Descrição de chapéu Independência, 200

200 anos, 200 livros

Conheça 200 importantes livros para entender o Brasil, um levantamento com obras indicadas por 169 intelectuais da língua portuguesa

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Silviano Santiago

Ensaísta e romancista, é professor emérito da UFF e autor de livros como "Machado" e "Em Liberdade"

As indicações de Silviano Santiago

Memórias Póstumas de Brás Cubas' é o mais importante e melhor romance brasileiro e é também uma das melhores e mais audaciosas e originais obras literárias escritas nas Américas. Suas traduções em várias línguas estrangeiras se multiplicam e todas são acolhidas com estupefato e admiração pela melhor crítica internacional. A presença em terras brasileiras de intelectual do porte do escritor Machado de Assis obriga seu leitor –independente da formação que tenha recebido– a enxergar o Brasil, o ser humano e o mundo por uma ótica que, em seus extremos, é criativa e subversiva. Seus quatro primeiros romances seguem a rotina do aprendizado. Escritos no estilo romântico, então dominante, são bons, não são originais. De repente, em 1881, Machado publica 'Memórias Póstumas de Brás Cubas'. A estética então dominante é a realista-naturalista e seu porta-voz em língua portuguesa é Eça de Queirós, e Machado resolve ser singular e ousado. Propõe um romance de narrativa fragmentada e insólita que, à sua maneira, anuncia o realismo fantástico que, em meados do século 20, trará glória e prêmio Nobel ao colombiano García Marques. O defunto autor das memórias, corretamente adjetivadas por póstumas, se apresenta como narrador e introduz a si como um personagem ébrio que caminha trôpego pelos capítulos do romance até entregar os pontos na última página. O túmulo. A cosmovisão do defunto autor é a de ser humano que, vaidosamente, se apronta para doar o corpo aos vermes. Cito suas palavras finais 'ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas, a da fecundidade: − Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria'. Capistrano de Abreu escreve no ano da publicação do romance: 'O romance aqui é simples acidente. O autor é o primeiro a reconhecer a filosofia triste, e por isso põe-na nas elucubrações de um defunto, que nada tendo a perder, nada tendo a ganhar, pode despejar até as fezes tudo quanto se contém nas suas recordações'. A filosofia triste –nada a ganhar, nada a perder-- não é a de um arrogante filósofo francês, perdido nos trópicos. É a de um brasileiro descendente de povo escravizado, cético, com formação de autodidata. Machado nasce e vive com a família no morro do Livramento. O jovem não cursa uma das faculdades de prestígio na capital federal e sua formação literária é produto da própria curiosidade intelectual. Um autodidata. Entenda-se autodidata no sentido socrático: instruí-te a ti mesmo. Ainda rapazinho no morro, aprende latim com o pároco da igreja e o francês com o padeiro imigrante. Por ter-se instruído a si mesmo, guarda a necessária distância para se tornar o crítico mais ferrenho da sociedade brasileira e do ser humano. Espicaça os sentimentos e as emoções. Estas são solapadas na raiz da sinceridade, que se traveste – na prosa literária – por um sorriso sofrido, malicioso e sedutor, semelhante ao dos grandes cantores afro-americanos de jazz. Quando o ceticismo do cidadão descendente de escravizados ganha capítulos inesquecíveis, ele vem paradoxalmente escrito com entusiasmos de alegria interior. O romance se escreve numa estranha prosa libertadora, fraterna e alegre. As frases saltitam na folha de papel impressa como se estivessem a gritar 'aleluia!' no templo religioso da mais ácida das literaturas. Seu livro de cabeceira é o 'Eclesiastes' – o livro 'do que sabe'. A espiritualidade paira como nuvem benfazeja acima da miséria terrena que ele experimenta como descendente de escravizados e apreende, com notável controle, literariamente.

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A coragem e a atualidade política de Graciliano Ramos é formidável e o estilo literário do romancista alagoano não fica atrás. Ele é o primeiro escritor brasileiro a articular o 'viver à míngua' ao 'escrever à míngua' da estética da fome. Segue-o o não menos extraordinário poeta João Cabral de Melo Neto, de leitura obrigatória. A experiência do cárcere em 1936 leva Graciliano a explorar o tema mais sofrido e candente da década de 1930 – a migração diaspórica doméstica. Publica o romance 'Vidas Secas' em 1938. A vidência do artista virá a explodir nos anos 1950, quando se cunha o apelativo Terceiro Mundo para associar politicamente as nações pobres ao sul do planeta. E continuará a explodir internacionalmente no terceiro milênio, com a diáspora dos povos africanos e asiáticos em fuga maciça e dolorosa para os países do Primeiro Mundo. (A partir do final do século 19 até a perseguição nazista ao povo judeu, as migrações dominantes eram de famílias europeias em direção às Américas. Elas já foram bem estudadas e analisadas. A bibliografia em português é vasta e rica.) Graciliano dá o pontapé inicial na análise do caso das múltiplas migrações domésticas nos até então países acolhedores do Novo Mundo. O Brasil –e até os Estados Unidos da América no tocante aos escravizados africanos− não foi capaz de ter uma governança interna que compartilhasse a riqueza nacional por todas as regiões e por todos os habitantes. Abundância excessiva e escassez calamitosa são a matéria-prima da nacionalidade brasileira dramatizada em 'Vidas Secas'. A nova abundância, trazida pela industrialização dos centros urbanos, é injusta e preconceituosa e se localiza em estados privilegiados da nação, o chamado sul-maravilha. A migração do lavrador miserável nordestino, causada historicamente pelo fenômeno da seca e acentuada pelo latifúndio agrário, é tratada com toda a dignidade por Graciliano Ramos em seu romance. Graciliano tem um ilustre antecessor na figura de Eça de Queiroz. De seu famoso ensaio sobre 'A Irlanda e a Lei Agrária' retiro esta frase, que também serve para descrever 'Vidas Secas': 'enquanto a população trabalhadora da Irlanda morre de fome, a classe proprietária, os landlordes indignam-se e reclamam o auxílio da polícia inglesa quando os trabalhadores manifestam esta pretensão absurda e revolucionária – comer'. Não há na literatura brasileira escritor/pensador tão articulado e, ao mesmo tempo, tão solícito em atender aos reclamos dos miseráveis de nossa vida socioeconômica e política. Como ninguém, ele sabe como pôr o dedo nas chagas da nacionalidade ditatorial e/ou democrática. A mudança nos regimes não avança a história social brasileira. Na condição de amante da literatura, talvez exagere ao afirmar que até hoje as ciências sociais não conseguiram produzir algo de tão exato e contundente na representação da diáspora doméstica. São poucas as nossas obras literárias que propõem tão notável e rentável interpretação da escuridão brasileira.

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Indicações fora da lista

Trata-se de uma obra poética escrita e publicada ao ritmo de diferentes e sucessivas fases da biografia do cidadão Carlos Drummond e da história do Brasil e da humanidade. A reunião de livros tão diversos e assinados por autor tão sensível e camaleônico possibilita amplas, inesperadas e ricas compreensões do 'sentimento' de um brasileiro, ou − para retomar um dos títulos do autor − do 'Sentimento do Mundo' do poeta Carlos Drummond de Andrade. Afirmativos da personalidade destemida, sutil e ambivalente, porosa e rigorosa do poeta, seus poemas invocam seguidamente o nome do próprio autor ('Vai, Carlos, ser gauche na vida') e oferecem um longo, pedregoso e misterioso caminho subjetivo e objetivo da experiência de vida no século passado. Carlos Drummond nasce em 1902 e falece em 1987. Saltam das páginas impressas os avanços e recuos, o sinal verde ou o sinal vermelho e, evidentemente, as encruzilhadas do modo como se representa, em poesia, a participação social e política de um cidadão que decidiu viver intensa e plenamente 'nosso tempo', um 'tempo de partido, tempo de homens partidos'. A obra completa de Drummond oscila entre dois polos opostos e extremos. O primeiro polo se representa pelo mito da individualidade possessiva, com direito conquistado pelo cidadão de reconstruir ou de organizar o mundo a partir de um marco-zero revolucionário, comprometido com sua visão ideológica do presente. Desde o primeiro livro, o menino Carlos se metamorfoseia na figura emblemática de Robinson Crusoé, o náufrago que fabrica pouco a pouco a civilização ocidental numa ilha deserta. O segundo polo se representa pelo mito de origem, o do clã patriarcal mineiro dos Andrade, de descendência europeia e cristã. Desde sempre, a biografia do Robinson itabirano esteve sendo reescrita – sem a intervenção de sua própria vontade ou de seu desejo − pelas 'tábuas da lei mineira de família'. O primeiro polo, nitidamente cosmopolita e revolucionário, tem sua obra-prima na coleção 'A Rosa do Povo', de 1945, e o segundo, nitidamente provinciano e conservador, tem seu ápice nos livros que compõem a série 'Boitempo', iniciada em 1968. Em seus polos extremos, a poesia completa de Drummond tem como referência, respectivamente, os ensinamentos de Karl Marx e a escrita memorialista de Marcel Proust.