Processo provocado pelo depósito de sedimentos secou parte do curso, enquanto, em outras áreas, fazendas inteiras estão alagadas
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Antes da destruição recorde provocada pelo incêndio de 2020, o Pantanal já sofria com outro desastre ambiental em larga escala, moldado em terra e água. A tragédia tem nome: rio Taquari, um dos principais formadores do bioma.
Assoreado, as suas águas há muito abandonaram o leito e passaram a buscar outros caminhos pela maior planície alagável do mundo. Na linguagem científica, o fenômeno que transforma o leito do rio em um local mais alto do que as margens, levando ao seu desvio, se chama avulsão. Já na linguagem pantaneira, ele é conhecido como "arrombado".
As avulsões e o depósito de sedimentos trazidos pelos rios estão no centro do processo de formação do Pantanal. Mas, no caso do Taquari, há poucas dúvidas de que a ocupação desordenada das cabeceiras tenha acelerado esse processo natural.
Como todos os principais rios do Pantanal, o Taquari nasce no planalto do entorno. Especificamente, na região da tríplice fronteira entre Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul -estado que concentra quase toda a sua bacia.
A partir de meados da década de 1970, com incentivo da ditadura militar, essa região de predominância de cerrado passou por uma intensa ocupação agropecuária. Em 1974, a taxa de desmate acumulado era de 5,6%. No ano 2000, já havia saltado para 62%, segundo estudo incluído no livro "Impactos Ambientais e Socioeconômicos na bacia do Rio Paraguai", editado pela Embrapa Pantanal.
De lá para cá, o desmatamento continuou. De acordo com levantamento da iniciativa MapBiomas, de 2000 a 2020, a bacia do Alto Taquari perdeu 851 km2 de formações florestais (quase 15% do que existia) e 1.565 km2 de formações savânicas (quase 30%).
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"O uso do solo nas nascentes está determinado pelo seu tipo. Onde é mais argiloso, a agricultora se intensificou. No solo arenoso, predomina a pecuária. E é nessa região que ocorre a maior incidência de processos erosivos", afirma o geógrafo Rômullo Louzada, que pesquisa a bacia do Taquari e é fiscal do (Imasul) Instituto do Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul.
Essa divisão de atividades é bem nítida na região, percorrida pela Folha no final de julho. Nas terras mais altas e planas, o chapadão está tomado por grandes lavouras mecanizadas. Ali, os processos erosivos foram controlados ao longo dos anos pelo uso do plantio direto e da curva de nível.
Já nos terrenos acidentados e de altitude mais baixa, predominam pastos de pecuária extensiva. É nessa região que estão as voçorocas, o estágio mais avançado do processo erosivo. Com variações de um a 30 metros de profundidade, elas são cavadas pelas águas da chuva, atingem o lençol freático e deixam o solo exposto. Assim, ele passa a ser carregado pelas enxurradas aos afluentes do Taquari.
No Alto Taquari, há cerca de 3.000 voçorocas, segundo cálculo de Louzada -a bacia tropical mais erodida do mundo. A maior delas se localiza em uma fazenda em Figueirão (260 km a nordeste de Campo Grande), onde uma espécie de cânion de alguns quilômetros se formou nas últimas décadas. No fundo do vale, o lençol freático corre exposto, como se fosse um pequeno riacho.
"Aqui, era uma planície, não tinha um buraquinho", afirma o morador Adilino Custódio da Silva, 62, à beira do precipício de algumas dezenas de metros.
Perto dali, o rio Figueirão é a primeira vítima do assoreamento. No passado, era "de caixa", ou seja, tinha o leito estreito e fundo. Hoje, está raso e espraiado. "Antes, pescava e, quando passava de cavalo, molhava o arreio. Hoje, a água não chega nem na canela", compara Silva.
As voçorocas não poupam nem sequer o Parque Estadual das Nascentes do Taquari. Criado em 1999, tem 30.618 hectares, o equivalente a 1% da bacia do Alto Taquari. Por falta de acordos indenizatórios, 80% de sua área continuam nas mãos de fazendas particulares, que continuam em atividade. Em uma delas, a voçoroca se estende por alguns hectares.
A transição do planalto para a planície pantaneira ocorre no município de Coxim, a 250 km a norte de Campo Grande. A cidade já foi importante polo pesqueiro, mas a deterioração do rio e a sobrepesca praticamente acabaram com a atividade.
A história das avulsões do rio Taquari é marcada por duas delas, que até ganharam nome: Zé da Costa, no final dos anos 1980, e Caronal, dez anos mais tarde, desviaram a maior parte do rio. Com elas, imensas áreas foram inundadas de forma permanente, ou seja, alheia, aos ciclos de cheia.
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A medição do tamanho da planície atingida costuma variar de acordo com o tempo e a metodologia. No cálculo mais recente, feito por Louzada em 2020, 450 mil hectares submersos, equivalente a três municípios de São Paulo.
O cruzamento dessa área alagada com a redução da superfície de água nas últimas décadas mostra um quadro de extrema deterioração do Pantanal. Estudo recente da iniciativa MapBiomas revelou que, em 2020, o Pantanal tinha apenas 1,5 milhão de hectares de água e campos alagados, a menor extensão dos últimos 36 anos. Ou seja, o desastre ambiental do Taquari "maquiou" uma deterioração ainda mais dramática do bioma, que está secando.
Um sobrevoo nas regiões da Nhecolândia e do Paiaguás, no município de Corumbá (MS), ajuda a entender o que aconteceu. Ambas estão dentro do chamado leque aluvial do Taquari, uma imensa área onde o rio deposita seus sedimentos. Com cerca de 55,5 mil km2, representa 36% da área do Pantanal.
Primeiro, surge uma ampla planície de vegetação seca, resultado do terceiro ano seguido de incêndios de larga escala. Cortando esse cenário desolador, aparecem dezenas de quilômetros de leito seco do Taquari.
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Mais adiante, na região conhecida como Paiaguás, a paisagem muda. O Pantanal volta a ser uma imensa área que mistura água azul e vegetação verde. Ali não há cicatrizes das grandes queimadas.
A impressão de que se trata de uma área preservada, no entanto, se desmancha durante a visita de barco à região. O acesso é por meio do rio Paraguai. Trata-se de um labirinto de águas rasas. Em alguns trechos, só é possível navegar com rabeta, motor de baixa potência conectado a uma longa haste.
A beleza da água transparente, que possibilita ver o fundo coberto de algas, e a vegetação verde em meio à secura de outras regiões do Pantanal dão uma falsa sensação de preservação. Mas ali quase não há mais animais terrestres, por falta de terra firme. Além disso, muitas espécies de árvores não resistiram e morreram. E, sem as frutas que caem na água, peixes como o pacu desapareceram.
Com o pasto para sustentar o gado submerso, muitas fazendas acabaram abandonadas. Em meio ao labirinto de água, há diversas casas ilhadas esfacelando-se com o tempo. Na antiga comunidade Morcego, uma escola onde chegou a funcionar uma seção eleitoral está tomada pelo mato.
Um dos poucos que resistem nesse deserto de água é o fazendeiro Ruivaldo Nery de Andrade, 59. A sua família se fixou na região do Paiaguás há quatro gerações, desde quando o seu bisavô chegou na época da Guerra do Paraguai (1864-1870). No passado, a família tinha uma vida confortável como criadora de gado. Seu avô chegou a ter avião, e Ruivaldo fez o ensino médio no interior de São Paulo e do Rio Grande do Sul.
Com a inundação das águas do Taquari, no arrombado do Caronal, e o fim das pastagens, seus irmãos se foram. Hoje ele e a mulher são os únicos moradores da fazenda Mutum, em quase isolamento -o vizinho mais próximo de sua casa de madeira está a 2,5 km. Sem bois, eles dependem de uma pequena criação de caprinos.
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Decidido a ficar, Ruivaldo trava uma luta solitária contra as águas. Por conta própria, começou a erguer um sistema de diques construídos com sacos cheios de areia. Ao longo de 20 anos, ergueu 49 diques. Com isso, a área seca aumentou de 1 hectare, onde está a sua casa, para 300 hectares.
"Antes, eu era fazendeiro. Depois, ficou uma chácara. Agora, tenho um sítio", brinca.
Hoje, além de um pouco de pasto, o fazendeiro comemora a volta de animais terrestres nas matas recuperadas. "Eu andava de cavalo, voltava e falava pra minha mulher: 'Andei o dia inteiro e só vi um bugio'. Hoje, já chego e falo pra ela: 'Tem batida de onça, da queixada, da anta'."
A sua batalha quixotesca contra a tragédia ambiental tem chamado a atenção. Em 2019, foi lançado o documentário "Ruivaldo, o Homem que Salvou a Terra", dirigido por Jorge Bodanzky e João Farkas.
O pantaneiro também inspirou a criação, neste ano, do Instituto Taquari Vivo, iniciativa de empresários que pretende atuar na restauração da bacia.
"É um projeto de longo prazo, de uma vida", afirma o diretor-executivo do instituto, o engenheiro agrônomo Renato Roscoe, 50.
"Não é que nada tenha sido feito até hoje no Taquari, mas o problema é tão grande que, juntando todos os esforços, ainda faltarão braços, pernas e cérebros para tentar resolver."
Para centenas de pantaneiros, porém, já é tarde demais. Morador do assentamento do Incra Paiolzinho, a poucos quilômetros de Corumbá, o agricultor Crescêncio da Costa Soares, 65, vivia à beira do Taquari. Em 1997, com os campos inundados, foi obrigado a deixar a região onde nasceu.
No assentamento, ele produz leite, que vende para um laticínio, e tem uma lavoura de subsistência. A água é trazida da cidade, já que os poços são salobres. Apesar das dificuldades em lidar com o solo seco e pedregoso, o agricultor se orgulha de contar que todos os cinco filhos se formaram ou estão terminando a faculdade.
"A vida ficou mais difícil", afirma. "O Pantanal é outra vida, eu sinto vontade da liberdade pantaneira, livre. Aqui, não, aqui a gente fica como se fosse num quadradinho."