Sebastião Salgado na Amazônia - Yawanawa

<b>Yawanawás</b> Um olho na tradição da floresta, outro conectado ao mundo, a comunidade yawanawá, do Acre, vive seu renascimento cultural e é referência em empreendedorismo &ndash;após ter sido dizimada e perseguida nos anos 1970

Vovó Alzira, da aldeia Mutum

Com terra demarcada, vento passa a soprar a favor da comunidade

Com terra demarcada, vento passa a soprar a favor da comunidade

No início dos anos 1970, quando a ditadura militar pregava a ocupação da Amazônia sob o slogan "Uma terra sem gente para gente sem terra", os yawanawás, gente que habitava aquela terra, estavam quase extintos.

Eles mal resistiram a cerca de um século do ciclo da borracha, que resultou no domínio de seu território por seringais e fazendas, na submissão ao trabalho escravo e em uma epidemia de consumo de álcool.

Apenas os mais velhos falavam o idioma yawanawá. A língua só era usada em ambiente doméstico.

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Conforme a memória dos índios, o contato com os brancos ocorreu no auge do ciclo da borracha, entre o final do século 19 e o início do 20. O líder indígena à época era Antônio Luís, morador de uma comunidade que ficava onde hoje o cacique Bira quer implantar uma outra, que se chamará Aldeia Sagrada.

Segundo Bira, os donos do seringal Kashinawá decidiram instalar sua sede no rio Gregório, na margem oposta à da aldeia de Antônio Luís. A empresa ficou ali até a demarcação da terra indígena, nos anos 1980.

O destino passou a soprar a favor dos yawanawás desde que suas terras foram reconhecidas, em 1982, e os seringalistas foram desapropriados pelo governo federal.

O atual momento positivo não é apenas um dado de sorte: os índios tiveram uma visão de futuro, se prepararam para ser globais.

Grande parte desse movimento é atribuída à liderança de Raimundo Tuinkuru (1929-2010), filho de Antônio Luís, que conduziu os yawanawás durante a ditadura militar e o processo de recuperação cultural, a partir dos anos 1980.

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Sogro do cacique Biraci, pai das pajés Hushahu e Putani (mulher de Biraci) e do líder Joaquim Tashka, Tuinkuru foi o responsável por enviar jovens à capital do Acre e ao exterior para que aprendessem a lidar com a cultura contemporânea.

Em 1982, Biraci foi morar em Rio Branco, de onde voltou dez anos depois como líder da Nova Esperança. Mais tarde, Joaquim foi estudar por cinco anos em Santa Bárbara, na Califórnia, Estados Unidos. Ao retornar, ele assumiu a liderança da aldeia Mutum.

Biraci conta que ao voltar da capital, em 1992, 99% de seus familiares eram protestantes. "As famílias não falavam mais nossa língua, os pastores tratavam nossos ritos tradicionais como diabólicos. Em um momento, com 18 anos, chamei os pastores da missão e disse: 'Vocês têm 24 horas para sair daqui'".

Ele exigiu também que todas as bíblias cristãs fossem queimadas e proibiu álcool nas aldeias. Depois, foram implantadas escolas com aulas na língua yawanawá para as crianças da comunidade.

"Chegamos ao fundo do poço em 1982. Comparado àquele momento, vivemos um renascimento cultural e espiritual", diz Joaquim Tashka, líder da aldeia Mutum. "A população cresceu e 50% das pessoas falam a língua, o que é um salto grande. Hoje nos relacionamos com o mundo, sempre de olho em nossa tradição."

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A partir de um primeiro festival, em 1982, os índios passaram a promover grandes encontros para a celebração de sua cultura, que reúnem hoje centenas de turistas. Além do prestígio, esse turismo cultural representa sólida fonte de receitas.

Em 2001, os líderes da comunidade fizeram um plano estratégico para as décadas seguintes.

"Foi uma grande reflexão sobre o que seria o nosso futuro e, neste momento, 18 anos depois, vemos que realizamos 80% do que sonhamos. Agora, estamos organizando o Plano de Vida Yawanawá, que vai projetar o futuro: como vamos fazer bom uso de nosso território? Como vamos usar as novas economias para não destruir o patrimônio? Nosso desafio agora é pensar como queremos avançar ainda mais para o futuro."

Os planos incluem a criação de uma Universidade dos Saberes Tradicionais Yawanawá, com projeto do designer paulista Marcelo Rosenbaum, apaixonado pela cultura local, a ser desenvolvido na área da antiga comunidade Aldeia Sagrada.

Yawanawá significa povo da queixada, alusão ao temido porco selvagem

Olhando o mapa da Amazônia, se o observador traçar uma reta entre o rio Guaporé, no sul de Rondônia, e Tabatinga, no estado do Amazonas –onde o rio Solimões adentra o território brasileiro, na tríplice fronteira com a Colômbia e o Peru, no extremo oeste--, vai encontrar ao longo dessa linha diagonal de quase 1.500 quilômetros uma grande lista de povos de um mesmo tronco linguístico, chamado pano.

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O tronco pano é comum em áreas do Amazonas, do Acre e de Rondônia –e também no Peru e na Bolívia.

Segundo os arqueólogos, data de quase dois milênios desde que os primeiros índios desse grupo migraram do rio Guaporé, em Rondônia, para o norte, chegando até os Andes e as margens do Solimões.

Como seus vizinhos ashaninkas, povos de língua pano devem ter mantido intercâmbio intenso com o império inca, o que explica referências, nas histórias dos yawanawás, a heróis denominados "Inka" e a um tempo longínquo "em que viviam sob domínio do "Inka". Tais referências aparecem nas memórias de outras etnias de seu tronco linguístico, como a kashinawá e a marubo.

Esse corredor do tronco pano teve origem, provavelmente, no lugar em que hoje está o estado de Rondônia, de onde um ou alguns povos de língua similar começaram a migrar em direção ao norte, há pouco menos de 2.000 anos.

Eles se espalharam em torno dos rios Javari, Juruá e Purus, sendo que alguns grupos entraram na região do Ucaialy, no Peru, até as encostas dos Andes, como explica Philippe Erikson em "História dos Índios no Brasil" (1998).

Estudos arqueológicos mostram que esses índios foram os senhores dessa vasta planície úmida até em torno do século 9 d.C., quando um ou mais grupos de língua arawak (como os ashaninkas), vindos do norte e do oeste, conquistaram territórios entre o grupo pano, separando uns dos outros.

É provável que, quando foi rompida a unidade dos povos, se tenha iniciado a formação de dialetos e o desenvolvimento de línguas diferentes. Mesmo assim, há uma homogeneidade linguística.

Na língua pano, há duas palavras para "povo" ou "gente": "nawá" e "bo". Por isso, as diversas etnias são geralmente conhecidas por esses dois sufixos em seus nomes: yawanawá, yaminawá e kaxinawá, por exemplo, ou marubo, korubo, shipibo, conibo.

Há até um mesmo nome, com terminação diferente, para dois grupos que moram em áreas distantes, os brasileiros kaxinawás, do Acre, e os cashibos, do Peru.

Os nomes pelos quais são conhecidos os povos do grupo pano são em geral aqueles que outros grupos lhes deram, frequentemente pejorativos.

É comum os índios não gostarem dos termos pelos quais são oficialmente conhecidos. "Kaxi", por exemplo, quer dizer "vampiro". Os kaxinawás ("povo do vampiro"), recentemente, adotaram outro nome oficial: huni-kuin, que quer dizer "homens verdadeiros", expressão usada por muitos povos do tronco pano para autodefinição.

Yawanawá quer dizer "povo da queixada", referência ao porco selvagem. Diferentemente de outros grupos, esses indígenas têm orgulho dessa designação: a queixada é um dos animais mais temidos da floresta por andar em bandos coesos e assim vencer seus predadores.

Segundo a enciclopédia digital "Povos Indígenas no Brasil", do Instituto Socioambiental, os grupos pano designados como nawás formam um subgrupo dessa família por terem línguas e culturas muito próximas e por terem sido vizinhos durante um longo tempo.

Quem anda pela rua na cidade acriana de Cruzeiro do Sul, referência urbana para muitos índios do Acre e do oeste do estado do Amazonas, testemunha com facilidade conversas fluentes entre kaxinawás e marubos ou, com alguma dificuldade, com yawanawás.

Os idiomas são parecidos, o que torna um falante de língua pano o tradutor preferencial para os contatos com vários outros: os kaxinawás conversam com os marubos, que falam com os matsés, que se entendem com os matis, que compreendem os korubos...

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Contra o processo de redução populacional sofrido ao longo do século 20, os yawanawás incorporaram muitos indivíduos de outras etnias do grupo pano, como araras, shanenawás, rununawás, yaminawás e katukina-panos.

Diferentemente de outros grupos linguísticos, como o tupi, que inclui etnias muito dispersas e diferentes, as do grupo pano cultivam proximidade e intercâmbio cultural. Pessoas de diferentes grupos étnicos podem conversar entre si.

O cacique Bira conta, por exemplo, que os yawanawás têm recebido dos grupos de índios xipibos e konibos, do Peru, muitas informações sobre tradições agrícolas e espécies vegetais que haviam sido esquecidas por seu povo durante os anos de processo de quase extinção.

Gavião está no mito de origem dos índios do grupo pano

Segundo o mito narrado pelo cacique Biraci Nixiwaká Yawanawá, os povos panos nasceram das penas de um gavião-real. "De seu ninho no alto de uma sumaúma, o gavião saía a caçar para alimentar os filhotes. Quando faltaram presas na floresta, passou a capturar crianças índias. Um dia, um caboclo da aldeia construiu uma escada para chegar até o ninho. Ao alcançá-lo, matou a ave e tirou suas penas, guardando-as em um cesto. Desceu e foi para sua casa. À noite, ouviu um rebuliço. Abriu o cesto, não viu nada, só as penas. Isso se repetiu por vários dias, até que em uma manhã começaram a sair do cesto crianças pulando de alegria. Cada uma dizia seu nome: Shawãdawa, Yawanawá, Kaxinawá, Xaranawá, Duwanawá, Poyanawá etc. Eram os povos da língua pano."

Projeto de Aldeia Sagrada mistura passado e futuro

Os yawanawás da comunidade Nova Esperança acalentam o plano de criação da Aldeia Sagrada, a ser erguida no local onde viviam seus antepassados até a implantação de um seringal onde, por décadas, os índios foram obrigados a trabalhar. O projeto é uma viagem ao passado e ao futuro; a pretensão é erguer no local construções inspiradas no estilo indígena tradicional, mas com recursos da arquitetura contemporânea. O responsável é o designer paulista Marcelo Rosenbaum, que pretende criar uma espécie de Minha Casa Minha Vida rural, com adaptação das regras do projeto estatal de habitação popular para as condições específicas da floresta e uso de materiais da região.

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