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Tradição dos povos ribeirinhos levada por escravos para a região do Vale do rio Guaporé, na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, o ritual acontece há 121 anos ao longo do rio

Nasci em Rondônia, mas cresci na desorganização gerada pela extinção do Território Federal do Guaporé. Na escola, aprendi sobre o pouco de regional que tem o Estado, com suas diferentes culturas e, ao mesmo tempo, sem cultura própria. Virei fotógrafo, logo depois fotojornalista. Já em São Paulo, queria mostrar o que existia naquele lugar desconhecido do país, histórias perdidas em meio a mudanças de nome e de tempo. No Sudeste, mal sabem diferenciar as siglas RO e RR.

Com 121 anos, o festejo do Divino Espírito Santo no Vale do Rio Guaporé é a manifestação religiosa mais antiga da região e seu ritual segue ensinamentos transmitidos de pai para filho. O choque imagético causa frenesi nas pequenas cidades por onde passam os romeiros, mas o registro histórico é deixado de lado. A falta de documentação acerca da festa capturou minha a atenção; poucos fotógrafos acompanharam a romaria. Os organizadores batalham pelo título de patrimônio imaterial da União, concedido pelo IPHAN.

Martelei três anos em cima da pauta, considerada “luxo” nos tempos de jornalismo rápido e sem dinheiro para grandes histórias. Juntei férias e folgas e, com recursos próprios, parti para a viagem de quase dois meses com moradores do vale do rio Guaporé, descendentes de escravos e indígenas. Ali, eu e minha câmera fomos aceitos de volta à casa.

Avener Prado
Enviado especial

São 9h de uma quarta-feira cinza e úmida de março. Ao lado da pequena igreja do Divino Espírito Santo, 26 homens e 8 meninos, com idade entre 11 e 70 anos, formam um círculo no meio de um descampado. Mãos postadas em frente ao corpo, baixam a cabeça enquanto rezam apreensivos. O ar está carregado e prenuncia a possibilidade de chuva. Ao redor do grupo não se vê nem mesmo um pequeno arbusto se mexendo. Não venta, e a chuva não chega.

No centro da roda, um resumo dos maus pensamentos, ações e pecados virou cinza. Ali na floresta amazônica, a 12 horas de viagem de Porto Velho, cada um deles escreveu em um pequeno papel seus pecados mais secretos. Dali, partem para 58 dias de romaria, na maior parte pelos rios da região, com um total de 1.286 km floresta adentro.

Tencomerem Orowaramxiyim, 25 anos, agricultor, indígena da aldeia Sagarana, antes de 2015 tentou por cinco anos integrar a romaria. Acostumado a passar até três dias caçando, estranha ficar tanto tempo viajando. Não consegue dormir, nunca ficara tanto tempo longe da família. “Ten”, como é chamado por seus colegas, está cumprindo promessa pela saúde de sua mulher, que sofre de depressão. Ele é um dos 12 homens que irão remar -- o número remete ao dos apóstolos de Cristo. Para iniciar seu trabalho como remeiro, ele tem que se purificar mentalmente e se concentrar no trabalho, que daqui exigirá muita capacidade física e emocional.

Na canoa em que irão viajar, uma cobertura precisa ser colocada. Para isso, tem que aprender onde buscar palha, geralmente em lugares repletos de formigas “saca saia”, conhecidas pela rapidez em subir nas pernas da vítima e pela picada “de fogo”. Ali eles devem escolher o melhor broto para a cobertura da “carité” ("igreja", na linguagem indígena, nome dado ao pequeno barco que vão usar para entrar nas comunidades).

Toda a preparação para a viagem é chamada de “catequese”, período em que estudam a liturgia e os costumes do festejo, que ocorreu ao longo desses mais de cem anos, sem falhar nenhum. Os participantes são estimulados a conviver e a entender as diferenças culturais que carregam.



O desgate sofrido por romarias passadas é sentido ano a ano. Pouco antes da partida, o motor do Mestre Thiago -- rebocador que empurra todo o conjunto de barcos -- quebrou. O conserto feito às pressas durante a catequese gerou ainda mais tensão no grupo. Este, no entanto, é apenas o começo dos problemas que esses homens estão dispostos a enfrentar para demonstrarem sua fé.

Alguns tremem, outros choram. No início da romaria o único barulho é o produzido pelo tremular das bandeiras do Brasil e da Bolívia na popa da embarcação. Aguardando o momento certo de entrar em uma comunidade ribeirinha, os remeiros agarram galhos na beira do rio para impedir que a correnteza os leve. Eles esperam o estampido da “ronqueira”, que marca o início do ritual, embalado por um lento e triste canto dos quatro“proeiros”.

Com meio corpo submerso nas águas escuras do rio Baures e velas acesas nas mãos, 18 devotos aguardam a chegada da romaria na comunidade Nueva Brema (a 110 km de Magdalena), na Bolívia. Todos estão ali por gratidão ao Divino, cumprindo promessas ou apenas por respeito. A cena se repete na maioria das comunidades por onde passam os fiéis.

Em Nueva Brema, onde eles passariam 48 horas, a rotina que vai se impor em meio à população de cerca de 300 pessoas será de trabalho, reza e silêncio. As estrelas se refletem no rio, como se céu e água fosse uma coisa só.

Muito menor será o local da próxima parada. Iluminados por velas, devotos esperam pelos fiéis, desta vez em terra firme. Porto Frederico é uma "vila" de uma casa só e apenas quatro moradores. Se faltam habitantes no vilarejo, sobram mosquitos -- o que faz com que o ritual à primeira vista lembre a autoflagelação, pois os devotos se estapeiam enquanto rezam tentando fugir das incessantes picadas.

No lado brasileiro da rota, a precariedade e a falta de estrutura dos locais não são menores. Costa Marques (a 714 km de Porto Velho) é a principal cidade da romaria. Ali estão o maior número de fiéis e a Basílica Menor do Divino. Nomeada com autorização do papa Bento 16, em 2011, a igreja tem o formato de uma pomba, representando a imagem do Divino Espírito Santo.

Apesar da importância religiosa, a cidade de pouco mais de 13 mil habitantes tem um dos menores IDHs do Estado (0,6). Com uma renda per capita que não passa dos R$ 370, a maior parte da população vive em casas de madeira à beira do rio.

Um de seus moradores, Mauricio de Lima Acácio, é o sorteado para receber os romeiros. Seu velho terno marrom já não cabe tão bem quanto antes, mas foi caprichosamente preparado para a cerimônia. Ao seu lado, Nancy Suares de Souza também escolheu sua melhor roupa, um vestido branco com rendas nos braços, mesmo que nos dias de inverno as temperaturas atinjam facilmente os 30ºC. Usar roupas assim é um sacrifício a mais em prol da demonstração da religiosidade. Nancy não tem permissão para ser romeira; ela, como as outras mulheres, só participa dos festejos em terra, na organização e na recepção aos fiéis.

Apesar da pobreza, as mesas são fartas em todas as comunidades que recebem os romeiros. Os devotos oferecem bois, porcos, galinhas, peixes e tartarugas. Todos comem de graça. Quem oferece o almoço, em geral, o faz por devoção. As famílias chegam a disputar a oportunidade de proporcionar a alimentação.

O sacrifício de Rosicleia Reis, em Porto Murtinho (a 621 km de Porto Velho), é de outra ordem. Com a coroa de fitas, levada pelos romeiros sobre a cabeça, a jovem caminha de joelhos por cem metros, do porto à igreja.

Os romeiros enfrentam longas jornadas de trabalho, de em média 13 horas por dia. Caminhar pelas ruas da comunidade, visitando casa por casa, está entre suas funções. As caminhadas seguem a cadência do toque da caixa e do violão. Durante a noite, as imagens do Divino nunca ficam no escuro - estão sempre iluminadas por velas.

Tomar banho no rio é, muitas vezes, uma necessidade. Poucos lugares têm estrutura para alojar todos os fiéis.

Novenas são celebradas todas as noites. Durante uma hora, rezam orações que atravessam gerações -- mesmo que não haja vivalma para acompanhá-los. Rezam por pelo menos três horas por dia. Sempre em horários estipulados, param seus afazeres para orar, cercados de gente das comunidades ou solitários no meio dos rios.

Munida de celulares e câmeras, a população dos locais por onde a romaria passa registra tudo. Alguns nem gravam, só empunham os telefones, símbolo de status em lugares em que muitas vezes nem há energia elétrica.

Momentos de lazer são poucos. É proibido até jogar futebol. Algumas crianças chegam a ser punidas por brincadeiras fora de hora. O castigo serve para fortalecer a fé; elas são postas de joelhos durante a reza na novena. Nos poucos momentos de folga, os romeiros organizam seus pertences, lavam as roupas, engraxam sapatos e se dedicam a cuidados de higiene pessoal, como ter o cabelo cortado curto, padrão entre eles.

No último dia da caminhada, quando se iniciava o fim da romaria, após 58 dias de trabalho, uma música especial guardada durante todo o percurso é cantada. Todos caem no choro e se abraçam. Era o adeus da "chata" Dalila -- chata é o nome dado a esse tipo de embarcação, uma casa para os romeiros durante a viagem.

Em Pimenteiras do Oeste (a 791 km de Porto Velho), pequena cidade de 2.300 habitantes, vizinha a Corumbiara, ainda hoje marcada pelo massacre no acampamento do MST na fazenda Santa Elina que resultou na morte de 12 pessoas na década de 1990, centenas de moradores e visitantes se aglomeram para a última festa.

Todo o dinheiro arrecadado nos 58 dias de peregrinação que percorreu mais de 2.400 km em 38 comunidades, cruzando o território de dois países, será entregue ao Imperador e à Imperatriz da comunidade, João de Brito e Sebastiana Dantas, sorteados pela irmandade do Divino. Eles serão responsáveis pela organização da festa religiosa, inclusive o festejo final, com duração de cinco dias e refeições gratuitas que incluem carnes de porco, frango, boi e carneiro.

Apesar da fé demonstrada pela população ribeirinha que recebe os romeiros, o número de devotos míngua ano após ano. Atraídos por religiões neopetencostais, cada vez mais presentes nas comunidades, os católicos diminuíram expressivamente. “Este ano não tem nem a metade da metade dos participantes do ano passado”, afirma Zénóbio Mendes, mestre da romaria.

Numa típica noite amazônica, com chuvas fortes e rápidas, começa o momento mais esperado para todos. Um caule de açaí de 23 metros de altura é erguido acima dos ombros dos devotos, passando de mão em mão. Somente os homens podem tocar o tronco de palmeira recém-extraído do pouco que resta de mata nativa na região, repleta de fazendas de soja e gado --é a tradição da festa.

Em meio a gritos e correria, o mastro que simboliza a elevação do Divino Espírito Santo circula pelas ruas principais da comunidade. No local demarcado para sua instalação, suportes de madeira são usados para colocar o mastro em pé, num ângulo de 90 graus.

Centenas de velas circundam a base do caule. Muitas são trazidas de longe, como forma de agradecer as bençãos alcançadas. Quando a próxima Páscoa chegar, algumas delas ainda estarão no mesmo lugar.

Créditos:
Fotografia e Reportagem
Avener Prado
Edição de fotos
Diego Pardguschi; Daigo Oliva
Edição textos
Emilio Santanna; Fabio Victor; Lucas Ferraz
Fotografia
Edição: Fabio Marra
Editor adjunto: Marco Ankosqui
Tratamento: Edson Sales; Thiago Almeida
TV Folha
Edição: Camila Marques
Edição de Video: Bia Bittencourt
Finalização: André Felipe; Douglas Lambert
Arte
Edição: Thea Severino
Coordenação: Mario Kanno
Design e programação: Lucas Zimmermann
Diagramação (impresso): Ailson Rolemberg
Infografia Mapas: Fabi Martins
Ilustríssima
Edição: Marcos Augusto Gonçalves
Editora Adjunta: Francesca Angiolillo
Redatora: Úrsula Passos