Estiagem profunda deixa indígenas sem igarapé, quilombolas sem lago e paraíso turístico sob fumaça
Desaparecimento de cursos d’água no oeste do Pará altera a vida de comunidades, que convivem com mortandades de peixes sem precedentes
Desaparecimento de cursos d’água no oeste do Pará altera a vida de comunidades, que convivem com mortandades de peixes sem precedentes
A sensação de caminhar por um igarapé ou por um lago que secou é perturbadora. Do silêncio à ausência de vida, do cenário distópico à transformação da paisagem, tudo incomoda.
Em regiões do baixo rio Tapajós e da várzea do rio Amazonas, nas proximidades de Santarém (PA), uma seca extrema, prolongada e inclemente impõe essa sensação a centenas de famílias. São pessoas que se viram em espaços transformados, de uma forma nunca vivida, por meses a fio.
No fim de setembro, a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) declarou situação de escassez hídrica do baixo Tapajós, no oeste do Pará, uma forma de chamar a atenção para o momento crítico do rio e para que medidas fossem adotadas para mitigar os efeitos da vazante sem precedentes.
Desde então, Tapajós e Amazonas –cujas águas se encontram na altura de Santarém– vazaram ainda mais, com reflexos diretos às comunidades dispostas nas margens dos rios, igarapés e lagos.
Os rios seguem volumosos, dadas as suas proporções amazônicas, mas suas franjas encolheram de forma inédita, o que resultou na morte de igarapés e lagos abastecidos pelos cursos d’água principais.
Foi assim que indígenas, quilombolas e ribeirinhos se viram obrigados a conviver com uma paisagem radicalmente alterada. A presença de comunidades tradicionais nessa parte da amazônia está diretamente ligada a corpos d’água que, agora, estão secos.
Os kumaruaras da aldeia Mapirizinho estão onde estão –terreno adentro após a margem do rio Tapajós, na resex (reserva extrativista) Tapajós-Arapiuns– em razão do Mapiri, um igarapé que desapareceu na seca extrema de 2024. O paraíso turístico do outro lado do rio, Alter do Chão, um dos destinos amazônicos mais conhecidos fora do país, vive encoberto por fumaça de queimadas.
Conforme a oralidade dos quilombolas de Saracura, que fica numa região de várzea do rio Amazonas, a comunidade passou a existir a partir da chegada de uma curandeira a uma área de restinga ao lado do lago das Piranhas. Escravizados fugidos de engenhos vieram na sequência, dizem os quilombolas descendentes. O lago sumiu com a estiagem profunda.
No Igarapé do Costa, comunidade que leva o mesmo nome do curso d’água, também na várzea do rio Amazonas, os pescadores dizem que existiu um Costa –Antônio Costa. Foi o pioneiro do lugar. A casa dele ficava em frente ao igarapé.
Em 2024, tanto o enorme lago que é a antessala da comunidade quanto o igarapé secaram. Na sequência, veio uma assustadora mortandade de peixes.
As transformações são radicais e impõem mudanças no estilo de vida das pessoas, tanto em razão do que se torna mais urgente –a necessidade de garantir acesso a água potável, num lugar onde ironicamente estão alguns dos rios mais caudalosos do planeta– quanto pela busca por novas formas de subsistência e transporte.
As casas da aldeia Mapirizinho foram construídas mais próximas do igarapé Mapiri do que do rio Tapajós. Com a seca severa e a formação de enormes bancos de areia no rio, as distâncias se alargaram. Motocicletas agora são usadas para o transporte após o percurso de barco pelo Tapajós.
Na Saracura, os quilombolas nunca haviam usado carros de boi. Mas a seca provocou um isolamento tão profundo que ficou impossível transportar alimentos sem um suporte. A saída da comunidade foi construir carros de boi, com adestramento dos animais para a função. Os primeiros foram feitos em 2023, quando também houve uma estiagem severa. Em 2024, já são seis veículos em uso.
Para o deslocamento dos ribeirinhos do Igarapé do Costa, que ficaram sem o lago Pacoval, a Prefeitura de Santarém forneceu uma caminhonete à comunidade. As embarcações ancoram na margem, e o restante do caminho –por onde antes existia água– é feito de carro. Da margem à comunidade, são 12 km dentro da caminhonete, que trafega pelo lago que não existe mais.
O igarapé dos kumaruaras, o lago dos quilombolas de Saracura e o lago dos ribeirinhos do Igarapé do Costa vão voltar à vida com o período de cheia. Mas há um desarranjo nos ciclos naturais da amazônia.
Já são duas secas severas e prolongadas, com efeitos cada vez piores. Indígenas, quilombolas e ribeirinhos esperam cursos d’água com menos vida –com muito menos peixe.
“O que restou do igarapé são poças de água podre”, afirma Roselino Paz Kumaruara, 49, cacique de Mapirizinho. “Essa comunidade surgiu, há muito tempo, porque os antigos estavam buscando água e acharam o igarapé Mapiri. Neste ano, ele sumiu.”
Com a seca, as 42 famílias da aldeia dependem de um poço e de um sistema de distribuição de água estruturado para atender a duas comunidades. O consumo de água a partir de cacimbas cavadas no chão, próximas ao igarapé, se mostrou desastroso para os moradores; muitos adoeceram, com diarreia, vômito e dor de cabeça. Essa água de cacimbas ainda é usada para banho.
Aldeias e outras comunidades da resex Tapajós-Arapiuns vivem realidades semelhantes. “Achávamos que poderia ser só efeito do El Niño, mas aí a seca veio de novo em 2024. O que será dos próximos anos?”, questiona Ana Livia Kumaruara, 28, que integra a coordenação do conselho indígena do território kumaruara na resex.
A seca extrema na amazônia brasileira, tanto na parte ocidental quanto na parte oriental, é a confluência de diferentes fatores: a incidência do El Niño (aquecimento acima da média no oceano Pacífico, perto da linha do Equador) em 2023 e parte de 2024, o aquecimento do Atlântico Tropical Norte, o desmatamento e a degradação da floresta –associada ao fogo– e as mudanças climáticas.
A estiagem se prolonga, e começa mais cedo, como ocorreu neste ano em boa parte do bioma. Os rios têm dificuldades para retornar a pontos normais com o início da cheia, o que engatilha novo período de seca extrema.
O igarapé e o lago das Piranhas, fontes de subsistência na comunidade quilombola onde cerca de 90% das 164 famílias vivem da pesca, estão totalmente secos há um mês e meio.
A grama cresce, e o boi toma o lugar. São cerca de 2.000 cabeças de gado pastando onde antes existia água e peixe. Galões de água são transportados de Santarém para o consumo dos moradores.
Houve mortandade de animais em poças que permanecem.
“Na cheia, os peixes chegam perto das casas. Curimatá, surubim, pirarucu, todo tipo de peixe dava nesse lago”, afirma Franciney Oliveira de Jesus, 42, uma das lideranças do Saracura, enquanto caminha por descampados onde antes existia água. “Nas cheias agora, com essa mortandade, vai ter cada vez menos peixe.”
O igarapé do Costa está próximo de Saracura, na mesma região de várzea do Amazonas. O que ocorreu na comunidade dos ribeirinhos, porém, não tem comparação.
Toneladas de peixes de diferentes espécies, entre eles o pirarucu, símbolo do manejo sustentável na amazônia, morreram em filetes de água que sobraram de igarapés e canais.
Sete comunidades, com 500 famílias, dependiam desses espaços para a subsistência. O desastre ambiental atravessou a rotina dos pescadores de uma forma nunca vista.
As lâminas d’água ficaram cobertas de peixes e outros animais mortos, como jacarés, tartarugas e arraias. Foi preciso arrastar essa matéria orgânica até as margens, o que foi feito pelos próprios ribeirinhos, e queimá-la.
Na água com temperatura elevada e sem oxigênio, diferentes espécies de peixe seguiam pelejando por vida, com busca por oxigênio na superfície. Cerca de cem tartarugas, que agonizavam, foram transferidas pelos pescadores para um poço de água limpa, ainda resistente ao calor e à estiagem.
Agora, ninguém consegue imaginar o futuro.
“Nossa preocupação é quando a água chegar. O tempo agora seria o da desova. O peixe morreu tudo, como vai desovar?”, afirma Erick Penna Ribeiro, 33, presidente da associação de moradores do igarapé do Costa. “De março em diante, quando acaba o defeso [período do ano em que é proibida a pesca, para reprodução], não vai ter peixe.”
O presidente do conselho que abarca as sete comunidades impactadas, Ednei José da Gama, 49, tem prognóstico semelhante. “Do canal não espero quase nada. O surubim, a pescada, morreu quase tudo”, diz.
Pescadores receberam um auxílio do governo federal –dois salários mínimos– para lidar com a emergência da seca, segundo relatos dos ribeirinhos. O MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima) disse que um navio faria coletas da água para análises. Equipes das Secretarias de Meio Ambiente de Santarém e do governo Pará visitaram a comunidade para coleta de dados.
A emergência climática no oeste do Pará é mais visível em Santarém e em Alter do Chão, distrito da cidade de 332 mil moradores.
Santarém passou dias encoberta por uma densa fumaça, com qualidade do ar em níveis perigosos, em razão de queimadas incontroláveis em áreas de floresta. A fumaça também encobriu Alter do Chão, destino turístico com fama internacional em razão de suas praias com areia fina e águas cristalinas.
A seca mudou as paisagens de pontos turísticos. Praias afastadas, onde há estrutura de hotéis e restaurantes, ficaram sem condições de receber visitantes. Trechos do rio secaram, e a água ganhou aspecto de lama. Lagoas e canais para observação de animais também se viram transformadas em lodo. Houve uma queda de 25% no número de turistas, segundo guias do setor.
Do outro lado do paraíso, a seca extrema altera a vida de quem se acostumou à invisibilidade. Com a morte de lagos e igarapés que estão na origem da formação das próprias comunidades, ninguém tem certeza de mais nada sobre os próximos ciclos amazônicos.
ENTENDA A SÉRIE
A série de reportagens Mudanças Climáticas na Amazônia mostra os efeitos da crise do clima na maior floresta tropical do mundo, com foco nas populações diretamente afetadas. A destruição do bioma por atividades ilegais compõe a crise em curso. O projeto tem apoio da Rainforest Foundation Norway e traz reportagens ao longo dos meses.