Sebastião Salgado na Amazônia - Yawanawa

<b>Yawanawás</b> Um olho na tradição da floresta, outro conectado ao mundo, a comunidade yawanawá, do Acre, vive seu renascimento cultural e é referência em empreendedorismo &ndash;após ter sido dizimada e perseguida nos anos 1970

Janete, da aldeia Escondido, que usa pulseira com desenhos geométricos feitos com miçangas e segura jijus pescados no rio

Primeiras pajés mulheres resgatam banhos curativos

Primeiras pajés mulheres resgatam banhos curativos

Duas mulheres fazem a fama dos yawanawás entre outros indígenas do mundo: as irmãs Putani e Hushahu. Elas são as primeiras, na história de seu povo, a se tornarem pajés.

Tradicionalmente, só os homens eram iniciados no conhecimento profundo das tradições religiosas. No começo dos anos 2000, restavam apenas três pajés entre os yawanawás, todos já idosos: Raimundo Tuinkuru e os irmãos Yawa Runi e Tatá Txanu Natasheni.

Foi nessa época que as duas filhas de Tuinkuru o procuraram para dizer que queriam receber a formação de pajé. O pai imediatamente recusou, por uma questão de gênero. Não havia a memória de mulheres pajés entre seu povo.

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Depois de um tempo, as duas voltaram a insistir na ideia. Como argumento, elas diziam que nenhum homem havia sido iniciado e que todos os conhecimentos dos xamãs poderiam ser perdidos.

Putani conta que seu pai, então, preferiu que outro pajé decidisse. Tatá foi consultado e concluiu que não havia problemas.

"Mas, para provar que mulheres poderiam resistir às agruras da iniciação, os nossos sacrifícios deveriam ser ainda maiores", continua Putani. "Meu pai disse ao Tatá: faça com elas o dobro do que faria com homens, para que ninguém duvide de que são corajosas."

E assim, em 2004, as duas mulheres iniciaram a formação, que começa com um longo jejum. Por vários dias a pessoa só se alimenta com a batata de uma planta chamada mucá, considerada sagrada.

Quem está fazendo a iniciação para se tornar pajé fica acampado na floresta, longe da comunidade. Só pode ter a companhia de quem está preparando sua dieta.

Putani e Hushahu escolheram isolar-se no local onde seus antepassados viviam no tempo do contato com os primeiros seringueiros. É o lugar denominado Aldeia Sagrada. "Neste lugar está enterrado meu avô. Ele disse que, se a gente precisasse de sua ajuda, bastaria pedir", conta.

Passados quase 15 anos daquela iniciação, o lugar agora está sendo preparado para receber uma nova comunidade. Os yawanawás vão voltar a ocupar o lugar de onde saíram no passado. À época, o local era uma área isolada na floresta.

"Nosso processo de conhecimento e cura é baseado em sonhos. Você sonha com as doenças que vai ter; o pajé sonha com as doenças que terá de curar nos outros. Por isso você precisa ficar isolado, ouvindo o silêncio. Não pode ouvir zoada. A ideia é que você ouça os passos das pessoas, o tom de sua voz. Tudo isso é revelador de como está a saúde delas, desde que você saiba ouvir os detalhes", explica Raimunda Putani, seu nome completo.

A dieta evita carnes de animais associados a características consideradas inadequadas para um líder espiritual. "A anta é um bicho pesado. Por isso, quem está no mucá não pode comer sua carne, ela deixa a pessoa pesada. Já o macaco capelão é um bicho que canta, fará bem ao pajé. O jabuti, normalmente muito desejado, anda muito devagar, e sua carne deixa os pensamentos lentos. Já peixes e aves são rápidos", explica Putani. Assim os alimentos são divididos entre os que podem ou não ser consumidos durante os vários meses de formação.

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Uma vez iniciada, Putani queria escolher um caminho próprio para desenvolver, uma técnica sua. Ela se lembrou da organização Conselho Internacional das Treze Avós Nativas, formada em torno de mulheres que são referência em culturas tradicionais. Pensou em consultá-las. "Vi um documentário sobre as Treze Avós, mas elas estavam no Canadá, e eu não poderia ir ao seu encontro. Um dia tive uma visão que me aconselhou a construir um trabalho próprio. Escolhi então duas técnicas antigas dos yawanawás que não estavam mais sendo usadas: o banho de argila e o banho de ervas. 'Faz essa cura e leva para a Aldeia Sagrada', me disse a visão. Por isso estamos voltando para cá."

Desde então, ela diz fazer rituais usando essas técnicas: "É a cultura tradicional que vivemos. Porque, se você vive como seus ancestrais, a cultura nunca acaba", diz.

Putani tinha 27 anos quando completou a formação de pajé, em 2005. Em 2006, ganhou o Prêmio Bertha Luz, concedido pelo Senado a mulheres que se destacam na luta por direitos femininos.

A história de sua irmã, Kátia Hushahu, é contada no documentário imersivo "Awavena", produzido em realidade virtual pela diretora australiana Lynette Wallworth. O filme estreou neste ano no festival Sundance e foi apresentado também no Fórum Econômico de Davos.

As pajés preencheram realmente o vazio que temiam: seu pai morreu em 2010, com 80 anos; Tatá morreu em dezembro de 2016, com 104 anos, e o também pajé Yawa Runi morreu em março deste ano, aos 106.

Etnia adota casamento entre primos cruzados

O sistema de parentesco adotado pelos yawanawás é chamado dravidiano, com casamentos entre primos cruzados: a pessoa se casa com os filhos da irmã do pai ou do irmão da mãe. Há casos de poligamia, cada vez mais raros, geralmente com um marido e uma ou mais irmãs (chamado sororato). O hábito determina que, após o casamento, o marido se mude para perto da casa da família da mulher (costume chamado de uxorilocalidade).

Bebês ganham nome escolhido pelo pai

Ao nascer, os bebês recebem um nome dado pelo pai e, às vezes, um outro, escolhido pela mãe. Ambos buscam repetir nomes de tios e tias da criança em homenagem aos parentes, por vezes já mortos. Assim, os nomes se repetem alternadamente a cada duas gerações. Hoje, os índios são registrados com um nome em português e, geralmente, os documentos oficiais incluem também o nome da etnia como se fosse o sobrenome.

Mito yawanawá explica a interdição do incesto

Os mitos servem para traduzir as grandes coisas -como a criação do mundo- e também as pequenas. O cacique Bira conta um cheio de moralidade para explicar que dois irmãos jamais podem namorar. "Um dia, uma menina reclamou à mãe que todas as noites alguém ia a sua cama no escuro para bulir e brincar com ela. A mãe recomendou à filha fazer uma tintura de jenipapo e passar no rosto todo para marcar o buliçoso. Então, no dia seguinte, o irmão da menina desapareceu. Quando o encontraram, ele estava pintado de jenipapo. Foi condenado à morte e teve a cabeça cortada. A cabeça rolou e correu em direção à mãe. Ali, no chão, a cabeça do índio pediu água. A mãe disse que não poderia ajudá-lo. O índio jurou então uma vingança: iria morar na Lua e, a partir daquele dia, a primeira relação de toda menina deveria ser com ele. As mulheres sangrariam sempre após essa primeira relação. Esse seria o sinal de que elas podiam namorar a partir daquele momento."

Quem flerta com mulher grávida recebe castigo

Um rapaz aparece na casa do cacique Biraci reclamando de um terçol. Bira pergunta a ele: "O que você andou fazendo?". Em seguida se volta aos demais e explica: "Quando um homem paquera uma mulher grávida, fica com terçol".

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