Unidades de conservação, que ajudam a frear desmate, protegem menos de 10% do cerrado

No Jalapão, ‘mosaico’ de nove áreas impede avanço de fazendas sobre vegetação nativa

Pela BA-247, a divisa da Bahia com o Tocantins é verde e amarela: são quilômetros de fazendas de soja, milho e algodão, tingindo o horizonte por horas, numa paisagem praticamente inerte.

De tempos em tempos, o silêncio é cortado pelo motor de pequenos aviões que sobrevoam as lavouras despejando veneno e espalhando um cheiro ácido, parecido com água sanitária. Levados pelo vento, os agrotóxicos fazem arder os olhos e coçar a garganta mesmo de quem está dentro do carro, só de passagem.

Uma vasta plantação sob um céu nublado estende-se até o horizonte, com nuances de verde e amarelo dominando a paisagem

Lavoura de soja em uma fazenda na zona rural de Luís Eduardo Magalhães, no oeste da Bahia - Lalo de Almeida/Folhapress

Na rodovia, ora asfaltada, ora de terra, é difícil encontrar uma lanchonete, posto de combustível ou sinalização de trânsito, ainda que não faltem placas com nomes de diferentes propriedades rurais.

A reportagem da Folha, inclusive, precisou pedir informações para um caminhoneiro, mas ele não sabia dizer para que lado ficava o município de Mateiros (TO). “Aqui eu só sei o caminho das fazendas”, respondeu.

Uma estrada de terra molhada se estende até o horizonte, ladeada por uma variedade de placas de propaganda e sinalização

Na estrada, placas orientam sobre a direção de diversas fazendas, no município de Formosa do Rio Preto (BA) - Lalo de Almeida/Folhapress

Mateiros (cerca de 305 km da capital, Palmas) é a porta de entrada para o Jalapão, região que atrai turistas por suas chapadas, dunas e águas cristalinas, na porção leste do Tocantins. Ao chegar, o contraste da monotonia do mar de soja com a biodiversidade do cerrado é gritante.

Logo em uma das primeiras veredas, onde a vegetação densa cerca as nascentes, foi possível avistar na beira da estrada um lobo-guará, que rapidamente se enfiou no mato ao perceber o carro se aproximando. Longe das plantações, o calorão fica um pouco mais ameno, o ar passa a ter cheiro de terra e a trilha sonora fica por conta das araras.

Ali, áreas protegidas por lei seguram o avanço do correntão (método de desmate em que uma corrente grossa é presa a dois tratores, que se deslocam em linha reta, arrancando as árvores pela raiz) sobre o cerrado. É o chamado Mosaico do Jalapão, conjunto de nove unidades de conservação, com quase 30 mil km², que se espalham por municípios de Tocantins, Bahia, Piauí e Maranhão.

Águas de um córrego ao entardecer capturam o reflexo perfeito de palmeiras e o céu azul com nuvens

Buritis refletidos em uma lagoa de uma vereda no Parque Estadual do Jalapão, em Mateiros (TO) - Lalo de Almeida/Folhapress

São esses espaços que impedem que a paisagem nativa se perca completamente.

“Aqui está tudo tomado de fazenda, daqui até chegar em Formosa [do Rio Preto, na Bahia], em Corrente [no Piauí]”, conta Izidora Dias de Almeida, 71, referindo-se aos municípios vizinhos. “Estamos aqui no miolo delas [as fazendas], aqui na beira do rio.”

Uma mulher em um vestido estampado apoia a cabeça nas mãos, parada na entrada de uma casa rústica, com paredes de barro

Izidora Dias de Almeida, 71, em sua casa na comunidade do Galhão, na região do Jalapão - Lalo de Almeida/Folhapress

A aposentada, que só foi ter eletricidade na casa de barro em que vive no início dos anos 2000, com o programa federal Luz para Todos, acha que hoje a vida está menos difícil. Além de poder ter uma geladeira e água encanada, que vem da bomba ligada no rio Galhão, após a chegada das fazendas ela conta que o deslocamento melhorou.

Os caminhos que hoje são feitos de carro, mesmo em estradas muitas vezes precárias, antes eram percorridos de jegue, pelo meio da vegetação. “Daqui para Corrente eram três dias de viagem”, diz. A cidade fica a cerca de 200 km, mas o terreno é cortado por chapadões e vales. “Era cerrado até chegar lá.”

A reportagem passou por um trecho desse trajeto e encontrou um desmatamento “fresco”: uma área de aproximadamente 125 hectares onde as raízes das árvores ainda estavam enfileiradas, esperando o fogo, usado para limpar o terreno. O imenso retângulo de terra batida fica exatamente ao lado do limite da Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins.

Vasta área de terra desmatada, em contraste com o cerrado em pé, ao fundo

Área recém-desmatada de cerrado na divisa com a Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, no Jalapão - Lalo de Almeida/Folhapress

Dentro das UCs (unidades de conservação) é possível ter uma ideia de como era a região originalmente. São 560 áreas públicas com algum tipo de proteção no cerrado, mas elas cobrem apenas 9% da área do bioma. Em comparação, as 381 UCs da amazônia representam 29% da área total da floresta.

A criação dessas áreas é uma das ferramentas para preservar a biodiversidade, criar corredores de fauna, onde os animais tenham espaço para se locomover e buscar alimentos, e conter o desmatamento. A medida consta entre os objetivos do PPCerrado (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado), que teve a sua mais recente versão publicada em novembro passado.

Criado em 2009, o plano deveria ser revisado periodicamente, mas foi extinto durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL). Relançado pelo governo Lula (PT), o documento prevê ações em diferentes eixos, desde fiscalização até incentivo a atividades produtivas sustentáveis, a serem implementadas por diversos ministérios e órgãos federais.

Um rio sinuoso se entrelaça com bancos de areia dourada, cercado por uma vegetação densa e falésias ao fundo

Dunas no Parque Estadual do Jalapão, em Mateiros, no leste de Tocantins - Lalo de Almeida/Folhapress

André Lima, que chefia secretaria extraordinária do MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima) focada no controle do desmatamento, destaca que o cerrado tem uma grande quantidade de terras públicas não destinadas –ou seja, às quais não foi dado um uso específico.

São mais de 71 mil km² de terras federais não destinadas, segundo estimativas do governo, que não tem informações consolidadas sobre a quantidade de terras estaduais não destinadas na região.

“Nós precisamos priorizar essas terras para a criação de unidades de conservação e destinação para povos e comunidades tradicionais, articulando com os estados a situação de povos e comunidades tradicionais em terras públicas estaduais”, afirma.

Um homem e uma mulher idosos, sentados lado a lado em um banco rústico dentro de uma casa simples com paredes de barro

O casal de agricultores Neli Pereira Rocha de Sousa, 64, e Milton Ribeiro de Sousa,71, na cozinha de sua casa, no Quilombo Povoado do Prata, em São Félix do Tocantins - Lalo de Almeida/Folhapress

No último dia 5 de junho, o governo federal anunciou a criação de mais uma UC no cerrado, o Monumento Natural Cavernas do Desidério. O município de São Desidério, na Bahia, foi o que mais desmatou o bioma no último ano.

Dos 11 mil km² desmatados no cerrado de 2022 a 2023, 5% estavam dentro de unidades de conservação, principalmente em APAs (áreas de proteção ambiental), que permitem a existência de propriedades privadas no seu interior.

Em terras indígenas, que ocupam 4,4% da área do bioma, foi registrado apenas 0,66% do desmatamento no mesmo período, demonstrando que as populações que vivem nos territórios há séculos são parte fundamental de ações de conservação.

Mas, em territórios não titulados, o poder das comunidades de resistir a esses avanços fica enfraquecido.

“Esse desmatamento aqui, não sei se dá 2 quilômetros [de distância] das primeiras casas da comunidade. Acho que não dá, não”, conta o agricultor e estudante universitário Saulo Francisco de Sousa, 39, morador do Quilombo Povoado do Prata, em São Félix do Tocantins, também no Jalapão.

A casa dele é uma das mais próximas de uma grande área desmatada ilegalmente dentro do território da comunidade, no limite do Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba. O território está em processo de regularização fundiária desde 2005, mas ainda não foi titulado.

“A nossa sorte aqui foi o parque. Eles não desmataram ainda mais por causa do parque”, diz.

Um homem idoso olha pensativamente para o lado

Salomão Francisco de Sousa, 83, morador da comunidade quilombola do Prata, na região do Jalapão, posa para foto no interior de sua casa - Lalo de Almeida/Folhapress

“Tem muitos anos que a gente mora aqui. Nasci aqui e me criei”, descreve Salomão Francisco Sousa, 83, pai de Saulo. Ele viu a região se transformar, com o desmate alterando as cabeceiras dos rios e fazendo diminuir as chuvas. Presenciou também o surgimento do interesse turístico pelo Jalapão.

“Antes ninguém ligava para ‘olho d’água’", conta, se referindo aos chamados fervedouros, nascentes límpidas de areia branca, onde é possível se banhar sem afundar e que dão fama à região. “Tinha uns ‘fervedorzinhos’, a gente ia lá e ninguém ligava para isso, não. Tinha muita água.”

Por onde o correntão passou no território no início de 2023, nada ainda foi plantado, mas os moradores relatam que, por pressão de fazendeiros, já não podem deixar o gado pastar solto, como é o costume na região.

“Os projetos [como são chamadas as fazendas] estão chegando muito perto. Eles estão aqui, bem pertinho. Antes o bicho da gente comia, andava, não tinha cerca. Agora a criação [de gado] vai para dentro do projeto, eles não aceitam e a gente tem que diminuir a criação, criar pouco.”

Dentro do território de cerca de 600 km² reconhecido como de uso tradicional pelos quilombolas do Prata, outro grande desmatamento, um pouco mais afastado da vila onde vive a maior parte das famílias, já deu lugar a uma plantação de soja.

Vista aérea de uma paisagem dividida, mostrando uma nítida diferença entre a vegetação rasteira e áreas de terra exposta

Área desmatada de cerrado usada para o plantio de soja dentro do território da comunidade quilombola do Prata, no Jalapão - Lalo de Almeida/Folhapress

Carroceria de caminhão-tanque em meio a uma esparsa plantação de soja e ao lado da saída de um poço

Carroceria de caminhão-tanque em meio a plantação de soja dentro do território da comunidade quilombola do Prata, em São Félix do Tocantins - Lalo de Almeida/Folhapress

Os moradores dizem não conhecer os responsáveis pela destruição. “Os fazendeiros não se apresentam. Só chegam e metem as máquinas”, explica Saulo.

Segundo o Naturatins (instituto ambiental do governo do Tocantins), quando denúncias de desmatamento em terras quilombolas chegam aos órgãos estaduais, “são investigadas e, em caso de descumprimento da lei, medidas sancionatórias, como notificações, multas e embargos, são tomadas”. O governo ressalta ainda que “toda autorização para supressão vegetal segue a legislação vigente”.

A fiscalização do desmatamento é dificultada por falhas na regularização ambiental de propriedades privadas no país, como a arrastada implementação do CAR (Cadastro Ambiental Rural), um registro de todas as propriedades rurais do país.

O CAR é autodeclarado, mas é a partir destes dados georreferenciados que o poder público pode saber se os proprietários estão preservando uma parcela de suas terras, como exigido por lei. No cerrado, essa área de reserva legal precisa ser de 20% (ou 35%, quando está sobreposta à Amazônia Legal).

Com essas informações atualizadas, é possível planejar ações de fiscalização mais precisas e realizar, por exemplo, embargos remotos de áreas irregulares, impedindo o acesso a crédito rural.

Árvore com folhas amareladas e tronco enegrecido por incêndio florestal

Área de cerrado queimada por incêndio florestal próximo a Quilombo Povoado do Prata, no leste de Tocantins - Lalo de Almeida/Folhapress

No país, no entanto, apenas cerca de 2,7% dos cadastros já tiveram a análise concluída, segundo estudo da Climate Policy Initiative, instituição afiliada à PUC-Rio, publicado no final de 2023.

A gestão do CAR é de competência dos estados e há enormes discrepâncias entre eles. No Espírito Santo, que lidera o ranking, o índice chega a 67,9%. Já no Maranhão, a taxa cai para 2,2%, enquanto no Tocantins é de 0,02% e no Piauí, de 0%. Os dados não estavam disponíveis para a Bahia.

O secretário André Lima, do MMA, ressalta que, se usados corretamente, os cadastros podem ser não apenas uma ferramenta de fiscalização, mas também um instrumento econômico.

“Esse é um debate que temos que fazer: [podemos] vedar crédito para quem pretende desmatar. Por que o sistema público oferece recursos subsidiados para desmatamento, mesmo que seja legal?”, questiona.

“O pouco dinheiro que nós temos tem que ser investido para usar melhor o que já está desmatado, aumentar a produtividade onde já desmatou, não para desmatar novas áreas. A gente não precisa proibir o desmatamento legal, mas a gente pode não o incentivar”, afirma.

Para Isabel Figueiredo, coordenadora do programa cerrado e caatinga do ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), “falta um olhar sistêmico sobre o problema complexo que o cerrado está vivendo”. “Ainda não há uma sala de situação que concentre uma inteligência para lidar com o problema”, critica.

A especialista acrescenta, porém, que iniciativas específicas nas cidades mais pressionadas pelo desmatamento também são extremamente necessárias e urgentes. Apenas 3,6% dos municípios no cerrado (52 dos 1.427) concentraram a metade de todo o desmate do bioma no último ano.

Desde o ano passado, o governo federal faz reuniões com secretários estaduais e governadores do cerrado para tentar traçar um objetivo comum de redução no desmatamento legal e ilegal.

“O engajamento dos governadores e das pastas de meio ambiente nos estados é crucial para conseguirmos reduzir o ritmo do desmatamento”, afirma Figueiredo. “Mas vencer o poder regional do agronegócio que está profundamente embrenhado nos governos estaduais é bastante desafiador.”

Aos estados cabem, entre outras atribuições, a emissão de autorizações para supressão de vegetação, outorgas de captação de água de rios e aquíferos, a destinação de terras públicas estaduais, a regularização fundiária de territórios tradicionais e a fiscalização ambiental de propriedades privadas.

Copos de metal pendurados na parede de uma casa de barro

Copos pendurados no interior da casa de Neli Pereira Rocha de Sousa, 64, na comunidade quilombola do Prata, no Jalapão - Lalo de Almeida/Folhapress

ENTENDA A SÉRIE

A série de reportagens Cerrado Loteado, em quatro capítulos, explica como o avanço do agronegócio sobre a vegetação nativa encurrala comunidades, influencia o clima e ameaça a segurança hídrica.

Reportagem e coordenação Jéssica Maes e Lalo de AlmeidaIdealização Jéssica MaesEdição de textos Giuliana de ToledoEditor de fotografia Otavio ValleEdição de fotografia Lalo de Almeida Tratamento de imagem Edson Salles e Fabiano VitoEditor de arte Kleber BonjoanCoordenação de Infografia Adriana MattosInfografia Diana Yukari e Gustavo QueiroloDesign Irapuan CamposCoordenação de desenvolvimento Rubens Fernando AlencarDesenvolvimento Rubens Alencar e Pilker