Comunidades tradicionais do cerrado são encurraladas pelo agronegócio no Matopiba
Produtores ocupam territórios ancestrais, praticam “grilagem verde” e geram desmatamento e conflitos
Produtores ocupam territórios ancestrais, praticam “grilagem verde” e geram desmatamento e conflitos
A manhã de sábado começa agitada no centro de Correntina (BA), a 918 km de Salvador, na divisa com Goiás. Munidos de martelos e serrotes, cerca de 50 homens se reúnem em uma praça enquanto aguardam a chegada da polícia e se protegem do sol forte do cerrado sob chapéus de palha e bonés.
Eles fazem parte de diferentes comunidades de fundo e fecho de pasto, prática tradicional em que animais são soltos para se alimentar em áreas públicas de uso coletivo, e serão escoltados para reconstruir um rancho centenário. A estrutura ficava em uma região disputada por fazendeiros dentro do território reivindicado pelo fecho da Vereda da Felicidade.
Historicamente, a construção servia de abrigo durante os meses de seca, quando faltava água e capim nas pequenas propriedades dos fecheiros, como se identificam, e o gado era levado para pastar em áreas abertas do cerrado. Porém, em meio à presença crescente de pistoleiros na região, o rancho já foi derrubado diversas vezes e sua reconstrução se tornou arriscada.
Com a chegada de duas viaturas da Polícia Militar, os homens partem em paus-de-arara pela BR-249 na direção da zona rural, que compõe a maior parte do município de 11.504 km² (equivalente a sete vezes a área da cidade de São Paulo).
Correntina ocupa o sexto lugar no ranking das cidades que mais desmataram o cerrado em 2023, com quase 208 km² de vegetação nativa perdidos, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Fica no epicentro do desmate no país, o Matopiba, como é conhecida a região onde Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia se encontram e que concentrou 72% dos 11 mil km² derrubados de cerrado em 2023.
O bioma, rico em biodiversidade e fundamental para a segurança hídrica brasileira, vem tendo números cada vez mais altos de desmate, que é impulsionado pelo agronegócio. E, com a busca pela expansão de terras, principalmente para cultivo de soja, milho e algodão, vem a escalada dos conflitos no campo.
No caminho até o fecho de pasto, o cenário se divide entre plantações, que ladeiam a estrada por quilômetros, e áreas de vegetação nativa, demarcadas por placas sinalizando que ali é uma reserva legal –área de preservação obrigatória em propriedades privadas.
De acordo com o Código Florestal, de 2012, imóveis no cerrado precisam manter em pé no mínimo 20% da vegetação nativa (ou 35%, em áreas de transição para a floresta amazônica). Porém, essa reserva pode ser compensada em outra propriedade do mesmo dono, desde que fique no mesmo bioma.
Assim, terras públicas não destinadas ou que fazem parte de territórios tradicionais e têm vegetação preservada acabam virando alvo da chamada “grilagem verde”. Nessa modalidade, grileiros se apropriam dessas áreas para registrar ali sua reserva legal.
Na prática, ganham mais margem para desmatar nas suas propriedades e encurralam as comunidades.
“Agora vocês estão entrando no faroeste. Todos esses gerais aqui estão em disputa”, conta Marcos Rogério Beltrão dos Santos, geraizeiro e ativista do Movimento Ambientalista Grande Sertão Veredas.
Gerais (sempre no plural) é o nome dado às grandes extensões de cerrado cobertas por vegetação nativa que, antes da chegada das imensas fazendas de monocultura e pecuária, dominavam a região. E geraizeiros é como são chamados os integrantes de diferentes grupos tradicionais que ali habitam, caso das comunidades de agricultura familiar de fecho e fundo de pasto.
“Daqui até Goiás, não tinha um palmo de cerca. Hoje você não consegue nem sair da cidade e já tem cerca e guarita”, diz Santos.
“Até os anos 1970, tudo isso era o território das comunidades tradicionais”, afirma ele, apontando em um mapa o extremo oeste baiano. “Aí, as comunidades foram sendo tocadas para baixo [dos chapadões]. E o que a gente conseguiu segurar foi esse pedaço aqui.”
Esse pedaço é onde ficam fechos de pasto como a Vereda da Felicidade, região usada há mais de 200 anos tanto para o extrativismo quanto para a pastagem, especialmente nos meses em que a chuva é escassa.
“Na seca a gente sofre muito com gado. Para não ver o gado morrer, a gente traz para cá. Aqui o pessoal também extrai pequi, cascudo, buriti… Tem gente que vive só disso”, explica Adauto Delgado, 48, que faz parte do fecho Cupim, Sumidor e Cabresto e veio ajudar no mutirão de reconstrução do rancho.
Nesta ocupação coletiva da terra, diferentes famílias usam espaços compartilhados, que chegam a ficar a dezenas de quilômetros de suas casas, para criar gado e coletar frutos e ervas medicinais para subsistência e comércio. Como esse modo de vida depende do cerrado em pé, as áreas tradicionais se mantiveram preservadas.
Delgado relata que tanto na Vereda da Felicidade quanto no Cupim não é mais possível trazer os animais para pastar, devido aos conflitos com fazendeiros. Mas, ainda assim, os posseiros seguem marcando presença para que esse uso tradicional não seja apagado pela sobreposição das grandes fazendas aos territórios.
À medida que se aproximam do fecho, as estradas de terra passam a ser regra e os agricultores, na caçamba dos caminhões, usam máscaras de tecido para se proteger da poeira. De tempos em tempos, precisam parar e abrir novos caminhos com facões, já que os acessos mais usados foram obstruídos com terra.
Chegando ao fecho, eles se dividem em diferentes tarefas, desde pegar madeira para fazer o rancho até preparar a feijoada do almoço. Alguns fecheiros dizem ter perdido as contas de quantas vezes precisaram reconstruir a estrutura.
“Tem pessoas que vivem daqui, da extração de frutas do cerrado”, explica Dernevaldo Soares, 53, liderança do fecho Vereda da Felicidade. “Muitos companheiros aqui necessitam [desse espaço] para trazer os animais. O que eu defendo aqui é a água. O que eu defendo aqui é vegetação do cerrado em pé.”
Dentro do território reivindicado na Vereda da Felicidade, uma área de mais de 900 hectares foi desmatada em 2022 –cada hectare equivale ao tamanho de um campo de futebol.
A derrubada foi feita pela fazenda Santa Tereza III, uma das que se sobrepõem ao território reivindicado pela comunidade. O desmate aconteceu com autorização do Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos), órgão do governo da Bahia, mesmo com um processo administrativo aberto para avaliar a propriedade das terras.
A área de reserva legal da fazenda também está dentro do território requerido pelos fecheiros da Vereda da Felicidade.
Ao todo, oito fazendas se sobrepõem ao território de mais de 12 mil hectares do fecho de pasto, segundo dados da Coordenação de Desenvolvimento Agrário da Bahia.
No meio da tarde, com o rancho já em pé, o conflito latente se torna explícito. Em uma caminhonete chegam dois homens com uniforme da empresa Yamaguchi Agropecuária, acompanhados de um segurança armado.
Um deles, João, se identifica como gerente da fazenda Santa Tereza. Ele se recusa a dar o sobrenome para a reportagem, declarando apenas estar cumprindo ordens e que veio “ver o que estava acontecendo”.
“A gente não está aqui para tirar nada de ninguém”, diz aos policiais, sendo na sequência questionado por Soares sobre por que, então, o rancho centenário tinha sido destruído. “Eu não estou aqui há cem anos”, responde João.
Afirmando que garantiria a segurança durante a reconstrução, o sargento da PM responsável pela ação medeia a conversa acalorada e logo os representantes da fazenda partem. Mesmo passado o confronto, o clima de tensão permanece.
“Isso aqui é a nossa cultura. Como é que nós não vamos defender? Nós somos posseiros, nós temos mais de 200 anos aqui dentro. Como é que a terra não é nossa?”, questiona Delgado. “Nós sabemos que aqui a terra é devoluta, terra do estado. E nós somos posseiros. Se o governo tiver de dar concessão e um contrato para quem é de direito, somos nós”, opina.
Procurado, Alexandre Yamaguti, um dos três proprietários da Santa Tereza III, afirma em nota que comprou a fazenda em maio de 2022 “com todos os procedimentos legais e registros em cartório impecavelmente cumpridos”. Ele diz que, no ato da aquisição, “não havia ocupações de terceiros ou benfeitorias na propriedade, e ela estava livre de quaisquer reivindicações ou tentativas de invasão”.
Yamaguti classifica a tentativa de construção do rancho de “ilegal em vários aspectos” e diz que a presença do segurança armado contratado pela fazenda “visa assegurar a integridade física de nossos funcionários”. Ele relata, ainda, que a segurança teria sido intensificada após um ataque de 15 homens armados contra a propriedade, em 2022.
“Confiamos que os registros e a documentação legal da fazenda, alinhados com a legislação aplicável, ajudarão a clarificar e resolver a situação. Além disso, desejo frisar que continuamos investindo muitos recursos na área, e que já estamos produzindo alimentos, gerando renda e empregando pessoas do entorno”, diz o proprietário.
A reportagem esteve no local para a reconstrução do rancho no dia 13 de março. Segundo relatos dos fecheiros, a estrutura foi novamente demolida poucos dias depois.
Os moradores relatam um recrudescimento da violência na região nos últimos anos, com a presença ostensiva de pistoleiros armados, roubo de gado e derrubada de cercas. Esses confrontos e esse modelo de ocupação agressiva se repetem pelo país, especialmente nas regiões Nordeste e Norte.
Os conflitos por terra cresceram 7,6% no Brasil em 2023, chegando a 1.724 ocorrências, segundo levantamento da CPT (Comissão Pastoral da Terra). A Bahia foi o estado com maior número de casos (202), seguida de Pará (183) e Maranhão (171).
Ainda segundo a CPT, os posseiros representaram quase um quinto das vítimas de violência por terra em 2023, atrás apenas de indígenas.
O governo estadual e o Tribunal de Justiça da Bahia foram procurados pela reportagem para comentar os casos, mas não responderam aos questionamentos até a publicação.
No extremo sul do Piauí, os ribeirinhos e brejeiros do território de Melancias, no município de Gilbués (766 km de Teresina), também viram suas terras virarem alvo de cobiça.
Em época de chuva, a chegada à comunidade é marcada pela travessia cuidadosa dos diversos cursos d’água que cortam a estrada de terra e desaguam no rio Uruçuí Preto. São poucas casas, a maioria ao lado de pequenas hortas, algumas galinhas e cavalos.
“Lá em cima já tiraram toda a vegetação. Se tirar aqui dentro também, acaba”, conta Juarez Celestino de Souza, 66, uma das lideranças da comunidade. “Nós estamos cercados.”
O agronegócio ocupou a maior parte das chapadas que circundam o território, espalhando-se através das divisas de diferentes municípios. A vegetação e as populações tradicionais ficaram confinadas aos vales, conhecidos como baixões, onde o relevo não permite a prática da monocultura intensiva.
“A partir dos anos 2010, foi se intensificando a grilagem para dentro dos baixões, que é onde estão as comunidades”, diz Souza, que relata que as grandes propriedades começaram a se instalar na região no início dos anos 2000.
Assim como no oeste baiano, ali também se multiplica a chamada grilagem verde. Com a busca por áreas para compensação da reserva legal pelos grandes produtores, hoje 17.989 hectares do território de Melancias têm reservas legais propostas ou já aprovadas, correspondendo a 80% do território requerido pela comunidade, que habita a região há 120 anos.
Os dados são do estudo “Na Fronteira da (I)Legalidade: Desmatamento e Grilagem no Matopiba”, elaborado pela Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais e pelo Instituto Federal Baiano, campus Valença.
“A gente não tem uma vida livre. A gente tinha áreas para plantio, para criar gado. Hoje não pode mais”, afirma João Henrique Pereira Mendes Filho, 56, liderança do Riacho dos Cavalos, uma das seis comunidades que compõem o território de Melancias. Em reservas legais, esse tipo de atividade não é permitida.
Com isso, os moradores, que dependem da agricultura familiar e do extrativismo do cerrado, perdem uma fonte de alimentação, renda e uma parte essencial do seu modo de vida.
“Teve uma vez que eu peguei meu gado daqui, que estava passando fome, e botei para lá [onde há a reserva legal]. Eles vieram com a polícia tirar o gado”, conta.
Mendes Filho explica que o território requerido pela comunidade é composto por diferentes tipos de vegetação, como brejo, vereda e chapada, sendo desde fonte de pesca até pastagem para os animais. “Eu não posso abrir mão de nada, de nenhuma área”, afirma. “Não tem uma área dessa região aqui onde nós moramos que não tenha utilidade.”
Ele reclama da demora do poder público em demarcar o território, que já é reconhecido como tradicional desde 2017. “Tendo documento do cartório, do estado, a gente tem outra força.”
Em nota, o governo do Piauí diz que o território de Melancias está em processo de regularização fundiária desde 2020, mas o Judiciário ainda não concluiu a convocação dos proprietários e eventuais posseiros estranhos à comunidade.
Afirma, ainda, que a regularização fundiária de territórios de povos e comunidades tradicionais é uma política prioritária da gestão, que tem a meta de finalizar a análise de todos os 125 processos em andamento no estado nos próximos três anos.
“O Interpi (Instituto de Terras do Piauí) tem ciência e é sensível aos riscos da expansão de áreas de reserva legal de fazendas produtivas sobre os territórios”, diz. “O governo do estado mantém contato permanente com movimentos sociais e acredita no desenvolvimento rural sustentável e que consiga agregar valor a sua produção através de investimentos que passem pela ciência, inovação, redução de desigualdades e geração de oportunidades locais e não pela utilização desordenada, irresponsável e criminosa de nossos recursos naturais finitos.”
O governo afirma também que vem ampliando medidas de combate ao desmatamento, como ações de fiscalização em campo e de maneira remota.
ENTENDA A SÉRIE
A série de reportagens Cerrado Loteado, em quatro capítulos, explica como o avanço do agronegócio sobre a vegetação nativa encurrala comunidades, influencia o clima e ameaça a segurança hídrica.