Foto: Marlene Bergamo

POR MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Mais do que um ponto de encontros furtivos e confraternização de rapazes, o apartamento alugado por Oswald de Andrade na rua Líbero Badaró foi por um período uma espécie de laboratório do nosso “modernismo plantation” —uma “boutade” conceitual que cunhei para designar o florescimento de ideias e obras modernas na São Paulo enriquecida pela lavoura do café. O experimento marcante que se montou naquele “site specific” foi o “O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo...”, o interessantíssimo livro-caderno produzido coletivamente pelos frequentadores do “covil”.

 

À época, Oswald, 28, uma das “crianças inteligentes” da elite abastada de São Paulo (a expressão é de Monteiro Lobato) já passara longos meses na Europa, acumulava casos amorosos mirabolantes e tinha um filho.

 

As experiências do “Perfeito Cozinheiro” certamente o estimularam no desenvolvimento  de uma escrita mais radicalmente modernista, que apareceria com todas as letras em “Memórias Sentimentais de João Miramar”, lançado em 1924, mas ensaiado durante anos.

 

Quando o cadernão coletivo da garçonnière começou a ganhar forma, em maio de 1918, São Paulo já tinha assistido à “Exposição de Arte Moderna Anita Malfatti”, inaugurada em 12 de dezembro de 1917.

 

A mostra, como se sabe, reunia trabalhos de pinceladas expressionistas da jovem artista que, depois de estudar em Berlim, retornara, havia pouco, de uma temporada em Nova York.

 

Foi a partir de 1920 que a agitação do grupo modernista de São Paulo, já presente em cena, se tornou mais agressiva, estridente e organizada

 

As obras, muitas das quais estariam na Semana de 22, eram consideradas audaciosas no ambiente provinciano das belas-artes paulistanas. O vernissage atraiu curiosos e representantes da nata do meio artístico, da sociedade e da política paulista.

 

Da mesma forma que a exposição, entrou para a história o impiedoso ataque de Monteiro Lobato (publicado em livro dois anos depois, com o título “Paranoia ou Mistificação”) às pinturas de Anita, vistas como exemplos de uma nova escola de artistas com “cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses”.

 

Embora mantivesse relações amistosas  com Oswald, Lobato aproveitou o embalo do artigo, publicado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, para atacar as inclinações novidadeiras que se insinuavam em seu colega de garçonnière. Observou que também na literatura começavam a aparecer “furúnculos dessa ordem”, graças “à cegueira de certos poetas elegantes, apesar de gordos”.

 

Oswald, dos futuros modernistas,  foi o único a responder à crítica de Lobato, num texto publicado pelo “Jornal do Comércio” em 11 de janeiro de 1918. O rechonchudo Miramar considerava natural que do “acanhamento de nossa vida artística” se levantassem “as mais irritadas opiniões” e “as mais contrariantes hostilidades” contra o que a “vibrante artista” exibia:

 

“As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia”.

Àquela altura, o núcleo militante do modernismo paulista ainda estava por se consolidar. Havia pouco que Oswald conhecera Mário de Andrade —que, por sua vez, se encantara com Anita e suas telas (ao visitar a mostra, ele adquiriu prontamente “O Homem Amarelo”).

 

Embora amigo do escritor Guilherme de Almeida, eram ainda incipientes as relações de Oswald com os futuros protagonistas do movimento, como a própria Anita, a quem fora apresentado por Di Cavalcanti —um dos incentivadores da exposição polêmica.

 

Tarsila do Amaral, outra figura que ganharia grande projeção, ainda não se relacionava com nenhum deles —mas foi à mostra de Anita e deixou sua assinatura no livro de visitas.

 

Outro nome de peso, Victor Brecheret (que viria a fazer um busto de Deisi), só foi “descoberto” no início de 1920, quando Lobato, Oswald, Di, Menotti del Picchia e o artista Hélios Seelinger o encontraram trabalhando no Palácio das Indústrias. Lobato presidia, por designação do governador Washington Luís, um comitê para implementar o projeto de erguer na cidade um monumento aos bandeirantes.

 

Foi a partir de 1920 que a agitação do grupo modernista, já presente em exposições, artigos da imprensa e debates culturais, se tornou mais agressiva, estridente e organizada.

Em artigo de dezembro daquele ano, Mário anunciava que “os palácios de mármore dos parnasianos” já desmoronavam “sob o alaúde vertiginoso da mocidade alegre e triunfal”.