Desmatamento e irrigação de lavouras fazem minguar rios do cerrado
Troca de vegetação nativa por monoculturas prejudica absorção da água pelo solo e impacta lençóis freáticos
Troca de vegetação nativa por monoculturas prejudica absorção da água pelo solo e impacta lençóis freáticos
“Acabaram as árvores. Gente, quem puxa água são as árvores! E cadê as árvores, pelo amor de Deus?”, indigna-se o agricultor Felicio Simplicio da Guarda, 72. “Os bichinhos eu não sei o que é que viraram. Eles derrubaram tudo, aí não sei para onde vão os bichos”.
Ele viu o lugar em que vive, na zona rural do município baiano de São Desidério (872 km de Salvador), mudar completamente nas últimas quatro décadas. A transformação veio com as grandes fazendas, que começaram a se espalhar pela região e substituir o cerrado, que até então cobria tudo.
O município é o que mais desmatou o bioma em 2023, com 417 km² de vegetação perdidos, segundo dados do sistema Prodes, do Inpe (Instituto Brasileiro de Pesquisas Espaciais).
Morando desde a juventude às margens do rio Guará, Guarda se acostumou a organizar a vida ao redor do seu regime de secas e cheias, que já não é o mesmo. No meio de março, quando a reportagem o visitou, em plena estação chuvosa, o rio estava correndo dentro de sua calha natural –e não transbordando pelo vale, como era esperado.
“Num tempo desse, com mais ou menos 25, 30 metros de distância, você não conseguia encostar [na calha do rio]. Você olhava e era um mar. Lá do outro lado você não sabia onde era o rio e onde era seco”, conta.
“Você só conhecia onde era a calha do rio por causa das copas do buriti”, completa a esposa dele, Hermelina Sofia da Guarda, 71, nascida e criada ali. O buriti é um fruto típico do cerrado, que nasce em palmeiras altas e sempre em áreas alagadas.
Na década de 1980, eles chegaram a demolir a casa em que viviam com os filhos para se proteger dos alagamentos do Guará, construindo um novo lar um pouco mais afastado do rio. Hoje, a pedra que marca o lugar onde ficava o antigo quarto do casal, distante aproximadamente dez metros da margem, não chega nem perto de ficar submersa na estação chuvosa.
“Desde quando começaram esses trabalhos nessas beiras de rio, a água só vem diminuindo. Aqui não tinha firma em canto nenhum, eram só os gerais. Agora, daqui até a cabeceira do rio, você não anda mais em mato, é só firma”, relata Felício, se referindo aos grandes projetos agropecuários que passaram a ocupar o espaço da vegetação típica do cerrado, chamado na região de “gerais”.
Circulando pela região é fácil entender o que isso significa. Por toda parte há áreas muito extensas demarcadas por cercas, onde não se enxerga o final das plantações, e os quatro cantos das fazendas são guardados por seguranças armados.
Há também diversos trechos recém-desmatados, em que as raízes das árvores estão empilhadas em longas fileiras, conhecidas como leiras, ao longo de todo o terreno. Na sequência, elas serão queimadas para abrir espaço para a produção.
No cerrado, a relação direta do desmatamento com a diminuição na vazão dos rios se dá tanto pela diminuição das chuvas quanto pela troca da vegetação nativa pela monocultura.
As plantas nativas, adaptadas ao clima e ao solo do bioma, têm raízes que chegam a ser de duas a três vezes maiores do que a parte visível fora da terra. É por meio dessas longas estruturas que a água da chuva escorre e vai parar nos lençóis freáticos, alimentando as oito regiões hidrográficas que nascem ali (são 12 ao todo no Brasil).
No entanto, cultivos como a soja têm raízes curtas. Isso torna o solo compactado, impedindo a absorção da água e prejudicando a recarga dos aquíferos, já que as plantações estão localizadas, em grande parte, nos chapadões, onde chove mais.
São Desidério também está entre os primeiros colocados de outro ranking, o do PIB agrícola do país, elaborado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 2022, ficou em quinto lugar, com R$ 7,6 bilhões em produção, sendo que 56% desse valor veio da soja.
Um levantamento do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) sobre o primeiro semestre do ano passado destaca que o desmatamento do cerrado teve um perfil específico, com áreas extensas perdidas dentro de poucos imóveis. Em São Desidério, apenas 30 propriedades foram responsáveis pelo desmate de 182 km² no período.
“Essa história de que o agronegócio cresce otimizando a produção não existe no oeste baiano. Aqui a safra de soja cresce com desmatamento”, afirma Martin Mayr, coordenador na ONG 10envolvimento. Austríaco, ele se mudou para a região há mais de 30 anos, para atuar junto às comunidades tradicionais em temas relacionados à reforma agrária.
Um levantamento do Imaterra (Instituto Mãos da Terra) lançado em dezembro de 2022 analisou 5.126 portarias de autorização de desmate –conhecidas pela sigla ASV (autorização de supressão de vegetação nativa)– emitidas pelo governo da Bahia de setembro de 2007 a junho de 2021.
No período, o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos), órgão estadual responsável pelo tema, permitiu o desmate de mais de 9.925 km² de vegetação nativa. Deste total, 80% ficavam em apenas duas bacias hidrográficas do oeste baiano, as dos rios Corrente (2.629 km²) e Grande (5.355 km²), onde fica São Desidério.
Mayr critica o fato de que os pedidos tendem a ser aceitos tal qual foram feitos. “Em quase todas as requisições o fazendeiro pede, por exemplo, para desmatar 3.227 hectares e recebe a autorização para 3.227 hectares”, diz o ativista, ressaltando que as ASVs normalmente são atreladas a várias condicionantes, mas que a execução dessas medidas não é fiscalizada.
Ainda assim, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, mais da metade (54%) do desmatamento nos estados do Matopiba (região na qual Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia se encontram e onde está concentrada a maior parte do desmate do cerrado) acontece sem autorização.
Além da remoção da vegetação, a captação de água, seja dos rios e córregos seja dos aquíferos, para uso na irrigação de lavouras impacta as bacias hidrográficas, que abastecem a região e boa parte do Brasil.
“O pantanal depende totalmente da água das partes altas, que são ocupadas pelo cerrado. Ele é abastecido pela água que vem do cerrado”, explica Mercedes Bustamante, professora do departamento de ecologia da UnB (Universidade de Brasília). Também é no bioma que nascem outros rios célebres, como Doce, Jequitinhonha, Paraíba, Tapajós, Xingu e afluentes do Madeira.
“Setenta por cento da vazão do rio São Francisco saem dos 40% da bacia do São Francisco que estão no cerrado. Parte da água do cerrado drena também para a bacia do Araguaia-Tocantins, que vai para o Norte, e a bacia do Paraná, que tem uma importância energética enorme. Então, você tem a questão energética e tem a questão do suprimento de água para o Brasil como um todo”, acrescenta a pesquisadora.
O mesmo estudo do Imaterra que analisou as ASVs examinou, ainda, as outorgas para captação de água concedidas pelo Inema no oeste baiano de setembro de 2007 a setembro de 2022. Foram 835 autorizações, que permitiram a captação de 17 bilhões de litros de água por dia nas bacias hidrográficas dos rios Grande, Corrente e Carinhanha.
De acordo com o levantamento, o volume total seria suficiente para abastecer, diariamente, sete vezes a população de todo o estado da Bahia ou nove vezes todos os moradores da cidade de São Paulo.
O Inema foi procurado para comentar os dados e os problemas contados pelas comunidades, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
No Matopiba, basta conversar com quem depende da água dos rios para ouvir críticas quanto à concessão de outorgas e suas consequências. Em Correntina, município vizinho de São Desidério, são comuns os relatos sobre migração das nascentes.
Sem volume nem força suficientes para brotar nas partes mais altas do terreno, a água recua e as nascentes vão descendo.
“A nascente desse rio aqui já perdeu quilômetros, foi secando”, conta Aliene Barbosa e Silva, 43, criada às margens do rio Arrojado, um dos mais importantes da região. “A nascente era um lagoão e dela corria o rio. Esse lagoão secou. Você só vê os vestígios porque lá ainda têm uns buritis.”
Na época de cheia, da varanda da casa é possível ouvir a água correndo com força pelas pedras de uma cachoeira que corta o terreno. O lugar já despertou o interesse de empresários que queriam criar uma pequena central hidrelétrica ali, mas a família não aceitou vender a terra, mesmo notando que as últimas décadas têm sido de cada vez menos água e secas mais severas.
“Agora, que está no período de cheia, o Arrojado não tem nem metade da água que tinha”, diz o pai de Aliene, o agricultor João Abreu e Silva, 80. “Ninguém vive sem água. Nada, nada, nada vive sem água. E do jeito que o rio está aí, do jeito que eles estão fazendo, ele vai acabar.”
“A gente vê o rio baixando ano a ano. Porque o agro só cresce, as fazendas só crescem. E quanto mais elas crescem, maior o consumo de água”, completa a filha.
Dentro das fazendas, os canais de irrigação, grandes valas cobertas por lonas grossas, formam verdadeiros rios dentro das propriedades. O tamanho de alguns dos encontrados pela Folha é comparável ao do próprio rio Guará, que abastece a casa de Felício e Hermelina.
Muitas vezes, há também piscinões para acumular a água, formando uma espécie de lago artificial que vai ajudar a regar toda a lavoura –comumente, com o uso de imensas estruturas chamadas de pivôs centrais. São esses equipamentos, que se movem girando em torno de um eixo, os responsáveis pelo característico formato redondo de muitas plantações da região.
Um artigo científico de 2023 liderado por Yuri Salmona, pesquisador da UnB e diretor-executivo do Instituto Cerrados, analisou o impacto do desmatamento e do clima nos rios do cerrado, comparando a variação no fluxo entre 1985 a 2022.
O estudo concluiu que o Arrojado perdeu 18,2% da sua vazão média, sendo que 56% dessa perda se devem à ocupação da terra pela agricultura e 44% a mudanças climáticas. A análise também projeta uma perda acumulada de 36,2% na vazão do rio até 2050.
E esse não é um caso isolado. Das 81 bacias analisadas, 87,7% registraram diminuição na vazão dos rios por mudanças no uso do solo (em geral, desmatamento para agropecuária) e 85,2% tiveram queda devido às mudanças climáticas. Enquanto o clima contribuiu com 43,3% da redução da vazão, o avanço da agropecuária sobre o cerrado levou a uma baixa de 56,7% no fluxo das bacias.
“A qualidade da água também é influenciada pela quantidade de água que você tem”, lembra Bustamante. Assim, com a vazão reduzida, rios e córregos podem também acabar com a água mais barrenta e até mesmo mais contaminada.
Os relatos de cheiro de agrotóxicos na água também são frequentes pelo Matopiba, assim como os de doenças intestinais e de pele associadas ao uso dos rios e córregos.
No Tocantins, na região do Jalapão, a comunidade que divide o nome e depende do rio Galhão queixa-se do problema.
“Esses dias atrás deu uma chuva forte, e aí quando tomava banho ficava todo mundo com o corpo coçando, como se fosse uma alergia. Outros ficaram manchados, cheio de caroço. E é por causa da água, que vem com veneno”, relata Jardilene Alves Batista, 43, que tem um pequeno restaurante na entrada do povoado.
A comunidade fica no vale logo abaixo dos chapadões, que são tomados por lavouras de soja e milho. “Quando chove forte, vem aquele cheiro que a gente sabe que é do veneno mesmo, porque quando a gente vai na lavoura, a gente sente o mesmo cheiro”, diz.
Outros moradores da região que preferiram não se identificar por trabalharem ou terem familiares empregados nas fazendas contam que o uso dos agrotóxicos é constante. A aplicação é feita tanto por meio de pequenos aviões quanto por tratores, que os funcionários pilotam sem qualquer tipo de equipamento de proteção.
“Nós ficamos realmente com muito medo, porque o veneno traz muita doença”, afirma Batista. “Esses dias atrás, eu vi que o pessoal estava com diarreia, vomitando. Antes não tinha isso, então só pode ser por causa do veneno dessas lavouras. Para nós é complicado, porque a palavra do pobre não é nada. Para o rico, resolvem tudo.”
Em nota, o governo do Tocantins informou que, desde janeiro de 2022, foram realizadas 208 ações de fiscalização relacionadas a agrotóxicos em quatro municípios do Jalapão, incluindo Mateiros, tanto em propriedades rurais quanto em pontos de revenda.
Também afirmou que o estado possui um plano de gestão dos recursos hídricos e que a qualidade da água é monitorada em dois rios da região do Jalapão, Preto e Novo. Desde 2022, segundo o órgão, foi encontrada uma quantidade “muito pequena” de agrotóxicos, sendo que “o potencial de autodepuração do rio é suficiente para manter a qualidade da água de maneira aceitável”.
Quanto à outorga de água, a gestão Wanderlei Barbosa (Republicanos) diz que os pedidos são analisados pelo Naturatins (Instituto Natureza do Tocantins) e que “nenhum manancial pode ser outorgado em mais de 75% da sua vazão de referência e cada usuário não pode ter uma vazão outorgada de mais de 25% da vazão de referência”.
O governo afirma ainda adotar medidas de combate ao desmatamento ilegal, como fiscalizações em campo, e que foi criado grupo de trabalho para definir outras ações prioritárias.
No ano passado, uma pesquisa organizada pelo coletivo Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e pela Comissão Pastoral da Terra, em parceria com a Fiocruz, realizou análises toxicológicas das águas de sete comunidades tradicionais e de agricultura familiar do bioma. Foi escolhido um território em cada um dos estados de Tocantins, Goiás, Maranhão, Piauí, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Bahia.
Em todas as comunidades foi identificado ao menos um resíduo de agrotóxico, sendo que ao todo foram encontrados 13 tipos diferentes de ingredientes ativos dos defensivos agrícolas nas águas. Entre eles, estão o fipronil, que é letal para abelhas, e o glifosato, suspeito de causar câncer.
O estudo mostrou também que, dos 494 ingredientes ativos com uso autorizado em plantações no Brasil, quase 44% podem ser utilizados na soja.
ENTENDA A SÉRIE
A série de reportagens Cerrado Loteado, em quatro capítulos, explica como o avanço do agronegócio sobre a vegetação nativa encurrala comunidades, influencia o clima e ameaça a segurança hídrica.