Gás e óleo na floresta atropelam agricultores com preço baixo por terra e têm aval a dezenas de poços

Empreendimento se expande em ritmo acelerado em área preservada da amazônia ocidental e ignora indígenas; Eneva diz que paga valores acima do mercado

O sossego, o silêncio e o espaço de quem se viu no meio do caminho de um gigantesco empreendimento de gás natural e óleo, no coração da floresta amazônica, podem valer de R$ 400 a pouco mais de R$ 3.000 por mês.

A 80 metros da porta da casa de José Carlos da Silva, 58, e Alzira Pereira Pinto, 65, um poço foi cavado para a prospecção de combustível fóssil, alimento futuro de termelétricas. O descampado em volta do poço e das válvulas está ainda mais perto, a 30 metros. O quintal da casa, que fica na beira de uma rodovia rumo a Itapiranga (AM), tem agora uma estrutura de gás e petróleo.

“Esse descampado já destruiu minhas plantações de coco, abacaxi, pimenta-do-reino, tucumã e macaxeira”, diz o agricultor, que é ex-cortador de cana e ex-vendedor de frutas. “Eu não sabia que tinha gás aqui. Fico vendo a perfuração e tenho medo de explosão, vazamento, essas coisas”, afirma a mulher.

Vista de drone de terreno desmatado com um poço aberto e ao fundo uma casa cercada por mata

Poço de gás no terreno do agricultor José Carlos da Silva, 58, que mora na casa ao fundo, na zona rural de Itapiranga (AM) - Lalo de Almeida/Folhapress

A Eneva, uma empresa com faturamento bilionário e que é dona do maior empreendimento privado de exploração de óleo e gás na amazônia, em franca expansão, alugou o quintal de José e Alzira para cavar um poço de gás. Começou pagando R$ 3.400 por mês pelo aluguel, e reajustou para R$ 4.000, segundo o casal.

Outro pedaço do terreno foi alugado para a passagem de um gasoduto. O valor: R$ 500 ao ano, ou R$ 42 por mês. “Eles “amarraram o nó”. Disseram que se a gente não aceitasse, outros vários iam aceitar. Como que peita? Não tenho essa força. Tive de me sujeitar”, afirma José Carlos, pernambucano, há 36 anos na amazônia.

Homem sem camisa sorri em um bananal

O agricultor José Carlos da Silva em bananal no seu sítio na zona rural de Itapiranga (AM), alugado em parte para exploração de gás - Lalo de Almeida/Folhapress

A casa do policial aposentado Francisco de Moraes, 65, está na beira de outra rodovia, no caminho para Silves (AM), cidade que é uma ilha, próxima a Itapiranga. Ele alugou parte de seu terreno –500 metros de comprimento, 35 metros de largura– para a Eneva seguir com o gasoduto em construção, conectando poços de exploração e unidade de tratamento do gás.

“Eu comprei isso aqui para sossego. Era o paraíso. Agora estou no inferno”, diz Francisco. “Eu encho o ouvido de algodão para tentar dormir. É muito barulho, muita zoada, principalmente à noite. Eu quero ir embora.”

O aluguel acertado, segundo ele, foi de quase R$ 5.000 ao ano, ou pouco mais de R$ 400 por mês. Tratores quebraram sua bomba d"água, uma estrada de chão imponente surgiu no fundo de sua casa, pés de tucumã, jaca e cumaru precisaram ser arrancados. “Eu me arrependi de ter aceitado. Não sabia que seria esse transtorno.”

Homem sem camisa ao lado de dutos em uma estrada de terra

O policial aposentado Francisco de Moraes, 65, caminha pelo terreno aberto para a passagem de um gasoduto no quintal de sua casa, em Silves (AM) - Lalo de Almeida/Folhapress

A consolidação de um polo de gás e óleo em uma área superpreservada da amazônia teve início efetivo em 2021 e uma expansão sem precedentes em 2023, que avança por 2024.

Para isso, a Eneva obteve licenças para perfuração de 29 poços de gás (18 somente em 2023) em blocos na região compreendida entre Itacoatiara, Silves e Itapiranga, no leste do Amazonas, um lugar alcançado por terra, o que é raro no estado amazônico dependente do transporte fluvial em quase toda sua extensão.

As autorizações incluem um gasoduto com 32 km de extensão e a construção de usinas termelétricas. As licenças foram emitidas pelo Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas).

O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) se retirou dos processos de licenciamento do empreendimento com base em declaração da Eneva de que os projetos não impactam terras indígenas –em casos que envolvem áreas com população indígena, a competência, por lei, é do órgão federal.

Vista de drone de canteiro de obras com gruas e outros equipamentos de construção

Obra do Complexo Azulão, da empresa Eneva, em Silves (AM) - Lalo de Almeida/Folhapress

A Eneva afirmou, em nota, que paga aos proprietários de terra valores acima da média de mercado e que preza por transparência e bom relacionamento com os agricultores. Quase 100% das negociações foram concluídas e de forma amigável, disse a empresa.

Quem tem um poço produtor no imóvel tem direito a participação na produção, conforme a companhia. Segundo a Eneva, são 20 licenças para perfuração de poços de gás natural, e 18 já foram perfurados, com extração efetiva de 3.

No campo de Azulão, a empresa busca explorar 14,8 bilhões de metros cúbicos de gás. No campo mais recente, o Tambaqui, a expectativa é de exploração de 3,6 bilhões de metros cúbicos de gás e também de óleo, com quase 14 milhões de barris, segundo relatórios da Eneva.

A expansão de gás e petróleo pela floresta está em pleno vapor, com perfurações de poços novos para prospecção, distribuição de dutos em diferentes pontos da mata, formatação do gasoduto –que já ganha forma em diferentes trechos na floresta, para atravessar cursos d"água– e abertura de estradas de chão para a movimentação de operários e a consolidação do empreendimento.

Para avançar, o projeto usa métodos vistos em grandes obras na amazônia. Ignora a existência de comunidades tradicionais, como as aldeias muras no campo Tambaqui –no caso dos indígenas, não há nem preço ou conversa sobre o espaço. Atrai pequenos agricultores, cujas terras são necessárias para a rede de poços. Esconde informações de quem se viu no meio do caminho do óleo e do gás.

Vista de drone de canos colocados em fila em uma estrada curva aberta no meio da floresta

Gasoduto em construção perto de unidade de tratamento de gás no campo de Azulão - Lalo de Almeida/Folhapress

Integrantes de comunidades locais relatam que funcionários da Eneva destacados para o convencimento sobre o aluguel das terras se negam a fornecer cópia do contrato para leitura antes da assinatura. Também há omissão sobre a possibilidade de que o pagamento seja de uma vez, não fracionado mês a mês. Eles citam ainda ameaças de perda do terreno por meio de ordem judicial.

Há quem resista. Desde dezembro de 2023, o agricultor Francisco Correia, 51, recebe visitas de funcionários da Eneva com proposta para alugar parte do terreno onde vive –mais especificamente o pedaço de terra usado para plantação de mandioca, que é a base da farinha produzida pela própria família. A roça cederia lugar à via do gasoduto.

A proposta feita foi de R$ 3.500 por ano, menos de R$ 300 por mês, segundo Francisco, que não a aceitou.

“Não estou empatando a passagem. Estou questionando um preço justo”, diz o agricultor. “Aí eles seguem vindo aqui, e precisei arrumar um advogado.”

Homem segura facão ao lado de plantas

O agricultor Francisco Correia, 51, em plantação de mandioca no seu sítio, que está no trajeto de um gasoduto do campo de Azulão - Lalo de Almeida/Folhapress

Francisco tem um financiamento rural em aberto, captado para custear uma plantação de andiroba. O crédito tem o valor de R$ 16 mil. A Eneva, conforme o agricultor, quer pagar cerca de R$ 7.000 pela roça que seria tratorada.

“Eu disse que está pouco. Não vendo só a farinha, vendo goma e tucupi. A empresa quer dar esmola”, afirma ele.

O impasse em torno do terreno almejado para o gasoduto –uma porção de 300 metros de comprimento e 35 metros de largura– permanece. “Eu vivo do meu trabalho. Tenho nove filhos e é daqui que tiro meu sustento e minha renda.”

O empreendimento da Eneva vem transformando a paisagem nesse ponto da amazônia ocidental. Há obras e abertura de poços em diferentes trechos, embora a maioria das perfurações seja para prospecção, antes da exploração definitiva.

Todos os dias, entre 20 e 30 caminhões cruzam as rodovias, segundo moradores de casas e comunidades vizinhas às estradas. O destino é Roraima, principal consumidor do gás produzido, que abastece a usina termelétrica que garante o fornecimento de energia em parte do estado vizinho ao Amazonas.

Vista de drone de diversos tanques e pequenos edifícios o com a floresta ao fundo

Unidade de tratamento de gás no campo de Azulão, em Silves, no Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress

Silves, a cidade mais próxima ao complexo em fase de ampliação, parece não sentir os efeitos de um empreendimento desse porte. A cidade vive a calma de um município pequeno, e a movimentação maior se dá em Itapiranga, com obras na esteira da expectativa do gás e do óleo, como um hotel em construção.

“Existe uma certa decepção com o empreendimento”, admite o prefeito de Silves, Paulino Grana (Republicanos). “O município recebe, em royalties, entre R$ 140 mil e R$ 150 mil”, diz.

Mesmo assim, o prefeito é defensor do projeto. Diz que 500 pessoas de Silves trabalham na Eneva, um número próximo do que a prefeitura emprega, 700. Ele espera que os royalties se multipliquem por sete quando a termelétrica estiver funcionando. E aponta como principal legado a reforma de um prédio para o funcionamento de uma escola técnica.

Balsa com passageiros em um rio, atracada num píer

Balsa que faz o trajeto de Silves ao continente leva operários envolvidos nas obras do campo de Azulão - Lalo de Almeida/Folhapress

Para a perfuração de diversos poços até agora, segundo Grana, a empresa faz uso de áreas do município, do estado do Amazonas, de posseiros e de proprietários privados, além de um território tradicional reivindicado pelo povo mura.

A reportagem conseguiu mapear dez poços na região entre Itacoatiara, Silves e Itapiranga. O sistema de dados públicos da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) diz que foram 12 perfurações desde 2021.

Quatro poços estão no território reivindicado por famílias muras, a Terra Indígena Gavião Real. Da rodovia até o local de dois poços, por uma estrada de terra que os indígenas dizem ter sido aberta pela empresa, são 20 quilômetros. O rio Anebá está a 400 metros do local, e há aldeias próximas.

A Eneva, em nota à reportagem, afirma que a estrada foi aberta por outra empresa, a Mil Madeiras, “anos atrás, para manejo [florestal] na área”.

Homem com cocar de costas com dutos na frente dele e a floresta ao fundo

Jonas Mura, liderança do povo mura, observa uma válvula instalada em um poço de gás perfurado dentro da Terra Indígena Gavião Real, em Silves - Lalo de Almeida/Folhapress

“Aqui era o braço de um igarapé que servia como caminho para caça. Aterraram o igarapé para a estrada, não dá para passar de canoa mais”, diz Jonas Mura, cacique geral da terra indígena, enquanto percorre os acessos aos poços. As comunidades, compostas por 1.360 indígenas, em sete aldeias, tentam a demarcação do território junto à Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

Jonas se tornou o rosto mais conhecido da oposição ao empreendimento de óleo e gás nesse ponto da amazônia. Ele diz ter sofrido ameaças de morte e está inserido num programa de proteção, com acesso direto a forças policiais.

A Eneva afirma que não foram identificadas terras indígenas a menos de 25 quilômetros dos empreendimentos. “Foram consideradas todas as terras descritas nas bases de dados da Funai.”

Um representante da Eneva disse, em agosto de 2023, em reunião com o MPF (Ministério Público Federal), que “a Funai precisa dizer onde estão os indígenas”.

A Procuradoria da República no Amazonas pediu, em ação na Justiça Federal, a suspensão de processos de licenciamento e da exploração de poços de óleo e gás onde há sobreposição com comunidades tradicionais, além da transferência do licenciamento ao Ibama. A Justiça nega o pedido.

Vista aérea de lugar desmatado em meio à floresta densa

Poço de gás natural localizado na Terra Indígena Gavião Real, do povo mura - Lalo de Almeida/Folhapress

Uma das aldeias do território tem um posto de saúde indígena. O Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena) de Manaus, vinculado ao Ministério da Saúde, informou ao MPF que 166 famílias indígenas são atendidas pelo distrito na região de Silves.

“Os parentes de lá estão prejudicados e são diretamente afetados pelos empreendimentos”, afirmou o Dsei à Procuradoria.

Desde o início de 2024, existe uma nova preocupação: a possível presença de indígenas isolados –que não desejam contato com não indígenas ou com outros indígenas– em uma área de floresta próxima do empreendimento da Eneva.

Plataforma com equipamentos no meio da floresta com uma grande chama acesa

Extração de gás natural ao lado de unidade de tratamento no campo Azulão, da Eneva - Lalo de Almeida/Folhapress

O avistamento de uma família, com possibilidade de que seja de um povo em isolamento voluntário, foi feito pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) de Itacoatiara, que comunicou a Funai. Técnicos do órgão federal fizeram, então, um trabalho de campo em busca de indícios sobre os isolados.

Um documento da Diretoria de Proteção Territorial da Funai, elaborado em 19 de junho, afirma: “O local exato do avistamento dista tão somente 31 km em linha reta da área da Eneva para prospecção de gás”.

A diretora de Proteção Territorial, Maria Janete Albuquerque, disse ainda no ofício que vestígios da passagem de indígenas isolados foram encontrados, que existe “alta probabilidade” de presença de um povo em isolamento voluntário na região do igarapé Caribi e que o grupo seria “altamente vulnerável”, em razão da prospecção de gás e do manejo de madeira.

“Recomendamos fortemente a suspensão imediata das atividades de exploração de gás realizada pela empresa Eneva e do plano de manejo florestal por parte da Mil Madeiras Preciosas”, sugeriu a diretora da Funai. Áreas usadas pela Mil Madeiras se confundem com áreas usadas pela Eneva, como indicam placas nos lugares de exploração.

Placa com os dizeres Greatoil Bem Vindo a RIG 105 em um acostamento com mata ao fundo

Placa sinaliza perfuração de um poço de gás natural na estrada que liga Itacoatiara a Silves - Lalo de Almeida/Folhapress

A empresa de gás afirmou que a própria Funai disse “de forma clara” que não há registro no banco de dados do órgão sobre a existência de indígenas isolados na região.

A cada dia, o projeto da Eneva –companhia que tem BTG Pactual, Cambuhy, Dynamo, Atmos e Partners Alpha em sua estrutura societária– se expande e se consolida na floresta. Segue o caminho do empreendimento de gás e termelétricas tocado pela mesma empresa no Maranhão.

José Carlos e Alzira, que passam os dias observando o trabalho de operários em um poço de gás aberto praticamente no quintal de casa, acreditam que está cada vez mais próxima a exploração do combustível fóssil a ser extraído da terra onde vivem há mais de 20 anos.

“Estão fazendo a canalização, a linha do gasoduto. Deve estar próximo de tirar”, diz ele. “O que ninguém da Eneva explicou até agora foi: com quem fica o dinheiro desse gás que vai sair daqui?”

Vista de drone de poço aberto em terreno com terra laranja

Poco de gás natural no terreno do agricultor José Carlos da Silva na zona rural de Itapiranga, no Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress

ENTENDA A SÉRIE

A série de reportagens Amazônia na Rota do Petróleo conta os riscos para o meio ambiente e para as comunidades próximas associados a projetos de exploração de combustíveis fósseis na maior floresta tropical do mundo. Para os três capítulos do trabalho, o repórter Vinicius Sassine, correspondente da Folha na região, e o repórter fotográfico Lalo de Almeida visitaram locais com empreendimentos de óleo e gás já instalados ou em avaliação.

Reportagem e coordenação Vinicius Sassine e Lalo de AlmeidaIdealização Vinicius SassineEdição de textos Giuliana de ToledoEditor de fotografia Otavio ValleEdição de fotografia Lalo de Almeida Tratamento de imagem Edson Salles e Fabiano VitoEditor de arte Kleber BonjoanCoordenação de Infografia Adriana MattosInfografia Gustavo QueiroloDesign Irapuan CamposCoordenação de desenvolvimento Rubens Fernando AlencarDesenvolvimento Rubens Alencar e Pilker