Folha de S.Paulo

A deposição do presidente João Goulart foi o desfecho de um período turbulento da história do país, em que tanto a direita como a esquerda demonstraram desprezo pelas regras do jogo democrático e pouco interesse em negociar compromissos

O governo João Goulart começou a desmoronar na madrugada do dia 31 de março de 1964, quando um general sexagenário que comandava uma divisão de infantaria em Juiz de Fora (MG) acordou irritado com um discurso feito pelo presidente na véspera. Antes mesmo de trocar o pijama pela farda, o general Olympio Mourão Filho telefonou a companheiros em outros Estados para avisar que enviara seus soldados na direção do Rio de Janeiro, com a missão de tirar Goulart do poder.

Militares, políticos e empresários tramavam contra o governo havia meses, mas a articulação entre os vários grupos de conspiradores era frágil. Embora o núcleo mineiro ao qual Mourão estava ligado fosse um dos mais ativos, ele não consultou ninguém antes de por suas tropas em marcha. Conspiradores de outros Estados foram surpreendidos e não sabiam como agir. Não havia um plano para sublevar outras unidades militares, nem um líder para conduzir a rebelião.

Mesmo assim, o governo Goulart caiu em dois dias, sem que fosse disparado um único tiro. As tropas de Mourão dispunham de pouco armamento e demoraram horas para começar a se mover. Os destacamentos enviados pelo governo para conter os rebeldes mudaram de lado assim que os encontraram. Oficiais que juravam fidelidade ao presidente no dia 31 o abandonaram no dia seguinte. A facilidade com que os militares alcançaram seu objetivo em 1964 até hoje causa espanto.

“Agitações, tumultos e choques sangrentos”

Para entender como isso aconteceu, é preciso primeiro dar alguns passos atrás. Goulart, um fazendeiro gaúcho que fora ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e era seu maior herdeiro político, sempre foi alvo de desconfiança entre os militares, e essa antipatia começara a ser demonstrada com mais força em 1961, quando o presidente Jânio Quadros renunciou e os três ministros militares divulgaram um manifesto contra a posse de Goulart, o vice-presidente eleito. O documento descrevia Goulart como um agitador com simpatia pela União Soviética e pela China, que promovera a “infiltração” do comunismo nos sindicatos de trabalhadores na era Vargas e seria capaz de levar o país a um período “de agitações sobre agitações, de tumultos e mesmo choques sangrentos nas cidades e nos campos, de subversão armada”, se assumisse o poder.

A retórica do manifesto soa exagerada aos ouvidos de hoje, e muitos de seus contemporâneos dificilmente concordariam com a descrição de Goulart como um agitador comunista. Mas ela era um reflexo do ambiente paranóico criado pela Guerra Fria. Com o mundo dividido em dois blocos, um liderado pelos Estados Unidos e outro pela União Soviética, os militares brasileiros acreditavam na época que sua principal missão era impedir que o país se tornasse comunista. Mas em 1961 eles fracassaram. Grupos nacionalistas de esquerda, liderados pelo governador gaúcho Leonel Brizola, que era cunhado de Goulart, ameaçaram resistir de armas na mão. Até políticos conservadores que não morriam de amores por Goulart reagiram. Eles temiam pela sua sobrevivência política se cedessem à intimidação e queriam preservar a autonomia do Poder Legislativo.

Houve reação nas próprias Forças Armadas. O general Henrique Teixeira Lott, oficial respeitado que fora candidato a presidente da República nas eleições de 1960, defendeu o respeito à Constituição. O comandante do 3º Exército, general José Machado Lopes, recusou-se a cumprir as ordens que recebeu para conter Brizola e bombardear o palácio do governo gaúcho se necessário.

A crise provocada pelo veto militar terminou em duas semanas, com a posse de Goulart e a adoção do parlamentarismo como sistema de governo. O novo arranjo foi desenhado pelo Congresso para limitar os poderes do presidente, mas o desfecho não representou um triunfo para os ministros militares, porque demonstrou que eles não tinham força suficiente para impor o veto a Goulart.

Omissão é crime

Veja trecho de um dos filmes produzidos pelo Ipes em 1963

O primeiro gabinete parlamentarista, liderado por Tancredo Neves, um político conciliador que também fora ministro de Getúlio Vargas, foi formado com representantes das principais forças políticas da época, incluindo o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Goulart, seu aliado moderado, o Partido Social Democrático (PSD), e os conservadores da União Democrática Nacional (UDN).

Mas a solução parlamentarista teve fôlego curto. Goulart começou a trabalhar para restaurar os poderes presidenciais assim que tomou posse, provocando seguidos atritos com a maioria conservadora no Congresso. Empresários fundaram um centro de estudos para difundir propaganda anticomunista e desestabilizar o governo, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes). Militares descontentes passaram a se reunir com políticos que faziam oposição a Goulart.

No centro da crise

Jango, seus aliados e os líderes do golpe que o depôs

Um presidente na corda bamba

O governo Goulart pode ser descrito como uma sucessão de crises políticas, em que o presidente fracassou ao tentar conciliar demandas de movimentos sociais e grupos conservadores que se enfrentavam num ambiente de aguda radicalização. Foi um período turbulento, em que tanto a direita como a esquerda demonstraram desprezo pelas regras do jogo democrático e pouco interesse em compromissos.

AS REFORMAS DE BASE

Durante o governo João Goulart, a esquerda pressionava o presidente a promover um conjunto de reformas que assustava a direita

  • REFORMA AGRÁRIA
  • REFORMA URBANA
  • REFORMA ELEITORAL
  • CAPITAL ESTRANGEIRO

O que é

Era a principal bandeira da esquerda, que via no atraso do campo o maior entrave ao desenvolvimento econômico do país e defendia a desapropriação de terras improdutivas para assentamento de pequenos proprietários

O que Goulart fez

A maioria conservadora no Congresso barrou tentativas de mudança na Constituição, que tornava as desapropriações inviáveis ao exigir que fossem pagas em dinheiro. No comício de 13 de março, Goulart assinou um decreto que autorizava a desapropriação de terras nas margens de rodovias e ferrovias

O que é

A esquerda queria medidas contra a especulação imobiliária e a falta de moradia nos grandes centros urbanos, um problema crescente com a urbanização do país

O que Goulart fez

Emenda constitucional proposta pelo governo em 1963 abria caminho para a desapropriação de propriedades na área urbana por interesse social, mas o projeto foi barrado no Congresso, onde não chegou a ser votado

O que é

Goulart era a favor da concessão do direito a voto aos analfabetos e aos soldados, o que incorporaria cerca de 40% da população adulta da época ao eleitorado. O PTB achava que isso ampliaria suas bases eleitorais e enfraqueceria o PSD e a UDN

O que Goulart fez

A mudança dependia de mudança na Constituição e por isso não teve apoio no Congresso, onde os conservadores do PSD e da UDN tinham maioria

O que é

A esquerda queria maior controle sobre o capital estrangeiro, com a taxação das remessas de lucros para o exterior e a manutenção de setores da economia considerados estratégicos sob controle nacional

O que Goulart fez

Limitou a remessa de lucros a 10% do capital registrado pelas empresas estrangeiras no país e, no comício de 13 de março, encampou por decreto as refinarias de petróleo particulares em atividade no país

A esquerda pressionava o governo a promover mudanças em várias áreas, mas as reformas que ela reivindicava dependiam de alterações na Constituição e por isso era impossível fazer qualquer coisa sem conquistar o apoio do Congresso, onde quem tinha a maioria eram os conservadores abrigados no PSD e na UDN.

A bandeira que a esquerda agitava com mais energia era a da reforma agrária. Ela identificava o atraso no campo como um entrave ao progresso do país e apontava a concentração da propriedade da terra como principal distorção a corrigir. A Constituição só permitia desapropriações se o governo pagasse em dinheiro e isso inviabilizava qualquer programa de distribuição de terras. A esquerda queria que as desapropriações fossem pagas com títulos públicos, mas a ideia deixava os fazendeiros inseguros e por isso não avançava no Congresso.

Dezenas de propostas de reforma agrária foram discutidas no Legislativo durante o governo Goulart. Nenhuma vingou. As mais moderadas, como a que o gabinete liderado por Tancredo Neves apresentou durante a vigência do regime parlamentarista, aumentavam os impostos cobrados das propriedades maiores para inibir a concentração da terra, mas não tocavam na questão da distribuição. Podiam angariar apoio na direita, mas eram tímidas demais para a esquerda.

Pela reforma agrária

Veja como o governo tratou do tema num cinejornal em 1963

Sem força para convencer o Congresso a aprovar mudanças mais audaciosas, Goulart tentou obter uma delegação especial do Congresso para fazer as reformas por decreto. Ninguém topou. Havia eleições marcadas para 1962, e Goulart sugeriu então que o novo Congresso ganhasse poderes para aprovar reformas por maioria simples, sem os dois terços exigidos pela Constituição. A desconfiança sobre as intenções do presidente era grande e a ideia foi recusada.

Tancredo renunciou em junho de 1962, e com isso o sistema parlamentarista começou a ruir. Goulart propôs a antecipação de um plebiscito convocado para consultar a opinião dos eleitores sobre o sistema de governo, previsto para dali a três anos. Os principais comandantes militares bateram continência ao seu lado, acusando o Congresso de intransigência e defendendo a antecipação do plebiscito. O Legislativo cedeu e remarcou a consulta para janeiro de 1963.

Marque não

Ouça um anúncio da campanha pela volta do presidencialismo

Nas eleições de 1962, o PTB de Goulart conseguiu dobrar sua representação na Câmara dos Deputados e passou a controlar a segunda maior bancada na casa, com 28% das cadeiras. O presidente alcançou outra vitória significativa poucos meses depois. De cada dez eleitores que participaram do plebiscito sobre o sistema de governo, oito votaram pelo fim da experiência parlamentarista.

Mas a maioria no Congresso continuou dominada pelos conservadores, apesar do avanço eleitoral da esquerda. Muitos haviam recebido clandestinamente apoio financeiro do governo americano, que injetou milhões de dólares nas campanhas de candidatos que faziam oposição a Goulart. O veículo usado para distribuir o dinheiro foi o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), organização fundada em 1959 por alguns dos empresários que mais tarde criaram o Ipes.

Correlação de forças

Partidos conservadores controlavam a maioria na Câmara dos Deputados durante o governo Goulart

Correlação de forças

Juntos, o PSD, a UDN e os outros partidos que se opunham às reformas defendidas por Goulart tinham 60% das cadeiras na Câmara, o suficiente para bloquear qualquer proposta do governo. Mas Goulart acreditava que a vitória alcançada no plebiscito lhe dava força para enfrentar seus adversários e decidiu aproveitar o momento para retomar a iniciativa em duas frentes. A primeira foi aberta com o Plano Trienal, um programa de ajuste econômico cujo objetivo era recuperar a confiança no governo e assim abrir caminho para implementar as reformas que a esquerda desejava. Elaborado por uma equipe chefiada pelo economista Celso Furtado, o plano adotava medidas de austeridade para pôr ordem nas contas do governo, conter reajustes salariais e limitar a oferta de crédito. Mas o programa não conseguiu apoio dos sindicatos nem dos empresários e fracassou, sendo abandonado por Goulart cinco meses depois.

A segunda frente foi aberta com um novo projeto de reforma agrária no Congresso. Apresentado pelo PTB, ele propunha que as desapropriações de terras fossem pagas com títulos públicos e correção de no máximo 10%, num ano em que a inflação bateu em 80%, e permitia que o governo fizesse desapropriações por interesse social em áreas urbanas também. A proposta assustou a direita, que interpretou a iniciativa do governo como um ataque ao direito de propriedade.

Nos braços do povo

Veja como um encontro de Jango com trabalhadores foi noticiado pelo governo em 1963

Os aliados de Goulart sabiam que a aprovação era difícil e organizaram comícios para aumentar a pressão sobre o Congresso. Brizola e outras líderes da esquerda davam ultimatos, ameaçando buscar outros meios de realizar as reformas se o Congresso não cooperasse. Colocado em votação no plenário, o projeto do PTB só conseguiu o apoio de 41% dos deputados e foi rejeitado.

A situação se complicou em setembro, com uma explosão de indisciplina nos escalões inferiores das Forças Armadas. Inconformados com uma decisão judicial que lhes negava o direito de disputar eleições, cerca de 600 cabos, sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha se rebelaram em Brasília, ocupando prédios públicos e cortando as comunicações entre a capital e o resto do pais por algumas horas. O governo sufocou a rebelião rapidamente, mas ela assustou os comandantes militares, especialmente por expor o apoio que os sargentos tinham de sindicatos controlados pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT).

Os militares passaram a pressionar Goulart para que pusesse um freio nos sindicatos, mas o presidente hesitava, porque precisava do apoio da esquerda para enfrentar seus adversários à direita. Numa entrevista ao jornal americano “Los Angeles Times”, seu opositor mais ruidoso, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, chamou Goulart de “totalitário” e “comunista” e disse que os militares tinham que fazer algo para contê-lo ou afastá-lo de vez do poder.

Acatando uma sugestão dos ministros militares e alegando que a radicalização política punha em risco a segurança do país, Goulart propôs então ao Congresso a decretação de estado de sítio. O pedido foi rechaçado por todos os partidos e o presidente viu-se obrigado a retirá-lo três dias depois. A iniciativa teve efeito desastroso, aumentando ainda mais as desconfianças em torno de Goulart.

Duis eu tortor ut urna tempus porttitor non quis velit. Duis nec erat nec odio porttitor facilisis. Morbi Foto: C. Bosco/Acervo UH/Folhapress

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A guinada que assustou a direita

Na noite de 13 de março de 1964, quando Jango subiu no palanque de um comício organizado no centro do Rio de Janeiro para defender as reformas que a esquerda queria, o país parecia dividido ao meio, e o presidente estava em busca de apoio para se manter no poder. Ao final de seu discurso, em que falou por 54 minutos, tomou duas garrafas de água mineral e parou 35 vezes para enxugar o suor do rosto, ele havia selado sua aliança com a esquerda e ampliado o fosso que o separava das forças que conspiravam para derrubá-lo.

País dividido

Às vésperas do golpe, apoio a Goulart era maior entre os mais pobres

País dividido

Quem olhou para a multidão reunida para ouvi-lo, estimada na época em cerca de 150 mil pessoas, pôde ver as bandeiras vermelhas do Partido Comunista Brasileiro (PCB) misturadas com cartazes que defendiam a permanência de Jango no cargo por um prazo maior do que o previsto na Constituição. Quem andou pelos bairros ricos da zona sul da cidade naquele mesmo dia viu famílias católicas acendendo velas nas janelas dos apartamentos para espantar o perigo comunista do país.

Horas antes, Jango assinara dois decretos. O primeiro permitia a desapropriação de terras numa faixa de dez quilômetros às margens de rodovias, ferrovias e barragens. Era um passo no sentido do que a esquerda pedia, mas era uma medida inócua sem a mudança do artigo da Constituição que exigia o pagamento das desapropriações em dinheiro. O outro decreto transferia para o governo o controle de cinco refinarias de combustíveis que operavam no país.

Em seu discurso, o presidente defendeu as reformas, disse que a Constituição brasileira era “antiquada” e não atendia mais aos “anseios do povo”, e cutucou os católicos conservadores. “Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo”, afirmou Jango. Discursando antes do cunhado, Brizola atacou o Congresso, “controlado por uma maioria de latifundiários reacionários”, sem nenhuma identidade com as “aspirações do povo brasileiro”.

O comício da Central

Veja um trecho do documentário “Jango” (1984), de Silvio Tendler

O último esforço feito para negociar um compromisso em torno das reformas, promovido por um deputado da ala moderada do PTB, San Tiago Dantas, fracassara no início do ano. A esquerda e os sindicatos concluíram que a saída era agitar as ruas, buscando na mobilização popular o apoio que faltava ao governo no Congresso. O comício de 13 de março marcou a adesão de Jango à iniciativa.

Nos dias seguintes, o presidente pisou no acelerador. Em sua mensagem anual ao Congresso, avisou que enviaria propostas para apressar as desapropriações de terras improdutivas, um projeto de reforma universitária e outro de reforma política, para dar a analfabetos, sargentos e praças o direito de votar e disputar eleições. A lista de Jango incluía ainda a delegação de poderes legislativos ao Executivo e a convocação de um plebiscito sobre as reformas de base.

Era tarde demais. Até mesmo na esquerda havia suspeitas sobre as intenções de Goulart e muitos achavam que ele estava se preparando para dar um golpe para continuar no poder. No fim das contas, Goulart não deu nenhum passo para romper com a legalidade, mas sua guinada à esquerda assustou os conservadores e contribuiu para unir os vários grupos que conspiravam contra o seu governo.

A Marcha da Família

Veja um trecho do documentário “Jango” (1984), de Silvio Tendler

No dia 19, uma semana depois da provocação de Goulart no comício do Rio, uma multidão foi às ruas de São Paulo protestar contra o governo, naquela que se tornou conhecida como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Estima-se que 300 mil pessoas tenham participado da passeata, em que mulheres de classe média, líderes religiosos e políticos de oposição formaram a linha de frente.

Militares que hesitavam em se juntar aos conspiradores começaram a se mover em sua direção, como o chefe do Estado Maior do Exército, o general Humberto de Castello Branco. No dia 25, marinheiros se revoltaram contra medidas disciplinares determinadas pelo Ministério da Marinha e se entrincheiraram na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio. Goulart revogou a ordem que o ministro da Marinha dera para reprimir a rebelião e anistiou os revoltosos.

A revolta dos marinheiros

Veja um trecho do documentário “Jango” (1984), de Silvio Tendler

No dia 30, o presidente foi ao Automóvel Clube do Rio para uma reunião da associação dos sargentos. Foi aclamado ao chegar, sentou-se ao lado do líder da rebelião dos marinheiros e fez um discurso incendiário. Foi a gota d’água para os conspiradores, que assistiram o discurso pela televisão e viam na associação de Goulart com militares insubordinados o rompimento de princípios essenciais das Forças Armadas, o respeito à hierarquia e à disciplina interna.

Depois que as tropas do general Mourão começaram a marchar, os principais comandantes militares aderiram aos golpistas em poucas horas, deixando Goulart isolado e sem condições de reagir. Aproveitando-se da ausência do presidente, que viajara de Brasília para Porto Alegre, o senador Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso, declarou vaga a Presidência da República e abriu caminho para a formação de um novo governo sob o controle dos golpistas.

Nação acéfala

Ouça um trecho da declaração do senador Auro de Moura Andrade

O governo dos Estados Unidos acompanhou tudo de perto, mas sua influência sobre os acontecimentos foi menor do que muita gente pensa. Os EUA viam com preocupação a crise brasileira, temiam que o país fizesse como Cuba e virasse comunista e contribuíram para desestabilizar Goulart ao financiar seus adversários nas eleições de 1962. Na hora decisiva, os americanos enviaram até uma força naval para apoiar os golpistas. Como o golpe se consumou logo e sem resistência, ela voltou para casa quando ainda estava a dez dias de distância.

Ninguém derramou uma lágrima por Goulart em Washington, e o governo americano foi o primeiro a reconhecer o novo regime como legítimo depois que o general Castello Branco assumiu a Presidência. Quando disseram ao presidente Lyndon Johnson que o governo militar começara a perseguir seus adversários políticos e que por isso talvez fosse melhor agir com cautela, ele disse que não estava nem aí. “Há algumas pessoas que precisam ser presas aqui e lá também”, disse Johnson. “Gostaria que tivessem prendido alguns antes de eles tomarem Cuba.”

Diálogos na Casa Branca

Conversas mantidas pelos presidentes John F. Kennedy e Lyndon Johnson com seus assessores mostram que os Estados Unidos trabalharam para desestabilizar o governo João Goulart e apoiaram os golpistas de 1964 na hora decisiva

Kennedy instalou um sistema de gravação em seu gabinete na Casa Branca e usou-o pela primeira vez para registrar uma reunião com o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, que viajou a Washington para discutir a situação política no país e as medidas que o governo americano poderia tomar para lidar com a crise

Com o agravamento da crise no Brasil, Kennedy voltou a chamar seu embaixador para discutir a situação e as opções para os EUA. Durante a exposição de Gordon, Kennedy perguntou se ele achava viável uma intervenção militar americana para depor Goulart. Kennedy foi assassinado algumas semanas depois dessa reunião

Com a morte de Kennedy, Lyndon Johnson assumiu a presidência dos EUA. Ele autorizou o envio de uma frota de navios para apoiar os golpistas em caso de reação de Goulart e encorajou seus assessores a ir em frente, no dia do golpe. Johnson reconheceu o novo governo após a posse de Castello Branco, indiferente ao início da repressão política no Brasil