Grileiros dominam assentamentos no Pará, tocam fogo sem controle e varrem castanheiras da floresta
Seca extrema favorece queimada de vegetação em pé, fenômeno recente; Ibama diz não ter sido acionado, e Incra admite invasões
Seca extrema favorece queimada de vegetação em pé, fenômeno recente; Ibama diz não ter sido acionado, e Incra admite invasões
Uma porção da floresta amazônica que deveria servir ao agroextrativismo, no oeste do Pará, virou uma terra sem lei, invadida e dominada por grileiros, cenário de um leilão de lotes delimitados por donos sem rosto.
É o fogo –criminoso, sem controle e sem repressão– que dita o ritmo da ocupação do Chapadão, uma área plana que fica entre Santarém (PA) e Uruará (PA), no curso da rodovia PA-370.
O lugar virou um cemitério de castanheiras, uma das espécies mais imponentes da amazônia e responsável por um incremento decisivo na renda de centenas de famílias. Árvores tombaram pelo fogo ou pelo corte raso, e já não se extrai castanha como em um passado recente.
Assentamentos rurais criados pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), sem regularização e sem assistência mínima para o agroextrativismo, especialmente a coleta de castanha, foram invadidos por grileiros. Fazendeiros interessados na expansão da soja consolidaram espaços e pressionam por mais nacos de terra na floresta.
Assentados foram abandonados à própria sorte. Um mercado de lotes ocorre à luz do dia, ditado pelo fogo.
O que ocorre no Chapadão, onde queimadas lambem áreas abertas há meses, em meio a mais um ano de seca extrema no bioma, é um recorte de uma realidade amazônica cada vez mais comum.
O conflito pela terra ganhou um componente climático –uma fagulha a mais nessa crise.
O fogo vem sendo ateado na floresta em pé. E a vegetação, mais inflamável em razão da estiagem profunda, sem precedentes, queima de uma forma antes inimaginável.
No Chapadão é assim. A Folha esteve na região e percorreu estradas de chão –conhecidas como ramais– surgidas a partir da PA-370. Vistas de cima, parecem espinhas de peixe em seu formato, avançando floresta adentro.
O fogo segue o curso desses ramais, em áreas de assentamento invadidas por grileiros. As labaredas consomem tanto áreas abertas, onde houve desmatamento prévio, quanto a floresta intacta, como flagrado pela reportagem.
O objetivo dos incêndios na floresta em pé, segundo assentados, agricultores e lideranças do Chapadão, é fragilizar o estado de saúde de árvores e facilitar a posterior derrubada, numa tentativa de consolidação de áreas em uma região que é, na verdade, gleba da União.
A recorrência de secas extremas, em 2023 e em 2024, vem facilitando o crime. No Chapadão, tudo ocorre sem ações de combate ao fogo –e à dinâmica da grilagem– por parte dos governos federal e do Pará.
O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) afirmou, em nota, que o Prevfogo (Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais) não foi acionado, nem pelo Incra nem pelo governo do Pará, para o combate aos incêndios nos assentamentos rurais no Chapadão, ao longo de todo o ano de 2024.
O Incra disse que cabe aos órgãos ambientais o “trabalho de apuração de responsabilidades e combate às queimadas na região”. Em nota, o órgão afirmou que os assentamentos foram invadidos e que há uma tentativa de retomada de áreas ocupadas por grileiros e madeireiros.
Já o governo do Pará disse ter pedido apoio do governo federal, em setembro, para reforço no combate às queimadas. Em nota, a Secretaria de Meio Ambiente afirmou que 30% do território está sob jurisdição estadual e 70%, federal, “o que demanda uma coordenação de esforços com a União”. A secretaria intensificou a atuação com mais bombeiros, viaturas e abafadores, cita a nota.
O avanço sem controle do fogo é responsável pela explosão da degradação da amazônia em 2024, apesar da redução do desmatamento. A degradação está associada a fogo e exploração ilegal de madeira; o desmatamento, a corte raso e definitivo das árvores.
Em uma série histórica de 16 anos, elaborada pela ONG (organização não governamental) Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), nunca houve tantas áreas degradadas no bioma como em 2024.
De janeiro a outubro, foram registrados 32.869 km² de áreas degradadas, o que equivale à área de 21 cidades do tamanho de São Paulo. Pará é o estado com mais floresta degradada. No ano passado, no mesmo período, a degradação atingiu 3.476 km², segundo o Imazon, o que confirma a explosão do fogo e suas consequências em 2024.
Quanto mais degradada a floresta, menor sua capacidade de funcionamento como sumidouro de carbono. Em algumas regiões, segundo medições científicas, áreas verdes já funcionam mais como fonte emissora de CO2, o que alimenta a crise climática, causada pelas emissões de gases de efeito estufa.
O fogo no Chapadão contribuiu para as ondas de fumaça que cobriram Santarém por semanas seguidas. O ar na cidade ganhou contornos perigosos para a respiração. O mesmo ocorreu em Alter do Chão, distrito de Santarém que é um paraíso turístico em razão de praias de areia fina e água cristalina no rio Tapajós.
Mas a realidade dos núcleos urbanos não se compara à experiência vivida pelas famílias de assentados que permanecem no Chapadão.
As chamas consomem castanheiras em pé e deitadas. A fuligem e o tom cinza dominam o horizonte. O fogo estala nas margens de quilômetros de ramais abertos.
O chamado ramal do Rancho, a 110 km de Santarém, é o que tem um dos processos de ocupação mais recentes. Algumas casas de madeira construídas –que se constituem apenas em cascas com a aparência de uma residência– ocupam lotes com a finalidade de denotar a existência de um posseiro naquele espaço.
Outras casas seguem ocupadas por assentados, que insistem no cultivo de mandioca e pimenta-do-reino, apesar do cerco do fogo. Há, no caminho, casas e plantações de pimenta que sucumbiram às queimadas.
O mais comum, segundo os relatos de assentados, é a aplicação do fogo por grileiros que não vivem nos assentamentos. Com a seca e a posterior ausência do invasor, as queimadas perdem o controle e acabam varrendo vastas áreas na região.
Também há relatos de fogo ateado por assentados, mas em menor escala. Parte deles diz ter desistido de plantar pimenta e mandioca neste semestre em razão do descontrole do fogo. A desistência é para que os ciclos de calor não se alastrem ainda mais.
Entre assentados, especialmente do PAE (Projeto de Assentamento Agroextrativista) Vila Nova e do PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável) Santa Clara, há um sentimento de revolta e lamento quanto ao destino das castanheiras.
“A gente perdeu um terço das castanheiras”, afirma Gelciclei dos Santos Cardoso, 45, que vive com a mulher e três filhos –um deles recém-nascido– numa casa simples no PAE Vila Nova. A fumaça encobria a casa há dois meses. Não há poço com água potável perto da residência, e Gelciclei paga R$ 50 reais por semana para o transporte de água. Não há energia elétrica.
A família planta pimenta-do-reino, arroz, cumaru, abacaxi e mandioca. Uma parte expressiva da renda é proveniente da coleta de castanha.
Chega dezembro e os primeiros ouriços –os invólucros arredondados, duros, que contêm as castanhas– começam a cair das árvores gigantes. Assim seguem até março. É quando atuam os coletores que vivem da atividade tradicional.
“Sempre trabalhei com castanha aqui”, diz Gelciclei. “Mas entrou muita gente para serrar e derrubar as castanheiras, além do fogo.”
Na última coleta, a família conseguiu produzir dois sacos por dia. Antes, chegava a cinco, com renda semanal de R$ 1.200.
A perspectiva para o próximo ciclo também é ruim, porque as castanheiras estão desaparecendo. E é preciso percorrer distâncias cada vez maiores para a busca por castanha. Sacos de 50 a 60 kg são carregados nas costas por horas, para garantir o escoamento.
“O fogo, às vezes, não mata a castanheira, mas atrasa a produção de castanha”, afirma o agricultor. “Sem falar nas andirobas. Está morrendo tudo, por causa do verão forte, sem chuva. A última vez que tirei óleo de andiroba foi no ano retrasado.”
O assentamento Vila Nova tem capacidade para abrigar 121 famílias, mas apenas 34 estão assentadas, segundo dados do Incra.
Presidente da cooperativa do assentamento, Raimundo José Rodrigues dos Santos, 64, conhecido como Zezinho, afirma que o assentamento tem mais de 80 lotes grilados e invadidos. “É comum que grileiros peguem pessoas nas áreas urbanas e tragam para o assentamento, para a pessoa invadir, em troca de R$ 300”, diz.
A exploração de madeira é feita antes da ocupação irregular dos lotes, e o foco é a castanheira, segundo a liderança do Vila Nova. “Ela é robusta, tem comprimento, não dá oco, não é curva. Tiram a madeira e levam para Santarém”, afirma Zezinho. “A castanheira é como um pão para nós, como uma comida. E todo ano fica mais escassa.”
Zezinho calcula que 6.000 dos 17 mil hectares do assentamento foram grilados e diz que todo o fogo na área tomada por invasores é criminoso. Por sua atuação na cooperativa, afirma ter sofrido ameaças de morte e ataques a tiros em sua casa, o que levou à inclusão em programa de proteção a testemunhas. “Essa ganância de quem é de fora está acabando com a floresta primária.”
Segundo o Incra, houve invasão da reserva legal do Projeto Agroextrativista Vila Nova, logo após a criação e publicação da relação de beneficiários. “A superintendência do Incra no oeste do Pará, em Santarém, ingressou com ação no Tribunal Regional Federal e aguarda sentença para a retirada dos grileiros.”
No assentamento Santa Clara, houve invasão durante um embargo judicial, conforme o Incra. Outro assentamento no Chapadão, o Terra Nova, foi criado em 2024 e ainda está em fase de implantação, disse o órgão. “O projeto visa a retomar áreas de grileiros e madeireiros com incorporação ao Programa Nacional de Reforma Agrária.”
Braulino de Campos Garcia, 63, vive há nove anos no Santa Clara. O imbróglio na Justiça levou a um avanço de fazendas de soja e boi no assentamento, segundo o agricultor. Muitos posseiros venderam lotes. Poucos seguem na coleta de castanha.
“Morreram de 30% a 40% das castanheiras no Chapadão”, afirma Braulino.
Enquanto não há regularização ou avanço do projeto, o assentamento Terra Nova vê o avanço do desmatamento e do fogo. Documentos do Incra apontam uma perda de 4.100 de 22 mil hectares.
A casa de Brenda Pinheiro, 28, está numa margem do ramal do Rancho. O assentamento é o Vila Nova, segundo ela. Do outro lado do ramal, está o Terra Nova.
O fogo consome o assentamento recém-criado. A fumaça torna o ambiente inóspito –e não tem fronteira. Tudo ao redor da casa de Brenda, que chegou ao Chapadão com a família há seis meses, queima há semanas seguidas. A castanha está cada vez mais escassa. A plantação de abacaxi, banana e pitaia enfrenta um verão forte.
“Vamos ficar por aqui. Com a chuva, as coisas vão melhorar.”
ENTENDA A SÉRIE
A série de reportagens Mudanças Climáticas na Amazônia mostra os efeitos da crise do clima na maior floresta tropical do mundo, com foco nas populações diretamente afetadas. A destruição do bioma por atividades ilegais compõe a crise em curso. O projeto tem apoio da Rainforest Foundation Norway e traz reportagens ao longo dos meses.