Camponês peruano processa empresa elétrica alemã e pede indenização por encolhimento de geleiras
29.mai.2018 - 02h00
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Juan Victor Morales Moreno, 52, tem um dos empregos mais solitários do mundo. Salvo incursões até o centro de Huaraz (Peru) nas folgas quinzenais, ele vigia o ano todo a lagoa Palcacocha (4.562 m de altitude), na cordilheira Branca, 100 m abaixo de sua cabana de pedra.
O salário é de 2.500 soles (cerca de R$ 2.800). A missão: a cada duas horas, noite ou dia, relatar qualquer perturbação no lago glacial, por rádio ou telefone de satélite, ao Centro de Operações e Emergência Regional do departamento (estado) de Ancash. O trabalho como guardião da montanha castigada pelo aquecimento global já dura três anos.
Toda sua atenção se volta para as geleiras Palcaraju e Pucaranra, que pendem ameaçadoras a 600 m acima do espelho d'água. De sua estabilidade depende a segurança de 25 mil huaracinos que vivem no chamado cone de risco aluvional (cerca de um sexto da população).
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Palcacocha ganhou notoriedade internacional quando um desses moradores –Saúl Luciano Lliuya– colocou-a no centro de um processo judicial na Alemanha contra a empresa de energia RWE. A ação demanda que a companhia pague uma parcela de 17 mil euros (R$ 68 mil) das obras de segurança na lagoa, com custo total estimado em R$ 20 milhões.
A quantia corresponde ao quinhão de responsabilidade atribuído à RWE (0,47%) por todas as emissões de gases do efeito estufa lançadas no mundo desde 1854, segundo estudo publicado em 2014 por Richard Heede, do Climate Accountability Institute dos EUA.
Por improvável que pareça, as cortes alemãs deram seguimento ao processo.
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A ameaça posta por Palcacocha é concreta. Em 1941, a lagoa tinha volume 30% menor que o atual e causou cerca de 2.000 mortes em Huaraz. Naquela manhã de 13 de dezembro, uma avalanche de pedras e lama cortou a cidade ao meio.
Acredita-se que um bloco dos glaciares se desprendeu e criou uma onda com dezenas de metros de altura. Rompeu-se o dique natural de rochas e terra solta da moraina (depósito de fragmentos transportados pela geleira em movimento).
Restaram então somente 500 mil m³ de água no reservatório, o equivalente a 200 piscinas olímpicas. Com o contínuo derretimento de Palcaraju e Pucaranra, tal volume multiplicou-se por 34.
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"No ano passado, no mês de maio, houve uma avalanche moderada da montanha Palcaraju. Caiu diretamente na lagoa e produziu uma onda de três metros", conta o vigilante Victor Morales. "Levou os sifões para a parte esquerda e os amontoou como se fossem espaguete."
Morales se refere aos dez tubos negros com 25 cm de diâmetro que sugam água do meio da lagoa e a descarregam na cabeceira do riacho Cojup. O conjunto oferece um reforço para a tubulação de escoamento sob o dique de 7 m construído depois do terremoto de 1970, que, sozinho, não dá conta de manter a água na cota de segurança em época de chuva e derretimento acelerado, de setembro a maio.
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Trata-se de um sistema provisório e insuficiente, afirma o engenheiro Luis Alberto Beltrán Flores. Ele é o consultor do governo regional de Ancash para o projeto de obras de segurança em Palcacocha e outras 22 lagoas glaciais.
A meta é rebaixar o nível de Palcacocha ainda mais. Para afastar o perigo pior, haveria ainda que construir um dique com o triplo de altura (20 m), reforçado com concreto.
Por ora, só os termos de referência para a licitação foram feitos. Falta aprovar um orçamento do governo federal para contratar uma empresa que detalhe o projeto executivo de engenharia.
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Ao lado de Beltrán na montanha, Mirtha Cervantes, secretária de Meio Ambiente e Recursos Naturais do governo de Ancash, ressalva que já se iniciou a implantação de um sistema de alerta precoce à população.
O dispositivo envolverá o uso de sensores, sinais sonoros e exercícios de evacuação da zona de risco, no curto prazo de 40 minutos entre um "evento" em Palcacocha e a devastação de Huaraz. Por ora, tudo ainda está nas mãos –ou nos olhos e ouvidos– do guardião Victor Morales.
Depois de passar seu informe por rádio, o vigilante de Palcacocha serve canecas de leite com arroz doce cozido aos visitantes esfalfados pelo impacto da altitude. São 10h da manhã e, ao longe, começa o ronco diário de pequenas avalanches em Palcaraju e Pucaranra deflagradas pela temperatura em elevação.
Nenhuma alcança a lagoa.
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O guia de montanha e agricultor Saúl Luciano Lliuya, 37, fala baixo e de modo pausado. Durante entrevistas, revira os olhos nas órbitas, ao que parece buscando as palavras corretas em espanhol (até os seis anos, só falava quéchua em casa).
Sua contenção destoa da imagem de camponês intrépido, que conduz turistas em segurança pelas paredes de gelo da cordilheira Branca e se aventura a processar uma potência empresarial em terras alemãs.
O amor pelas montanhas venceu a timidez, é a sua explicação. Ele as sente correr nas veias como a água do degelo corre pelas "quebradas" (calhas dos riachos glaciais).
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O pai era carregador de escaladas. Menino, Luciano ficava fascinado com os equipamentos e as fotografias. "Cresci nesse ambiente. Aos 8 anos já caminhava por lá, [na altitude de] 4.500 metros, 4.800 metros", recorda.
Os três anos de curso para liderar grupos de turistas são um recurso comum das novas gerações para aumentar a renda nos meses secos, de junho a agosto. No restante do ano, Luciano planta e colhe batatas, quinoa, trigo e cevada na propriedade da família em Llupa, povoado a 15 minutos de carro do centro de Huaraz.
Na garagem da casa de adobe com dois pisos, o guia tem uma perua Toyota –"station wagon", como se diz na região– que usa para ir à cidade de noite, para as aulas de inglês, e em serviços de táxi informal. Às vezes dorme na segunda casa, que está terminando de construir em Nueva Florida, bairro incluído no cone de risco de Palcacocha.
"Quando comecei a sair como guia, em 2002, vi que tudo era muito lindo. Nos anos seguintes na montanha, encontrava [os glaciares] cada vez menores", conta.
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Ele já havia ouvido falar de aquecimento global na escola. Pesquisando sobre o descongelamento, as lagoas e os aluviões, descobriu que havia uma relação com a mudança climática: "Tudo isso é causado pela poluição, pelas indústrias, toda uma cadeia de relações".
"Isso te afeta. Estás perdendo algo. Além disso, sabíamos que Palcacocha era uma lagoa que estava em risco, crescendo. Perguntava-me o que deveria fazer. O que vai acontecer quando já não houver montanhas, água suficiente?"
O contínuo derretimento de geleiras não cria só o risco emergencial de colapso das lagoas glaciais. Elas ameaçam também o futuro do Peru, que ficará sem água para gerar eletricidade e abastecer a população –um terço da qual vive na capital, Lima, quase inteiramente dependente do degelo para dar de beber a seus habitantes.
Em 2014, quando se realizou em Lima a 20ª conferência internacional sobre mudança do clima, Luciano conheceu José Valdivia Roca, da ONG Wayintsik ("nossa casa", em quéchua). Valdivia lhe apresentou Noah Walker-Crawford, um jovem antropólogo de família norte-americana nascido na Alemanha, que trabalhava na ONG Germanwatch.
Das muitas conversas sobre como reagir à destruição da cordilheira Branca surgiu a ideia de responsabilizar os causadores da mudança do clima. A RWE terminou escolhida por ser a maior emissora de gases do efeito estufa na Europa e porque a Germanwatch poderia conseguir assessoria jurídica na Alemanha, sede da empresa de energia.
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Luciano diz que, no Peru, é muito perigoso enfrentar uma companhia na Justiça, por exemplo uma mineradora grande: "Processar uma empresa lá [na Alemanha] dava o que pensar. Pensei por um tempo, uns dois meses. Decidi que sim, pois não via outra opção". A ação começou em 2015.
Por causa dela, o guia-agricultor precisou ir três vezes à Alemanha, o que lhe garantiu alguns olhares atravessados no povoado e na cidade. Há quem acredite que Luciano recebe dinheiro para promover a ação, embora os 17 mil euros da causa, caso saia vitoriosa, se destinem aos governos local e regional.
Contrariando as expectativas do grupo, o processo caminhou. Apesar de recusado em primeira instância num tribunal de Essen, um recurso apreciado em novembro de 2017 numa corte de segunda instância em Hamm levou à decisão de que a causa era plausível perante a lei alemã (embora o tribunal não se tenha pronunciado sobre seu mérito).
A RWE rejeitou na ocasião uma oferta de acordo de Luciano referendada pela corte. Com isso, o caso entrou numa fase de produção de provas e oitiva de especialistas, que pode durar vários meses. Até aqui, os custos da ação que cabem a Luciano foram cobertos por doações para um fundo especialmente criado para isso.
Para Luciano, já será uma conquista significativa se um causador da mudança climática reconhecer sua responsabilidade. Não se trata só do dinheiro, ele justifica, mas de conseguir que os causadores contribuam com o que lhes cabe para as medidas de segurança ou de adaptação perante a mudança do clima.
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Os 160 mil km² de glaciares nos Andes peruanos entraram quase por acaso na vida do engenheiro civil César Portocarrero. Foram, entretanto, capazes de convertê-lo num dos glaciologistas mais requisitados de seu país.
Ele trabalhava nas obras de segurança das lagoas da região, após o terremoto de 1970, quando foi designado para buscar, no aeroporto de Lima, o geólogo Lonnie Thompson, da Universidade do Estado de Ohio (EUA). Deveria também acompanhar o especialista em três meses de escavação de testemunhos (cilindros verticais) de gelo com que Thompson ajudou a reconstruir o passado do clima da Terra.
Quando viu o interesse do jovem pelo campo de pesquisa, Thompson instigou-o a estudar glaciologia e geomorfologia no Alasca, depois em Ohio e, por fim, na Universidade Columbia, em Nova York.
Portocarrero se tornaria depois líder da Unidade de Glaciologia instalada em Huaraz pela Autoridade Nacional de Águas do Peru (ANA). Ali se dedicou a monitorar o retrocesso das geleiras, em especial as que pendem de forma ameaçadora sobre as lagoas, com inclinação superior a 22º.
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Nos anos 1970, relata, as geleiras retrocediam de 7 m a 8 m por ano, em média. Na década de 1980 isso subiu para 20 m. Na de 2000, para 25 m. A diminuição em espessura se calcula em 4 m anuais. O derretimento acelerado cria um paradoxo: água demais no presente e escassez de recursos hídricos no futuro.
Com mais gelo derretendo, os lagos crescem em volume e número. No inventário de 2003 da ANA, contaram-se 830 na cordilheira Branca; uma década depois, já eram 860. Mas só 23 delas, Palcacocha à frente, apresentam risco de despejar aluviões trágicos sobre a população de Ancash.
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Segundo Portocarrero, entre 10 mil e 14 mil pessoas poderiam morrer num desastre como o de 1941. Mesmo quando estiver em funcionamento o sistema de alerta precoce planejado pelo governo regional, as mortes poderiam chegar a 7 mil.
"A cordilheira Branca é a maior que temos. Ela abastece de água um dos projetos [de irrigação] mais importantes do Peru, Chavimochic, no departamento de La Libertad", alerta. Terras que há 40 anos eram áridas e agora se enchem de verde com cultivos de agroexportação.
A agricultura consome 89% da água [no Peru], informa Portocarrero, e desses 89% se desperdiçam 65%. "Temos de começar a trabalhar no uso eficiente da água, como parte desse processo de adaptação ao problema que a mudança climática nos traz."
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"As geleiras são filhas do clima, crescem quando há frio e precipitação suficientes e diminuem nas épocas quentes", afirma. De acordo com o que se conhece, nos últimos 800 mil anos houve 11 períodos de resfriamento.
"O clima na Terra sempre foi cíclico, resfriamentos e aquecimentos, resfriamentos e aquecimentos. Agora estamos vivendo uma época de aquecimento, entre resfriamentos, cujo pico se deu há 18 mil anos."
Este "último verão" que estamos vivendo agora tem, na visão do glaciologista, uma particularidade: "O homem, em seu afã de indústria e desenvolvimento, está acelerando o aquecimento como nunca se viu antes". E, com isso, esvaziando a caixa d'água do Peru.
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Saúl Luciano Lliuya convida os repórteres para almoçar. Estamos no andar superior da casa, que tem dois cômodos: o amplo quarto de pé-direito baixo, com livros dos montanhistas Jon Krakauer e Reinhold Messner convivendo com cordas, botas e mosquetões, e uma antecâmara em que outros equipamentos de escalada se misturam com centenas de espigas multicoloridas de milho.
No piso abaixo, de terra batida, a mulher Lidia prepara no fogão de lenha um guisado de quinoa com ají e batatas para acompanhar o arroz. À exceção deste, todos os ingredientes provêm dos campos em volta, cultivados pelos homens da aldeia com ajuda de bois para arar a terra.
A bebida é uma infusão fraca e adocicada, "água de menta", planta que cabe às mulheres plantar e vender no mercado. No fundo da cozinha, ouvem-se sem parar os guinchos dos "cuyes" (porquinhos-da-índia) comuns nos lares quéchuas, iguaria reservada para grandes festas de aniversário e casamento.
Luciano atravessou o mundo para lutar contra o aquecimento global e se espantou com a qualidade da vida europeia. Como boa parte dos peruanos, porém, ainda depende das geleiras para ter o que pôr na mesa.
"A montanha me dá angústia. Vivemos debaixo dela, bebemos a água que desce da montanha. Como guias de turismo, trabalhamos na montanha. Comemos e sustentamos nossos filhos graças à montanha", diz.
"A montanha é tudo para mim."
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