Na fronteira da devastação, fogo cerca famílias e desaparecimento de lago deixa comunidades ilhadas
Reserva em Rondônia não para de queimar, com chamas até as casas de posseiros, e lago no rio Madeira, no sul do Amazonas, chega a nível crítico
Reserva em Rondônia não para de queimar, com chamas até as casas de posseiros, e lago no rio Madeira, no sul do Amazonas, chega a nível crítico
O fogo descontrolado lambeu tudo em volta, num raio de 10 km, e cercou a casa dos agricultores Roberto Anacleto, 56, e Ana Bilenq, 52. Eles se viram a 15 m das chamas. Um aceiro feito às pressas barra a propagação até a porta de casa. Os incêndios não param nunca. Tudo queima há semanas, e o casal precisa permanecer em casa para seguir barrando as chamas.
Roberto e Ana vivem na Esec (Estação Ecológica) Soldado da Borracha, a 70 km de Cujubim (RO), cidade que está a 220 km da capital Porto Velho. O fogo na unidade estadual de conservação, descontrolado desde julho, é o responsável pelas principais ondas de fumaça em Rondônia, onde o ar ganhou contornos perigosos à respiração.
Famílias pobres da Soldado da Borracha, com perfis bem diferentes de grandes invasores e grileiros que queimam tudo na Esec para assegurar pasto para gado e a posse da terra, estão ilhadas pelo fogo.
A imparável descida do rio Madeira, que atinge níveis nunca antes registrados, gera um efeito em cascata para igarapés e lagos que dependem do volume do principal afluente do rio Amazonas. O Madeira seca na região de Porto Velho e Humaitá (AM), cidades separadas por 200 km, e os lagos desaparecem juntos. Damião da Conceição, 54, e Edilene Alves, 49, estão sem saber o que fazer.
Eles vivem numa comunidade no lago Carapanatuba. Num barco com motor de boa potência, o percurso pelo lago e pelo igarapé que o conecta ao rio Madeira, quando há água, leva 40 minutos. Na seca histórica de 2024, o trecho não é feito em menos de 4 horas. São necessárias embarcações mais rústicas e menores, com motores funcionáveis em um espelho d’água de 20 cm.
Se o volume do lago cair para 10 cm, ficará intransitável, dizem os barqueiros mais experientes da região. E eles acham que isso ocorrerá em dias. Damião e Edilene tentam socorro a Antônio Ferreira, 74, pai dela, nascido numa comunidade no Carapanatuba, onde vive desde sempre. Em grave estado de saúde, ele precisa de ajuda médica com urgência. Todos estão ilhados pela seca.
A reportagem da Folha esteve na Esec Soldado da Borracha e no lago Carapanatuba. Com paisagens amazônicas distintas, os dois lugares estão unidos por características comuns: a crise climática tem efeitos devastadores a famílias que dependem da permanência nesses espaços; moradores estão ilhados em razão da crise; Esec e lago integram a mesma fronteira de devastação.
Porto Velho, Cujubim e Humaitá fazem parte de uma região conhecida como Amacro, planejada pelos governadores bolsonaristas de Amazonas, Acre e Rondônia para ser um polo de desenvolvimento. A área contínua que engloba 32 cidades dos três estados se tornou, na verdade, uma fronteira do desmatamento da amazônia.
A Amacro é, hoje, um dos principais arcos de devastação da floresta. Em 2022, concentrou 36% de tudo que foi desmatado na Amazônia Legal.
Esse aspecto é um combustível decisivo para a crise climática na região, onde as cidades ficam encobertas com ondas tóxicas de fumaça por semanas seguidas, provenientes de queimadas incontroláveis. A degradação da floresta, associada ao fenômeno do El Niño, ao aquecimento do Atlântico Tropical Norte e às mudanças climáticas, cobra um preço alto na Amacro.
A Esec Soldado da Borracha sintetiza essa realidade. Em 2018, o governo de Rondônia decidiu transformar a área de 179 mil hectares em estação ecológica. A medida foi derrubada pela Assembleia Legislativa e, em 2022, por um decreto do governador Marcos Rocha (União Brasil). A Justiça de Rondônia considerou o decreto inválido e garantiu a criação da unidade de conservação.
Os gestos de Executivo e Legislativo locais foram a senha para a invasão sem controle da Esec. São mais de 700 lotes, conectados por estradas de chão diversas -os ramais- que invadem por 150 km de uma área que já foi floresta. A expansão segue sem freios.
Há grandes criadores de gado entre os invasores, com mais de 2.000 cabeças de animais em pastos que ainda ardem em fogo. E há pequenos posseiros, que adquiriram poucos alqueires de terra -por meio de contratos de compra e venda, a chamada “posse mansa”- para viverem da agricultura familiar.
Ao derrubar a criação da unidade de conservação, o governador de Rondônia não teve a intenção de facilitar invasão ou grilagem de terras, disse o governo do estado em nota. “O governo condena veementemente essas práticas.”
Segundo a nota, a decisão levou em conta as necessidades das comunidades e produtores rurais da região. “Ações coordenadas entre forças de segurança e órgãos ambientais continuam a ser realizadas para coibir crimes ambientais. Não se pode associar automaticamente o aumento dos focos de incêndio a essa decisão [de revogação do decreto que cria a Esec].”
Pelos ramais, os incêndios podem ser ouvidos. Os estalidos, como se fossem pequenas explosões, são o som de uma destruição sem controle, cujas chamas engolem em fogo brando as árvores mais imponentes desse ponto da Amazônia ocidental, as castanheiras.
O caminho até o lago Carapanatuba também é de degradação. O rio Madeira está em seu menor nível na região, e sofre com uma desenfreada invasão garimpeira.
De Humaitá até a boca do igarapé que leva ao lago, mais de cem dragas e balsas do garimpo ilegal compõem a paisagem do rio. As estruturas maiores operam sem ser incomodadas. Em bancos de areia, dragas destruídas em uma operação da PF (Polícia Federal) estão atoladas. A operação ocorreu há menos de 30 dias, e destruiu 459 dragas e balsas.
Os 100 km de rio são percorridos em três horas. É preciso mudar de embarcação para o percurso de quatro horas pelo igarapé e pelo lago, até a beira de uma primeira comunidade. A água está cada vez mais rasa, e dominada por jacarés de diferentes espécies, entre elas o gigante jacaré-açu.
No cerco do fogo e no cerco da água, o desafio é a sobrevivência, até a virada para a estação amazônica da cheia, cujo início usual é em novembro.
“O café que plantei está morrendo na seca. A banana e o mamão estão sofrendo com essa falta de chuva. E a melancia que plantei morreu tudo”, diz Roberto, da Esec Soldado da Borracha.
As ondas de fumaça obscurecem o horizonte. O fogo estala a poucos metros da casa simples de madeira e telha ondulada, onde não há energia elétrica.
“Para dormir, a gente tem de deixar tudo aberto, senão morre sufocado”, afirma Ana, mulher de Roberto. “A fumaça assusta mais à noite. O pulmão está bem sofrido.”
O casal comprou 15 alqueires na Esec Soldado da Borracha, por R$ 26 mil, há quatro anos. Vivia em outra área de Rondônia, já separados dos filhos, trabalhando como agricultores em terras de outras pessoas. Agora encara a agressividade do fogo de uma forma nunca vivenciada.
“Fogo não tem dono. Vai saltando de área em área, vem queimando tudo. Fiz um aceiro, mas vêm redemoinhos e arrastam a brasa do chão, que atravessa a estrada”, diz Roberto. “Quando não tem fumaça, aqui é um lugar sadio. Todo começo [de ocupação de uma área na floresta] é assim. Daqui a cinco anos não vai ter esse fogo todo aqui”, completa Ana.
Numa das margens secas do lago Carapanatuba, a preocupação central de Damião e Edilene é com a saúde de Antônio. Ela diz que o pai está fraco e não come. As pernas e os pés estão inchados, há febre constante. A cada dia, com o lago e o igarapé desaparecendo, a realidade ganha contornos mais dramáticos.
Damião planejava levar o sogro a um hospital em Humaitá nos dias seguintes ao encontro com a reportagem. Para isso, seria necessário transportá-lo em uma rede até a margem onde uma embarcação alcança -um percurso de 1 km; na cheia, há um igarapé ao lado das casas.
Depois, num colchão no assoalho da embarcação, o idoso seria transportado pelo lago e pelo igarapé, até a boca do rio Madeira. Em uma ambulância aquática, terminaria o percurso até Humaitá.
“Este ano o lago está muito mais seco. E vai ficar pior”, diz Damião. “Mas a canoa tem de passar, de alguma forma.”
O sogro de Damião trabalhou em seringais e na coleta de castanha. Os castanhais seguem servindo de sustento às famílias do Carapanatuba, assim como a pesca, a caça e a produção de farinha de mandioca. Mas os jovens estão ocupados principalmente com atividades de garimpo ilegal em balsas e dragas. Damião, pai de quatro filhos, também foi garimpeiro, desde os 14 anos de idade.
Quem tem casa na cidade, ou em outra comunidade, sente que é hora de deixar a região, diante do agravamento da crise. As famílias ribeirinhas calculam que, até novembro, haverá permanência de seca severa. Damião diz que sua única casa é na comunidade na beira do lago.
O governo do Amazonas não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre o isolamento de famílias que dependem de lagos que estão secando na estiagem severa.
Na Esec Soldado da Borracha, quem permanece em suas casas é quem não tem para onde ir. São pequenos posseiros que não recorrem ao fogo no cultivo das roças, mas que acabam cercados pelas chamas e inundados por fumaça produzida por invasores e grileiros voltados a grandes criações de gado.
A poucos metros do lote de Roberto e Ana, o fogo segue lambendo tudo, e engolindo as castanheiras no caminho, poupadas no desmate. O funcionário de uma fazenda vai até a estrada observar o comportamento das chamas do outro lado do ramal, preocupado com o alastramento das labaredas. “Aqui tem mais de 2.000 cabeças de gado.”
Mais adiante, Wanderlei Simão, 54, e Jordelina Silva, 47, dizem ser donos de apenas uma égua, que pasta enquanto uma labareda pode ser vista e ouvida a poucos metros do quintal da casa. O casal chegou à Soldado da Borracha há oito meses. Os lotes foram comprados há dois anos.
“Eu nem sabia que isso aqui é uma reserva”, diz o agricultor. O fogo destruiu uma cerca, impediu a plantação de cacau e café, chegou a um metro da porta de casa.
Wanderlei foi a Cujubim e registrou um boletim de ocorrência na delegacia. “Ninguém sabe quem botou fogo. E, se eu não sei, não vou julgar meu vizinho.”
Para escapar das ondas de fumaça, nos momentos mais críticos das queimadas na Esec, o casal passou três noites dentro de um carro, um Uno. “Senão a gente morria sufocado”, afirma Jordelina.
Agora, os dois passam os dias refazendo as cercas consumidas pelas chamas. Os pés de Wanderlei estão inchados, e ele não vê uma trégua para buscar ajuda médica. “Os pés estão assim de tanto trabalhar pelo caos do fogo.”
ENTENDA A SÉRIE
A série de reportagens Mudanças Climáticas na Amazônia mostra os efeitos da crise do clima na maior floresta tropical do mundo, com foco nas populações diretamente afetadas. A destruição do bioma por atividades ilegais compõe a crise em curso. O projeto tem apoio da Rainforest Foundation Norway e trará reportagens ao longo dos próximos meses.