Aquecimento de região polar impõe reforma no Cofre Global de Sementes
1.mai.2018 - 02h00
{{video=1}}
{{lang=1|eng,//staging.arte.folha.com.br/ciencia/2018/climate-crisis/arctic/|esp,//arte.folha.uol.com.br/ciencia/2018/crisis-del-clima/artico/}}
Frio e vento castigavam a encosta da montanha Platô (Platåberget, em norueguês), em frente ao aeroporto da cidade de Longyearbyen, na ilha Spitsbergen (Noruega). Os cantores do coral masculino Store Norske, porém, aguentaram firmes com seus macacões azuis e quepes brancos.
Entoaram canções populares norueguesas debaixo de chuva, que nunca esteve no programa da cerimônia para comemorar o décimo aniversário do Cofre Global de Sementes.
O ministro norueguês da Agricultura, Jon Georg Dale, duas dúzias de jornalistas e outro tanto de doadores de sementes ficaram molhados. Todos estavam preparados para neve, não para água, em pleno inverno ártico.
{{imagem=1}}
O cofre e o aeroporto ficam a 5 km do centro de Longyearbyen, cidade mais ao norte do planeta. Os termômetros costumam marcar -15ºC nessa época, não os 3ºC positivos daquele 26 de fevereiro, incomuns no local do paralelo 78ºN, a meros 1.300 km do polo Norte.
Cerca de 2.000 pessoas vivem na capital do arquipélago de Svalbard. E muitos turistas se dispõem a pagar R$ 600 por diária de hotel para ver a aurora boreal, passear em motos de neve e encontrar ursos polares ameaçados de extinção pelo aquecimento global –desde que munidos de uma espingarda, para o caso de o animal estar faminto.
No dia seguinte, choveu de novo. Muita gente foi embora de Svalbard sem ver a aurora boreal. A água congelou no chão, e os turistas que permaneceram no arquipélago ficaram confinados em seus hotéis.
A reportagem da Folha tinha reservado a data para alcançar geleiras distantes que se encontram em retração por força da mudança do clima. Com a chuva, só pôde registrar imagens de enxurradas e poças em Longyearbyen e ao longo da rodovia que leva às minas de carvão.
{{video=6}}
Na manhã seguinte, foi possível fazer uma incursão na geleira Longyear, a menor no topo do vale em que se abriga a vila. Duas estacas fincadas na neve marcam a entrada de uma caverna de gelo que o derretimento aprofunda todo verão.
Depois de cavar bastante, o guia Francisco "Chicco" Mattos encontrou a escada de acesso. Brasileiro apaixonado pelo Ártico, ele vive há 7 anos em Longyearbyen, onde trabalha com produção de documentários. De início, a fenda se parece com uma toca de animal, mas logo se revela uma basílica comprimida de gelo marmoreado pelos resíduos de rocha que tritura há séculos, ou milênios.
{{imagem=2}}
Foi uma semana atípica no Ártico. A região é a que mais tem esquentado no globo, ganhando pelo menos 4ºC nas últimas décadas, contra 1ºC no restante do planeta. No final de fevereiro, porém, o tempo batia recordes de esquisitice.
No norte da Groenlândia, a estação Morris Jesup, uma das mais próximas do polo Norte, marcou mais de 60 horas de temperaturas positivas. O Ártico todo, segundo medições de satélite, esteve até 20ºC acima do normal. Em Svalbard, a média de fevereiro ficou 11ºC além do esperado.
Não terá sido a primeira vez que uma reviravolta no tempo frustrou planos de humanos na cidade criada pelo americano John Munro Longyear em 1906. Mineiros de carvão, entretanto, tinham mais a temer com neve e avalanches, não com portas de carro imobilizadas pela chuva congelada.
{{mosaico=1}}
A transformação climática do Ártico criou percalços para o Cofre Global de Sementes, construído dez anos atrás pelo governo da Noruega por US$ 9 milhões (cerca de R$ 15 milhões à época) como um seguro para enfrentar as consequências do aquecimento global na agricultura.
Desde então, 1.059.646 amostras únicas de sementes já foram depositadas no local, as últimas 76 mil em 26 de fevereiro, no décimo aniversário da instalação. São duplicatas de sementes guardadas em 73 bancos doadores espalhados pelo mundo, como o do Cenargen (Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia) em Brasília.
"Há desastres naturais, como o tsunami que golpeou um banco genético nas Filipinas e pôs a perder material muito importante. Perdemos bancos genéticos no Afeganistão e no Iraque", justifica Marie Haga, diretora executiva da ONG Global Crop Trust, que toma conta do Cofre das Sementes. "É reconfortante saber que, caso as coisas deem errado, podemos ir a Svalbard, recuperar as sementes e recomeçar do zero."
{{video=3}}
A guerra civil na Síria inviabilizou uma importante coleção do Centro Internacional para Pesquisa em Agricultura de Áreas Secas (Icarda, na abreviação em inglês) na cidade de Aleppo. Com 92.430 duplicatas de Svalbard, a instituição pôde reconstituir o acervo no Líbano e em Marrocos, em 2015 (só a instituição que depositou as sementes pode sacá-las do banco gelado).
"O problema mais básico da agricultura hoje em dia é que as sementes que nos alimentam não podem adaptar-se tão rápido à mudança do clima. As plantas e a humanidade se adaptaram ao mundo todo, mas isso levou dezenas de milhares de anos", explica Haga.
"Precisamos cruzar plantas que resistam a temperaturas mais altas, que tolerem salinidade mais alta no solo, que possam combater novas pragas e doenças. E essa diversidade de cultivares é a matéria-prima que usamos."
Um exemplo frequente do que se pode alcançar com cruzamentos de variedades é a soja, de clima temperado. Ela foi aclimatada pela Embrapa para cultivo no cerrado tropical e até na Amazônia equatorial.
{{info=1}}
Uma única variedade comercial de trigo, como a "Veery", desenvolvida nos anos 1980, resulta de 3.170 cruzamentos com 51 plantas oriundas de 26 países.
Construir uma fortaleza gelada a fim de conservar diversidade para o futuro, 14 anos atrás, era uma ideia considerada maluca e talvez constrangedora para o governo norueguês, conta Cary Fowler, primeiro diretor do Crop Trust.
Ele apresentou a proposta para o Ministério das Relações Exteriores em Oslo e ouviu de um jovem funcionário de alto escalão: "Dr. Fowler, o sr. está dizendo que esse é o recurso natural mais importante da Terra? E que Svalbard seria o melhor lugar da Terra para conservá-lo? Como poderíamos dizer não?"
Svalbard pode ser o melhor local do mundo para guardar o tesouro, mas nem por isso está imune ao aquecimento global. A temperatura indicada para conservar sementes é -18ºC, e nada melhor, para economizar energia, do que usar um depósito numa montanha em que os termômetros variam entre -3ºC e -4ºC, mesmo durante o verão.
{{imagem=5}}
{{imagem=16}}
Ao percorrer 130 m de túnel em ligeiro declive para alcançar a câmara frigorífica de 95 m², o visitante tem a sensação de que o interior da construção é mais quente que o exterior. Isso decorre da ausência de vento, mas também do fato de que a temperatura externa, em dias normais como o domingo (25/2), reservado para a equipe da Folha, estava vários graus mais negativa.
Num ano típico, o cofre só é aberto três ou quatro vezes, quando há sementes para depositar. Na comemoração dos dez anos, houve mais de uma dúzia de aberturas, 11 delas para os times de reportagem credenciados. Um grupo por vez, acompanhado do pessoal do Centro de Recursos Genéticos Nórdicos (NordGen), que faz a zeladoria do cofre.
Por razões de segurança, é proibido fotografar dentro do túnel escavado na rocha, mas foi possível constatar que existiam obras em curso. Svalbard se caracteriza pela presença do permafrost, o solo congelado de regiões de tundra, que não se recompôs como esperado em volta da célebre construção triangular que marca a entrada da fortaleza na encosta da Platåberget.
O derretimento do permafrost representa um impacto do aquecimento global preocupante para os donos de imóveis em Longyearbyen, que correm o risco de vê-los afundar. No Cofre das Sementes, não causa problemas em suas três câmaras frias, cada uma com capacidade para 1,5 milhão de amostras, pois elas estão no meio de um maciço de pedra.
{{video=2}}
Já o túnel apresentou infiltração de água desde os primeiros anos de funcionamento e agora será reconstruído para se tornar mais impermeável. A obra está orçada pelo governo norueguês em US$ 13 milhões (R$ 45 milhões), mais do que o valor investido na construção.
O túnel será reforçado com concreto. Haverá novos recintos para abrigar equipamentos elétricos e de refrigeração capazes de manter a temperatura mesmo em caso de pane na energia elétrica. Os operadores do cofre asseguram que as sementes estocadas jamais estiveram em risco.
As três câmaras ficam num grande átrio revestido de concreto que se abre ao final do túnel, com pé-direito de mais de 6 m, apelidado "catedral". Há portas duplas de metal no nicho de entrada de cada uma, mas só a do meio está recoberta de cristais de gelo. É a única, por ora, refrigerada a -18ºC.
Passaram dois anos até que se estabilizasse a temperatura desejada. Foi necessário que os compressores a diesel garantissem o resfriamento da camada de rocha em volta do compartimento, para evitar flutuações no frio de -18ºC. As equipes de reportagem tiveram só dez minutos de permanência na sala forte, para evitar que o calor corporal perturbasse o ambiente.
{{mosaico=2}}
São meia dúzia de corredores com estantes de aço até o teto, cheias de caixas de plástico. Dentro delas ficam os envelopes de grossa folha de alumínio revestida de plástico em que se acondicionam as sementes, seladas com apenas 5% de umidade interna. Nessas condições, elas podem germinar até um século depois de guardadas. Os idealizadores do Cofre das Sementes defendem que localizá-lo em Svalbard foi a decisão correta e que a ilha de Spitsbergen permanece como o melhor lugar para ele.
"O aquecimento global e seu efeito no permafrost é uma grande irritação, mas não uma ameaça [para as sementes]", afirma Cary Fowler.
"Não importa aonde você for no planeta para armazenar sementes, sempre terá de rebaixar a temperatura que a natureza lhe oferece. Não há lugar na Terra onde você possa chegar e sair facilmente que lhe garanta uma temperatura de -18ºC constantes."
"No interior da montanha ainda teremos por vários séculos -4ºC", defende Marie Haga, do Crop Trust. "Há outras vantagens: politicamente é uma parte do mundo muito estável, sem terremotos nem vulcões. E a comunidade de Longyearbyen toma conta do cofre. Se pessoas com más intenções entrarem na cidade, todos saberão na hora."
{{imagem=10}}
"Quando contemplo geleiras que conheço há 30 anos, vejo que mudaram mais que minha mulher mudou", lamenta o meteorologista Kim Holmén, diretor internacional do Instituto Polar Norueguês. Ele mora há nove anos em Longyearbyen e faz pesquisa em Svalbard há três décadas. Não economiza palavras para registrar a profunda transformação do Ártico.
"Onde quer que eu olhe vejo mudanças óbvias. O fiorde ali fora da janela não está coberto de gelo. Nesta época do ano [fevereiro] costumava haver um metro, de fora a fora, e agora são águas abertas. A neve desaparece duas semanas antes na primavera", diz.
{{info=2}}
A espessura das geleiras diminui até 40 cm por ano. As temperaturas noturnas no inverno subiram dez graus nos últimos 30 anos, enquanto as do verão não subiram tanto, o que é consistente com os cálculos sobre como os humanos induzem a mudança do clima. "A lista é interminável."
A fauna local passa por mudança acentuada de perfil. Não são só os ursos polares que sofrem com o desaparecimento de gelo marinho usado como plataforma para emboscar focas.
Tordas-anãs se veem forçadas a voar para o norte, em busca de copépodes com mais gordura armazenada em seu diminuto corpo de crustáceo. O bacalhau polar parte em busca de águas mais frias e placas de gelo em cujas frestas se abrigam os alevinos (filhotes). Outros peixes de águas mais quentes invadem o arquipélago, como a cavala, atrás da qual chegam novas espécies de pássaros, como o ganso-patola.
{{mosaico=4}}
{{imagem=11}}
"O urso polar é um símbolo para todo o ecossistema, mas o bacalhau polar é parte dele, assim como a baleia beluga, os narvais e outras espécies que dependem do gelo marinho", diz Holmén. "Há poucos de nós privilegiados o bastante para ver ursos polares em seu habitat natural. Muita gente acha que o mundo estará mais pobre se o urso polar desaparecer."
Algumas dessas pessoas, caso tenham recursos e coragem para enfrentar o frio, visitam Svalbard na esperança de contemplar o urso ameaçado. Circulam pela ilha de Spitsbergen em carros movidos a diesel e motos de neve que queimam gasolina.
No caminho do aeroporto, a usina termelétrica consome a energia fóssil do carvão para aquecer hotéis e restaurantes –além de agravar o efeito estufa e alimentar os geradores que mantêm o Cofre das Sementes a -18ºC.
{{imagem=15}}
A Noruega paga pelo Cofre das Sementes, pôs US$ 1 bilhão (R$ 3,5 bilhões) à disposição do Fundo Amazônia para atividades que reduzam a pressão sobre a floresta brasileira e dá pesado incentivo fiscal para eletrificar sua frota de carros. No entanto, quase toda sua riqueza deriva do petróleo e do gás natural, que produz e exporta a partir do Mar do Norte.
"Como um país rico que obtém renda de combustíveis fósseis, temos de mudar nossa economia, pois sabemos que a indústria de óleo e gás será menos importante no futuro", concede Ola Elvestuen, ministro de Clima e Ambiente da Noruega.
"Não é algo que possamos simplesmente desligar. Precisamos estar na vanguarda da redução de emissões, assumir responsabilidade pela nossa parte e pensar em como podemos tornar nossa economia mais diversificada."
"A indústria é parte da solução, não é inimiga. Você e eu somos parte do problema, eu e você somos parte da solução. Se não começarmos a fabricar e consumir produtos que requeiram menos petróleo, nada irá mudar", pondera Kim Holmén, do Instituto Polar Norueguês.
{{imagem=6}}