Sebastião Salgado na Amazônia - Marubos

Mudou para pior a vida dos índios <b class="red">marubos</b>, mostra o produto de duas expedições fotográficas separadas por 20 anos feitas ao sul do Amazonas; eles se sentem ameaçados por movimentos recentes de caráter econômico, político e criminoso

Chuvas, cobra, ataque de insetos e pernoite na selva marcam viagem a aldeia

Chuvas, cobra, ataque de insetos e pernoite na selva marcam viagem a aldeia

Os marubos vivem junto aos cursos dos rios Curuçá e Ituí e seus afluentes, que correm do sul da Amazônia em direção ao norte. Suas águas chegam ao Javari e é de lá, passando por Solimões e Amazonas, que atingem o oceano Atlântico.

A terra dos indígenas é a zona alta dos dois rios, já perto do estado do Acre. A aldeia mais ao sul do território dos marubos se chama Kumãya (pronuncia-se "cumanha"). Embora essa comunidade fique dentro da Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, seus habitantes têm no Acre os principais vínculos com o Estado e as cidades.

Em dois a três dias de trilhas pela floresta chega-se à cidade acriana de Cruzeiro do Sul, a 62 km dali.

Se a distância parece grande, ela ainda é bem menor do que a viagem de 230 km (isso em linha reta, é muito mais se for considerado o ziguezague dos rios) até Atalaia do Norte (AM), que é a sede do município, com escritórios da Funai (Fundação Nacional do Índio) e do Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), e a referência formal dos índios.

Nos pequenos barcos com motor de rabeta (a hélice fica na ponta de uma haste quase horizontal), usados pelos indígenas, essa viagem pode levar até dez dias -é uma opção apenas para quem carrega muito peso ou leva pessoas doentes.

Da comunidade de Maronal, onde Sebastião Salgado iniciou sua expedição, até a comunidade de Kumãya são gastas, normalmente, entre quatro e cinco horas de voadeira (canoa de metal com motor de popa).

Um líder histórico dos marubos, Carlos Vargas, morto em 2018, decidiu morar em Kumãya para fugir dos incômodos que ele identificava com as beiras de rio, como os mosquitos e a malária.

No quinto dia da expedição às terras dos marubos, Salgado seguiu para Kumãya com sua equipe: o assistente Jacques Barthelemy e o "assessor especial para assuntos de selva", o mateiro Agostinho de Carvalho.

À noite chovera muito. O céu estava encoberto e as águas, altas, o que é bom para a navegação, mas havia a perspectiva de mais chuva.

Partimos às 10h. Mas, 20 minutos depois, um problema no motor nos fez voltar. Partimos de novo às 10h55.

O tempo na Amazônia pode variar muito. Às 12h, choveu pela primeira vez. Logo parou, abriu um sol forte. Às 13h05, a expedição já tinha pego quatro pancadas de chuva.

Às 13h55, paramos para abastecer o motor com gasolina. Nessa hora, parecia que milhares de mosquitos seguiam o barco; assim que ele parou, fomos atacados. Logo que o galão de combustível foi trocado seguimos viagem, deixando a nuvem de insetos para trás.

Às 15h, chegamos ao igarapé Kumãya, que dá nome à comunidade. Ali faltavam apenas duas horas até o destino, informou o nosso guia, Josimar Wassimpa. Mas o curso d'água é bem estreito, muitas árvores podem ter caído com a chuva.

Dito e feito: às 15h30, nos deparamos com um tronco grosso atravessando o rio de lado a lado. Como as margens são mais altas, passamos por baixo dele e seguimos em frente até que, 12 minutos depois, demos com mais uma árvore caída, bem rente à água.

Foi preciso cortar o tronco a machadadas, um trabalho que demorou pouco mais de uma hora. Restavam duas horas até o pôr do sol. Nossa sorte é que havia parado de chover.

Recomeçamos a viagem às 16h50 e, dez minutos depois, demos de cara com outro tronco, maior. Este levou 90 minutos para ser cortado. Quando ultrapassamos mais esse obstáculo, já estava escuro. Não seria possível navegar até a aldeia de Kumãya. O jeito foi escolher um local e improvisar um acampamento para dormir na selva.

Nosso anfitrião, Wassimpa, indicou que, poucos minutos à frente, havia um antigo acampamento de caça, que deveria ter até um tapiri (abrigo coberto de palha) armado para nos abrigarmos. Seguimos navegando no escuro, iluminando o rio com lanternas para que o condutor pudesse ver o caminho.

Chegamos à beira do local do acampamento às 18h40. O percurso de cinco horas já consumira oito. Saímos do barco e fomos ao local. O tapiri estava abandonado há muito tempo, suas estacas de sustentação pareciam meio podres. Teríamos que montar uma cabana inteiramente nova, já que tínhamos lonas impermeáveis para a cobertura.

Dentro do tapiri abandonado havia um pequeno banco baixo, de madeira fina. Decidi colocar ali a minha mochila. Quando a apoiei na madeira, ela desequilibrou e caiu no chão.

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Imediatamente, Manichi, mulher de Wassimpa começou a gritar alto em sua língua. Eu não entendi, mas disse a ela: "Não se preocupe, é impermeável, pode molhar...", enquanto ela seguia gritando em direção ao marido.

Ele já veio com o facão em riste e, quase junto de minha mochila, desferiu um golpe em direção ao chão: atingiu a cabeça de uma pequena jararaca.

Deu para entender por que os índios aqui reclamam tanto de chamados acidentes ofídicos, o termo médico para picadas de cobra. Na minha segunda expedição ao Vale do Javari (a primeira foi em outubro de 2017, aos índios korubos), me vejo à frente da segunda jararaca. A pequena serpente tinha cerca de 50 cm.

Jararaca é uma palavra genérica usada no Brasil para diversas cobras do gênero Bothrops.

Três institutos brasileiros, como o Butantan, produzem antídotos para seu veneno. Mas ele precisa ser mantido gelado, e as geladeiras são raras nesse pedaço do Brasil onde há poucas fontes de energia elétrica.

Não tínhamos tempo a perder: Agostinho e Wassimpa entraram no mato para buscar estacas e forquilhas necessárias à estrutura do acampamento, que deveria aguentar redes de cinco pessoas. Enquanto isso, limpamos o terreno onde ficaria a barraca.

Cerca de uma hora depois, nosso lar estava montado, as redes, amarradas. Começou a cair aquela chuva amazônica, que perdurou até as 5h do dia seguinte.

À noite, na floresta, o chão tem uma temperatura fria, que aumenta com a sensação de umidade. Há uma intensidade de sons desconhecidos, como se uma multidão barulhenta tivesse acordado ao escurecer. Os barulhos são irreconhecíveis para quem não é do ramo. Um, para mim, era claramente um porco-do-mato - mas se tratava de um sapo, explicou Agostinho.

Quando passava pouco das 5h30, o acampamento já estava acordando. Às 6h30, estávamos novamente no rio. A chuva derrubou mais árvores. Até as 8h, ainda foi preciso cortar a machadadas mais dois troncos.

Chegamos a Kumãya às 8h10. A diferença de ambiente é marcante: a aldeia fica em uma espécie de colina acima do nível do rio, não tem mosquitos, e a temperatura é levemente mais baixa do que em Maronal.

Até os anos 1970, os marubos viviam em locais como esse. Depois, foram convencidos a mudar para as margens do rio Curuçá, mais acessíveis para os funcionários da Funai.

A aldeia tem uma única maloca e oito casas sobre pilotis em torno dela. Uma serve para guardar os remédios, que são responsabilidade do agente indígena de saúde, Cláudio Domingos.

Kumãya é rota de passagem para muitos moradores de outras aldeias que decidem ir a Cruzeiro do Sul. Também seus moradores passam longas temporadas fora, quando têm filhos em idade escolar: os pequenos vão para a escola na aldeia de Maronal; os adolescentes fazem o ensino médio em Cruzeiro do Sul.

"O que você vê aqui", diz Cláudio, "é que a falta de escola na aldeia leva as famílias para longe. O pior é no caso do ensino médio, quando os jovens são forçados a ir para longe".

Das oito famílias que moram em Kumãya, quatro têm membros que estão em Cruzeiro do Sul acompanhando filhos em idade escolar.

Segundo o antropólogo Pedro Cesarino, passar temporadas longe de casa é um elemento da cultura dos marubos: "Ao final de um tempo, todos eles voltam para casa", diz. Ou, como o antigo líder João Tuxaua disse ao jovem Beto Marubo, quando este foi estudar em Atalaia do Norte (AM), ainda adolescente: "Você vai, e volte. Sempre volte e não esqueça daqui. Eu e você vamos ser enterrados na cabeceira deste rio aqui".

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