Secas sem trégua impactam produção de farinha de mandioca e travam acesso a lagos com pirarucu

No médio Solimões, estiagens reduzem a metade fabricação artesanal do alimento-base na amazônia, e pescadores não alcançam espécie gigante

Uma atmosfera de desolação é imediatamente notada por quem adentra o barco flutuante de Henrique Alcione Batalha, 55. O espaço é a casa e a base logística do pescador. Está limpo, vazio e silencioso, ancorado nas águas paradas do paranã do Capivara, um dos incontáveis tributários do rio Solimões. A comunidade São Francisco do Capivara está logo em frente.

Alcione, que mora sozinho no flutuante, está de mãos atadas. Ele pesca o pirarucu, o peixe gigante que é símbolo da amazônia. A pesca é feita dentro de um eficiente plano de manejo, que inclui vigilância, contagem e captura em períodos e quantidades certos, com retorno financeiro decisivo a dezenas de comunidades na região do médio Solimões. Os pirarucus, porém, estão inacessíveis.

Pescador sentado em cima de redes de pesca

Henrique Alcione Batalha, sentado em rede usada para pesca do pirarucu, na comunidade São Francisco do Capivara - Lalo de Almeida/Folhapress

A sequência de secas extremas, com vazantes sem precedentes em 2023 e em 2024 nessa porção da Amazônia ocidental, isolou os lagos onde estão os peixes. O igarapé que leva aos lagos virou um fio d’água e está intransitável. Os furos, que são cursos d’água ainda menores e que conectam o igarapé aos poços, desapareceram.

A autorização para a captura de 650 pirarucus adultos já foi dada, mas Alcione e os outros pescadores da comunidade não têm o que fazer. Resta a eles uma espera aflitiva pelo desfecho momentâneo de uma crise climática em que nada mais é previsível.

Pescador carrega pirarucu nos ombros

Na comunidade São Francisco do Capivara, a pesca em novembro de 2022 não teve sobressaltos, com acesso aos pirarucus nos lagos - Lalo de Almeida/Folhapress

As famílias perdem renda, passam por dificuldades para comprar alimento e água, enfrentam a insegurança alimentar.

“A situação está cruel nesses dois anos [2023 e 2024]”, diz Alcione. “Este ano ainda está pior, a água desceu muito rápido. E o rio continua vazando.”

Igarapé seco visto de cima

Igarapé que se conecta aos lagos secou, impedindo a pesca do peixe gigante da amazônia - Lalo de Almeida/Folhapress

Sem água, os produtores artesanais de farinha de mandioca –a base da alimentação na região amazônica– vivem rotinas cada vez mais penosas no médio Solimões. A seca é tão dura, e sem precedentes até a chegada do ano de 2023, que a produção de farinha só ocorre na base da teimosia.

As comunidades estão sem rios, igarapés e poços para o repouso da mandioca, necessário para o amolecimento do tubérculo. Passaram a improvisar em tanques de plástico.

A água que chegava até bem próximo das casas de farinha –as “cozinhas de forno”, como são chamadas– não existe mais. Os mais jovens, então, transportam na cabeça ou nas costas sacos de 70 kg a 80 kg, após a torra nas cozinhas. Caminham de 15 minutos a uma hora e meia, a depender do lugar, até a beira de um curso d’água.

Agricultor faz a torra da farinha

O ribeirinho Adriel Cacheado atua na torra da farinha de mandioca, em atividade coletiva, na comunidade de Apuí - Lalo de Almeida/Folhapress

Não há mais lagos ou rios caudalosos para o transporte dos sacos de farinha até Tefé (AM) e, de lá, para Manaus. Barcos grandes, então, são substituídos por canoas pequenas, com transporte fracionado da farinha. Um percurso de uma hora se transforma, na seca, em seis horas em vagarosas embarcações.

Canal em lago delimitado por varas

Varas marcam o canal por onde ainda é possível a navegação de canoas no lago Tefé, impactado pela seca extrema - Lalo de Almeida/Folhapress

Na comunidade Apuí, na região do lago Tefé, Adriel Fonseca Cacheado, 27, participa de todas as etapas de produção. Faz a torra em grandes tachos. Ensaca. Transporta, nas costas, o saco com mais de 70 kg de farinha até a beira do rio. Repete esse movimento por oito vezes numa mesma tarde. Acorda cedo no dia seguinte e inicia a jornada até Tefé numa embarcação de pequeno porte.

“A nossa família, que tem oito pessoas, vem conseguindo produzir essas oito sacas por semana. Na cheia, conseguimos fazer 15”, diz Adriel. “Todo esse caminho, na cheia, é por água, da minha casa até o porto.”

Agricultor carrega saco de farinha nas costas

Adriel Cacheado carrega um saco de farinha de mandioca por espaço onde antes existia água - Lalo de Almeida/Folhapress

Os impactos da crise climática são sistêmicos no manejo do pirarucu, o peixe que mais simboliza a amazônia e a viabilidade de projetos sustentáveis no bioma, e na produção de farinha de mandioca, que garante o alimento mais básico dos amazônidas.

A realidade de Alcione, perdido em desolação, é semelhante à de 1.200 pessoas, de 42 comunidades no médio Solimões, envolvidas na pesca monitorada do pirarucu. O plano de manejo conta com assistência do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Segundo técnicos do instituto, as 42 comunidades sofrem com o isolamento dos lagos e a impossibilidade da pesca.

Pescadores retiram capim em lago

Pescadores retiram o capim para facilitar a colocação de redes para capturar pirarucus em lago, em 2022, antes das duas secas extremas - Lalo de Almeida/Folhapress

A captura do pirarucu pode render um ganho bruto de até R$ 5.000 por pessoa. Numa feira, o quilo do peixe é vendido por R$ 10 a R$ 12.

Alcione e mais dez pescadores de São Francisco do Capivara organizaram uma pesca de sulamba no começo deste mês. Disseram ter pescado duas toneladas de peixe. Cada um ganhou R$ 350.

Na produção de farinha, do mesmo jeito que Adriel, milhares de agricultores passaram a trabalhar mais e a buscar adaptações para garantir a produção em mais um ano de seca extrema, descrita por parte dos agricultores como ainda pior do que a vivenciada em 2023.

Somente na região de Tefé, existem 3.575 agricultores que cultivam mandioca, segundo dados do governo do Amazonas. Manaus é o principal destino da farinha produzida no médio Solimões. Em todo o estado, existem 18,4 mil casas de farinha tradicionais, cujo funcionamento envolve famílias inteiras e técnicas seculares.

Para o manejo do pirarucu e para a produção de farinha, a água e o tempo de cada etapa são decisivos para quem detém o conhecimento tradicional. As secas extremas e sucessivas, fora dos ciclos naturais de cheias e estiagens na amazônia, descalibraram essa técnica.

Trecho seco do Solimões

Trecho seco do rio Solimões próximo à cidade de Tefé, no Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress

“As mudanças são radicais, o que embaralha o conhecimento tradicional do manejo do pirarucu, como o que diz respeito a prazos e repiquetes [cheias momentâneas dos rios durante a seca]. Não há mais previsibilidade”, afirma a antropóloga Edna Alencar, pesquisadora associada do Instituto Mamirauá.

“Tudo isso impacta na ecologia do peixe. A área do Capivara, por exemplo, era conhecida pela fartura de peixe pequeno”, diz o biólogo Jonas Batista, técnico do programa de manejo de pesca desenvolvido pelo instituto.

Os moradores de São Francisco do Capivara têm dificuldades para acessar não só os lagos com pirarucu, mas também para pescar o tambaqui e outras espécies usadas nas refeições cotidianas. As roças de mandioca e banana são para subsistência, e as famílias recebem o Bolsa Família. Mas a principal fonte de renda é a pesca.

Redes e os pés de um pescador

As redes de Henrique Alcione Batalha ficaram sem uso, em razão do isolamento dos lagos com os peixes do manejo - Lalo de Almeida/Folhapress

“Estamos aqui empoçados”, afirma Jocimar Rodrigues, 36, um dos responsáveis por efetivar os acordos de pesca. “Eu não consigo me lembrar de secas piores do que essas de 2023 e 2024.”

Rodrigues diz que moradores de comunidades mais distantes passam fome. É comum que famílias inteiras busquem comunidades mais próximas dos acessos ao Solimões, como forma de escapar do isolamento extremo.

Boa parte das famílias não tem acesso a água potável, e são necessários deslocamentos cada vez maiores para a pesca de subsistência.

Ribeirinhos atravessam bancos de areia de rio

Ribeirinhos atravessam o leito seco de um braço do rio Solimões, em frente à terra indígena Porto Praia, região de Tefé - Lalo de Almeida/Folha press

No caso da farinha de mandioca, as famílias que se dedicam à atividade reduziram a produção pela metade. É o que ocorre na comunidade quilombola São Francisco do Bauana, vizinha da comunidade Apuí, nas imediações do lago Tefé.

“As piores secas são as de 2023 e 2024, quando a gente produziu menos. Se não tem um canto para botar a mandioca de molho, a produção para”, afirma Adrison Rocha da Silva, 37, vice-presidente da comunidade.

Lago seco em frente a comunidade

Lago seco em frente à comunidade São Francisco do Bauana, região de Alvarães, no Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress

Maria Ezimar, 53, está há dois anos sem acesso a poços em São Francisco do Bauana. Pela primeira vez, Ezimar e a família usam tanques de plástico para a atividade intermediária na produção de farinha.

“Nos outros anos, não secava como agora. E a seca não demorava tanto”, diz Ezimar. “Estamos sem um poço há quase dois anos. Está só a lama.”

Liderança de comunidade quilombola

Maria Ezimar, liderança da comunidade São Francisco do Bauana, dentro de sua casa - Lalo de Almeida/Folhapress

Uma parcela expressiva dos produtores de farinha precisa de acesso rápido ao dinheiro da venda feita e também de novas formas de escoamento do produto para as cidades. Por isso, é comum a existência de atravessadores. O quilo da farinha, pago por esses revendedores, sai por pouco mais de R$ 4. Quem consegue alcançar as feiras de Tefé pode vender o produto pelo dobro do preço.

Banca de farinha de mandioca

Banca de farinha de mandioca na feira de Tefé, na região do Médio Solimões - Lalo de Almeida/Folhapress

A Apafe (Associação dos Moradores e Produtores Agroextrativistas da Floresta Nacional de Tefé e Entorno) desenvolveu uma marca coletiva para a farinha produzida nas comunidades, com embalagem que explicita a origem e a qualidade do produto. Nesse caso, o quilo da farinha pode alcançar R$ 14, o que se traduz em mais renda para as comunidades.

“A produção caiu muito, e há uma perda bem crescente das plantações”, afirma Zila de Castro, 38, que integra o conselho da Apafe.

A seca afeta a produção de agricultura familiar e o manejo de pesca em distintas comunidades. Cada lugar tem suas características próprias, determinadas pela relação com os diferentes rios, igarapés e lagos. A queda ou a inviabilidade da produção são características comuns a esses espaços.

Carregadores com sacos de farinha

Carregadores levam sacos de farinha de mandioca das embarcações até a feira de Tefé - Lalo de Almeida/Folhapress

No Jurupari, já no rio Japurá, os indígenas kokamas têm conseguido capturar poucas unidades de pirarucu, após longas jornadas para alcançar os lagos e para transportar o peixe nas costas, em um percurso onde antes existia água. Eles também pescam tambaqui e surubim. Os peixes são levados para a feira de Alvarães (AM).

Na Terra Indígena Porto Praia de Baixo, que fica na margem de um braço do rio Solimões, o desaparecimento de trecho do rio impede a pesca de peixes lisos, sem escamas, uma das principais fontes de renda das mais de cem famílias de indígenas kokamas, tikunas e mayorunas.

E, na comunidade Santa Clara, onde o Solimões também virou deserto, os agricultores desistiram de plantar melancia, após as perdas em 2023. O cultivo de hortaliças, neste ano, foi deslocado para mais perto da água. Ocupa áreas que, na cheia, acabam inundadas.

Canoas em canal que sobrou, vistas de cima

Canoas da comunidade Santa Clara ancoradas em um canal que sobrou de um braço do rio Solimões, próximo a Tefé - Lalo de Almeida/Folhapress

Pescadores e agricultores que vivem diretamente os impactos da crise climática dizem que, apesar da previsibilidade da seca severa em 2024, não houve ações preventivas ou emergenciais por parte do poder público, em suas três esferas –municípios, governo do Amazonas e governo federal.

Os trabalhadores do pirarucu cobram acesso a cestas básicas e água potável, adiamento dos prazos dos planos de manejo do pirarucu e do tambaqui, antecipação do pagamento do seguro defeso -pago durante o período de reprodução de peixes.

Os produtores de farinha querem que as comunidades sejam equipadas com veículos motorizados que facilitem o transporte dos sacos durante a seca, como já existe em algumas comunidades, além de apoio para escoamento da produção até as cidades.

Flutuante encalhado na orla

Flutuante encalhado na orla de Tefé, na região do Médio Solimões, em razão da estiagem severa - Lalo de Almeida/Folhapress

O governo Lula (PT) disse ter entregue 13 mil cestas de alimentos a famílias impactadas pela seca, por meio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social. Entre as entregas feitas, estão 850 cestas para pescadores e extrativistas na região de Tefé e 80 para pescadores na região de Alvarães.

A previsão é de que sejam entregues mais 10 mil cestas de alimentos no médio Solimões. “O ministério recebeu R$ 100 milhões para a distribuição de 300 mil cestas e aquisição de 7.000 toneladas de alimentos”, afirmou o governo, em nota.

No último dia 10, Lula visitou comunidades em Tefé e anunciou medidas de combate à seca no Amazonas. Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, estados e municípios recebem recursos pelo Sistema Nacional de Defesa Civil, que podem ser usados na compra de água e comida. Uma sala de crise foi criada pelo governo para prestar assistência, disse a pasta.

Em nota, a gestão do governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), afirmou que “questões logísticas” atrapalharam a entrega de 2.000 cestas básicas destinadas a Maraã no último dia 14. A cidade conta com cinco purificadores de água, cita a nota, com capacidade de 1.000 litros de água potável por dia.

Para a região de Alvarães, estão previstas outras 2.000 cestas básicas, segundo o governo estadual. A entrega também é prejudicada por “questão logística”, afirmou. A região de Tefé conta com seis purificadores de água, conforme o governo local.

“Até o dia 23, 140.284 famílias foram afetadas pela estiagem no estado. Cerca de 1.570 toneladas de alimentos já foram distribuídas para municípios do interior”, cita a nota.

Os municípios de Tefé, Alvarães e Maraã –aos quais estão ligadas as comunidades percorridas pela reportagem– não responderam aos questionamentos.

Onde há manejo de pirarucu, os trabalhadores seguem sem acesso aos lagos, em razão da interrupção dos caminhos de água. Uma saída pensada na região do Capivara foi fazer o trecho a pé, o que levaria três horas, período em que carregariam os peixes gigantes nas costas. É tempo demais para alcançar o gelo, e a ideia foi logo descartada.

A esperança agora é por um repiquete, um aumento momentâneo do volume de água antes da cheia. Se o igarapé subir 5 metros, os pescadores tentarão alcançar os pirarucus.

Crianças brincam em rio

Crianças da comunidade Santa Clara brincam na praia que se formou no rio Solimões - Lalo de Almeida/Folhapress

ENTENDA A SÉRIE

A série de reportagens Mudanças Climáticas na Amazônia mostra os efeitos da crise do clima na maior floresta tropical do mundo, com foco nas populações diretamente afetadas. A destruição do bioma por atividades ilegais compõe a crise em curso. O projeto tem apoio da Rainforest Foundation Norway e trará reportagens ao longo dos próximos meses.

Reportagem e coordenação Vinicius Sassine e Lalo de AlmeidaIdealização Vinicius Sassine e Lalo de AlmeidaEdição de textos Giuliana de ToledoEditor de fotografia Otavio ValleEdição de fotografia Lalo de Almeida Tratamento de imagem Fabiano VitoEditor de arte Kleber BonjoanCoordenação de Infografia Adriana MattosInfografia Cris SanoDesign Irapuan CamposCoordenação de desenvolvimento e Desenvolvimento Rubens Alencar