) e ser consumido na hora da ação. Mas isso é para "caçadores muito fortes", diz Beto.

Versos cantados ajudam marubos a manter sua mitologia viva

Alfredão, o pajé da aldeia marubo de Maronal, não entende a cultura dos homens brancos: "Soube que a Bíblia diz que a mulher surgiu da costela do homem, e que os dois comeram uma maçã e começou tudo. É meio ridículo! Outra teoria diz que o homem veio do macaco. É ridículo também. Nós acreditamos que o homem sempre existiu".

Segundo a mitologia dos marubos, o mundo foi formado pela ação de vários demiurgos (divindades responsáveis pela criação do Universo), que deram forma à Terra ao juntar os restos de muitos elementos. Um desses entes, Kana Voã, tem certo predomínio sobre os outros, mas nada parecido com o Deus monoteísta das religiões abraâmicas (israelita, cristãs ou muçulmanas).

Mas nem tudo é diferente das narrativas dos não índios. Alfredão conta uma história que remete ao dilúvio bíblico e à hipótese da conquista da América pelos Homo sapiens provenientes da Ásia.

Segundo o pajé, em tempos antigos, havia um mundo só. Todos os homens falavam a mesma língua e viviam em um mesmo lugar. Mas um dia as águas subiram, e o mundo foi dividido por um rio enorme. Alguns homens, então, fizeram uma grande ponte e conseguiram atravessar; outros permaneceram do lado de lá.

Os homens que atravessaram trouxeram a memória da língua que falavam antes, o sãinki, "que é o nosso latim", compara Alfredão, referindo-se a uma língua ritual que os pajés e os mais velhos dominam, mas os jovens desconhecem. "Os pajés rezam e cantam em sãinki", diz.

De acordo com o antropólogo Pedro Cesarino, estudioso da cultura marubo, a narrativa segundo a qual os povos foram divididos por um grande rio é comum entre diversas culturas da Amazônia.

Em outra versão, narrada no livro "Quando a Terra Deixou de Falar" (editora 34, 320 págs., R$ 64), de Cesarino, a ponte que os índios atravessam é um grande jacaré, "um monstro repleto de alimentos plantados em suas costas (entre os quais diversas espécies de pimentas)".

Nessa versão, os que primeiro atravessaram a ponte-jacaré (kape tapã, na língua dos marubos) foram os chefes e os xamãs. Eles chamaram os outros e se irritaram ao notar que os retardatários estavam distraídos, brincando e namorando na terra de origem. Quando os atrasados começaram a passar, os pioneiros cortaram a cabeça do jacaré, matando os libidinosos por afogamento.

Cesarino afirma que a mitologia dos marubos é uma das mais bem preservadas entre as culturas indígenas da Amazônia. Isso porque eles mantêm sistemas de narração em frases ritmadas que permitem a memorização de milhares de versos em sequência.

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Esses mitos em forma de poemas são chamados saiti, e sempre são cantados. "São um fenômeno singular nas terras baixas sul-americanas, nas quais, salvo engano, não há outras tradições consolidadas de narrativas míticas cantadas", explica.

Esse método mnemônico não é muito diferente da forma como foram preservados os livros clássicos da cultura europeia, como a "Ilíada" e a "Odisseia", graças à boa memória dos narradores e a rimas e métricas.

Ao contar histórias das origens de seu povo, "os velhos se referem a contatos entre nossos antigos e os incas", diz o jovem Wino Këyashëni, o Beto Marubo. A mitologia descreve esses personagens como poderosos, donos de riquezas, como terras, alimentos e instrumentos de metal.

Na história, antigos marubos viajam à casa do inca em busca de machados de metal para trabalhar nas roças. O uso da palavra inca como sinônimo de personagens poderosos é comum entre os povos pano.

Ao estudar as coincidências entre histórias de incas em mitos de grupos desse tronco, o antropólogo Oscar Calavia Sáez definiu o que chamou de "O Inca Pano", título de artigo publicado em 2000.

Para ele, a importância do inca entre os povos pano deve-se "ao boom da borracha, o ingresso massivo dos brancos no universo indígena" a partir do final do século 19, o que fez com que eles estabelecessem novos heróis antigos, como uma compensação pelo poder dos novos invasores.

O antropólogo Julio Cezar Melatti, considerado o pioneiro em estudos sobre os marubos, faz um paralelo entre a mitologia e a constituição da comunidade.

De acordo com ele, os mitos marubos sobre a origem do mundo e das pessoas afirmam que tudo foi formado de "partes de seres mortos e mutilados", exatamente como o povo, que "parece resultar da reorganização de sociedades indígenas dizimadas e fragmentadas por caucheiros e seringueiros no auge do período da borracha".

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