Yaripo, a montanha sagrada dos ianomâmis

Folha percorre trilha ao ponto mais alto do Brasil, fechada desde 2003, em expedição de oito dias na floresta amazônica

Trecho de terra da estrada BR-307, onde veículos costumam atolar

JORNADA

Oito dias com os pés molhados

A jornada para o pico da Neblina começa em São Gabriel da Cachoeira, cidade de 44 mil habitantes à beira do rio Negro, no Amazonas.

Dali seguimos para o norte pela BR-307, uma estrada de terra. Após 6 horas e 80 km de atoleiros, alcançamos o ancoradouro Frente Sul, onde nos aguardam as voadeiras, lanchas fluviais de alumínio.

Para chegar à aldeia ianomâmi Maturacá, são seis horas em igarapés de água preta e no rio Cauaburis, em meio à floresta. Avistamos garças-reais, martins-pescadores e gaviões-caipiras (ou águias-pescadoras), além de uma cobra caninana.

Chegamos já no escuro, navegando entre pedras e tocos à luz de lanternas. Nada parece impossível para os pilotos e proeiros ianomâmis

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PRIMEIRO DIA - DOMINGO, 16/7

Após dois dias de preparativos, navegamos duas horas, acompanhados por araras-canindés, até a cabeça da trilha. Partimos ao meio-dia numa caminhada de quatro horas. O grupo tem 24 pessoas, 13 ianomâmis e 11 visitantes.

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Há muita lama branca e raízes no chão. Cruzamos alguns igarapés em pinguelas, outros com água pelo joelho. A água limpíssima tem cor de coca-cola, como é comum nas áreas de matas inundadas (igapós).

Botas, meias e roupa permanecerão molhadas nos sete dias seguintes. Foram mais de 7 km, a parte mais fácil da trilha, com apenas dez metros de elevação total.

Chegamos no fim da tarde ao primeiro acampamento, Irokae. Os ianomâmis montam as tendas de lona. Após o banho, é hora da única refeição quente do dia: arroz, feijão, macarrão, farinha, calabresa e carne.

SEGUNDO DIA - SEGUNDA-FEIRA, 17/7

O guia Tomé diz que ianomâmis fazem o trecho seguinte em 3 horas, mas que "napëpe", os brancos, vão levar oito horas. Dito e feito: oito horas e meia de caminhada, subindo e descendo pequenas serras por mais de 13 km.

Galgamos 730 metros de elevação no terreno neste segundo dia. Foram seis paradas até o novo acampamento, Bebedouro Novo.

Pausas de 15 minutos para beber água e enganar a fome com paçoca de carne seca, biscoitos, doce de leite e goiabada.

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TERCEIRO DIA - TERÇA-FEIRA, 18/7

Chove a cântaros, e só partimos às 10h30. O trecho tem meros 6 km, mas, com 800 metros de elevação, é puxado. Caminhamos em meio a uma floresta que parece encantada, toda coberta de musgo verde.

Acampamos no local conhecido como Laje, a mais de 1.600 m de altitude. Com o frio aumentando, cobertores e sacos de dormir se tornam indispensáveis nas redes.

O rádio não funciona. Se acontecer algum acidente, não há como pedir socorro.

QUARTO DIA - QUARTA-FEIRA, 19/7

Cinco horas de caminhada para percorrer apenas 3 km e chegar a 2.000 metros de altitude no acampamento da Base.

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Atravessamos um charco, com os pés afundando até o começo da canela no lodo escuro formado pela decomposição das bromélias que dominam o local. Somos recompensados com a visão da belíssima serra do Montila.

Quase não há árvores. Surgem flores delicadas na vegetação, semelhantes a orquídeas. Várias só existem ali. Sem lenha para cozinhar, os ianomâmis recorrem ao gás. Faz muito frio, 12°C.

Estamos no sopé do pico da Neblina, mas só conseguimos vê-lo por instantes, numa rara abertura das nuvens. Finalmente funciona o rádio.

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QUINTO DIA - QUINTA-FEIRA, 20/7

Hora de atacar o cume. São 4 km de trilha, para uma elevação de mil metros. Mil metros de subida e mil metros de descida, pois retornaremos para pernoitar na Base.

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Há dez trechos com cordas molhadas e escorregadias para escalar paredões de pedra. Os mais experientes indicam onde posicionar os pés nas reentrâncias das rochas.

Após quatro horas, alcançamos às 13h o topo do Yaripo, a "montanha do vento" na língua indígena. Há muita neblina, mas também um mormaço forte, que mantém a temperatura em 21°C.

Todos se abraçam e gritam "Yaripo" várias vezes. Os olhos se enchem de lágrimas. A conquista é festejada com paçoca de carne seca e chocolates.

O mastro da bandeira está caído. O lado da montanha que dá para a Venezuela é um paredão abrupto, verdadeiro abismo. Em frente fica o pico 31 de Março, com 2.974 metros.

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Menos de duas horas no cume e já começamos a voltar. Descer foi pior do que subir. As pernas mal aguentam o peso do corpo. Um grupo retardatário chega ao acampamento seis horas depois, já no escuro. As últimas cordas foram percorridas sob a luz de lanternas.

SEXTO DIA - SEXTA-FEIRA, 21/7

Todos se queixam de dores nos joelhos, menos os ianomâmis. Apesar disso, o plano é pular o acampamento da Laje e seguir direto para Bebedouro Novo, cerca de 10 km à frente.

Mantemos bom ritmo e alcançamos as barracas às 16h, meia hora antes do previsto pelo guia. Hora de recompor forças com um banho de rio.

SÉTIMO DIA - SÁBADO, 22/7

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Dia de repetir o trecho mais exigente da jornada, com muito sobe e desce até Irokae, mas agora há mais descidas que subidas.

O aniversário de um "napë" é comemorado com açaí recém-colhido e peixinhos em "haro-haro", forma tradicional ianomâmi de assar alimentos em fogueira embrulhados em folhas. O aniversariante se dá como presente um par de meias secas.

OITAVO DIA - DOMINGO, 23/7

Faltam os 7 km finais até o ponto em que nos esperam as voadeiras para chegar a Maturacá. Chegamos às 14h. Após mais de 70 km andando e uma elevação acumulada de 4.400 metros, a emoção é quase tão forte quanto alcançar o cume do pico da Neblina.

Agora é lavar a roupa úmida e cuidar das feridas nos pés. Um pequeno preço a pagar depois de ter subido a montanha mais alta do Brasil guiados por seu povo indígena mais famoso.

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