Meio milhão de pessoas devem deixar a ilha devastada pelo furacão Maria
15.mai.2018 - 02h00
{{video=3}}
{{lang=1|eng,//staging.arte.folha.com.br/ciencia/2018/climate-crisis/puerto-rico/|esp,//arte.folha.uol.com.br/ciencia/2018/crisis-del-clima/puerto-rico/}}
As pás decepadas das turbinas eólicas da empresa Gestamp em Naguabo, leste de Porto Rico, não deixam dúvida sobre a energia dos ventos. Não tanto a da fonte alternativa que promete amenizar o aquecimento global, mas a força destruidora com que uma atmosfera desequilibrada pela mudança climática lançou a fúria do furacão Maria sobre a ilha, em 20 de setembro de 2017.
A cerca de 15 km do parque eólico destroçado em Naguabo, outra fonte de energia limpa sofreu o impacto do acúmulo de gases do efeito estufa na atmosfera. Em Humacao, uma fazenda de painéis fotovoltaicos da empresa Reden Solar teve destruída a monotonia de suas fileiras de placas.
A ilha caribenha foi assolada por ventos de até 250 km/h do ciclone de força 4 ao tocar Porto Rico (sobre o mar, Maria chegou à intensidade 5 e foi um dos furacões mais potentes de 2017). Maria deixou um rastro de US$ 90 bilhões em prejuízos e um Estado norte-americano –se bem que de segunda classe, apenas "associado"– em completo desamparo.
{{video=1}}
{{imagem=6}}
Foi uma temporada inesquecível de furacões. Harvey inundou 100 mil imóveis em Houston, no Texas. Irma foi o mais forte já registrado, com 37 horas na categoria 5. Maria completou a tríade causadora de US$ 265 bilhões de perdas em território norte-americano. Ainda se debate, todavia, se tanta destruição já seria produto da mudança climática global.
Furacões crescem com o calor da água do mar, e sua temperatura está subindo com o aquecimento global. São fenômenos raros, porém, e as estatísticas sobre intensidade e frequências dessas tormentas não dão segurança plena de que a ligeira tendência de alta registrada no século 20 resulte de perturbações na atmosfera.
{{video=4}}
A temperatura da superfície marinha já subiu 1,5ºC no Atlântico Norte, e algumas projeções indicam que se elevará pelo menos mais 1ºC na região, que engloba o mar do Caribe. Modelos de computador que simulam o clima do futuro projetam que furacões de categoria 4 e 5 poderão tornar-se mais comuns, que a intensidade média dos ciclones caribenhos subiria 4% neste século e que a quantidade de chuva despejada aumentaria de 10% a 15%.
O aeroporto inundou. O próprio governo entrou em colapso, acompanhando a infraestrutura. Pelo menos 90 mil postes caíram. A maioria da população "boricua", como se chamam os habitantes de Porto Rico, ficou sem energia elétrica, telefonia celular, combustível e internet por semanas.
Quase oito meses depois, em 18 de abril, a seis semanas de iniciar-se nova temporada de furacões, a ilha voltou a sofrer apagão generalizado. E isso poucas horas depois de o governo anunciar que tudo voltara ao normal e que só 3% da população ainda estava sem luz.
O olho do furacão Maria entrou na ilha pelo sudeste, em Yabucoa. Cortou-a de ponta a ponta, saindo por Isabela, no noroeste, num percurso aproximado de 190 km. As rajadas mais intensas varreram a porção leste do território, incluindo a capital San Juan.
{{imagem=7}}
"Rugia como um leão, inexplicável", conta Janet González, líder comunitária em Punta Santiago, perto de onde irrompeu o olho do furacão. O mar adentrou 300 m de terreno, fazendo emergir águas negras de fossas e esgotos. "O telhado se foi, caiu parte do forro. Já experimentei outros furacões, como Hugo em 1989, mas nem chegam aos pés [de Maria]."
Janet aguardava o início da distribuição de água e alimentos por um grupo de voluntários do bairro Camarones, na vizinha Guaynabo. Todos vestiam camisetas cor de laranja com os dizeres "No te quites. Levántate. Unidos somos fuertes" (Não vá embora. Levante-se. Unidos somos fortes), alusão aos compatriotas que abandonaram o país depois do furacão, a maioria para a parte continental dos EUA.
{{imagem=18}}
Sob o sol forte da uma da tarde, a carreata para na casa de madeira semidestruída de Alfonso Lugo Colón. A sala desapareceu. "Caía água salgada do telhado", diz. "Não se respeita a palavra de Deus. Aconteceu porque tinha de acontecer."
A casa que dividiu por 48 anos com a mulher, morta há dois, está coberta por uma de milhares de lonas plástica azuis distribuídas em Porto Rico pela Agência Federal de Administração de Emergências dos EUA (Fema, na abreviação em inglês). A sua fora esticada por bombeiros de um país cujo nome Lugo não recorda mais.
{{video=2}}
Sem luz havia dois meses, portanto sem geladeira, o aposentado sobrevive com as doações. Guarda na cozinha dezenas de fardos de água mineral e latas de alimentos em conserva. "Ajuda do governo, nada. Só das pessoas que trazem comida e remédios." Lugo já tinha preenchido o formulário da Fema descrevendo suas perdas e aguardava uma decisão da agência sobre uma indenização.
"Há que ter paciência e tolerância", conforma-se. "Pelo menos tenho a vida."
Maria não poupou nem mesmo os moradores do centro histórico de San Juan, conhecido como Casco Viejo. A capital fica a cerca de 100 km de Punta Santiago, ao norte da trajetória do olho de Maria, na área em que os ventos foram mais devastadores.
{{imagem=3}}
{{imagem=4}}
{{imagem=5}}
O escritor Héctor Feliciano mora na Calle Sol, a poucos metros do palácio que abrigou o conquistador espanhol Juan Ponce de León (1474-1521). Sua casa do século 18 resistiu bem, à parte alguns trechos de reboco caído, mas tremeu por horas seguidas –só a mangueira do pátio sofreu dano grave, perdendo folhas e frutos.
"Foi como o rugido de um dragão somado ao estrondo de um Concorde", narra o escritor, referindo-se ao avião supersônico popular na França durante as duas décadas em que lá viveu. Escolheu voltar a Porto Rico para criar as duas filhas.
Ele diz que furacões são como um rito de passagem para crianças do Caribe, até mesmo um dia de festa. A família se mantém unida em torno de um caldeirão enorme de sopa. Maria foi exceção.
{{info=1}}
As meninas choraram a noite inteira, de medo. O vento arrasou a rede mambembe de cabos elétricos que passava de casa em casa, num bairro quase desprovido de postes. Os dias e semanas seguintes foram de isolamento quase completo –sem telefone, sem internet, sem poder tirar dinheiro do banco, levantando às 4h da manhã para tentar conseguir gasolina.
Os únicos contatos eram com vizinhos, que se organizavam para limpar as ruas de escombros. Aficionados de corridas de cavalos, os raros donos de radinhos de pilha, tornaram-se subitamente populares.
"Porto Rico possuía uma penetração digital de 70% e a arrogância em aço inoxidável dos países digitalizados", escreveu Feliciano numa crônica. "Em poucas horas, Maria arrasou a arrogância e a falsa abundância que a sustentava."
De pouco valeu aos boricuas habitar um Estado associado dos EUA. Sem meios de honrar uma dívida pública de US$ 73 bilhões (cerca de R$ 230 bilhões) já antes do desastre, os 3,4 milhões de habitantes da ilha viram o presidente Donald Trump dizer, três semanas depois, que teriam de arcar com o peso maior da recuperação.
{{mosaico=2}}
{{mosaico=3}}
{{imagem=13}}
O republicano também os congratulou pelo número baixo de mortos (a cifra oficial era 16, naquela altura), em comparação com as vítimas do furacão Katrina em Nova Orleans (1.833), em 2005. Após a visita de Trump, o número de mortos reconhecido pelo governo de Porto Rico continuou subindo, até alcançar 64 em novembro, mas mesmo essa cifra foi posta em dúvida.
Sob pressão, o governador Ricardo Rosselló designou uma comissão para revisar o número. Embora a contagem oficial supostamente inclua as chamadas vítimas indiretas, aos poucos tornou-se claro que não estavam sendo consideradas as mortes de pessoas por falta de ambulâncias ou de energia para realizar diálise, por exemplo.
Estimativas independentes indicam que haveria pelo menos mil vítimas não contabilizadas. Investigação do jornal "The New York Times" com registros de óbitos de setembro e outubro em 2016 e 2017 apontou excedente de 1.052 mortes após o furacão. Estudo do demógrafo Alexis Santos, da Universidade do Estado da Pensilvânia (EUA), e do colaborador Jeffrey Howard chegou a quantidade semelhante: 1.085.
"Nenhuma estrutura está preparada para um evento dessa magnitude. Jamais imaginei que seria possível", disse à Folha a advogada Tania Vásquez, secretária de Recursos Naturais e Ambientais de Porto Rico. "Os rios saíram de seus leitos por até três milhas [quase 5 km]... Nem nas previsões para 500 anos."
"Há que mudar toda nossa maneira de ver as coisas", afirma a advogada, o que inclui proteger os recifes de coral que amenizam o impacto das ressacas ciclônicas. "Mas, se seguirmos aquecendo o planeta, não sei, não."
{{imagem=11}}
José Molinelli, geomorfólogo da Universidade de Porto Rico, diz que a vulnerabilidade da ilha não diz respeito só a furacões, mas também a terremotos e tsunamis. Se os oceanos subirem um metro, algo que pode ocorrer até o final do século em consequência da mudança climática global, a infraestrutura hoteleira da ilha estaria ameaçada, pois foi construída a não mais que 100 m da linha de maré.
"A visão inteligente, resiliente, é respeitar os locais da natureza, sair das áreas inundáveis", defende. "Há que pensar em como redesenhar o país."
A geóloga Maritza Barreto, da mesma universidade, investiga a erosão marinha, ameaça mais constante a rondar a Ilha Encantada (frase constante em placas de automóveis). Levantamento seu amostrou 60% dos 580 km de costa e constatou que pelo menos um quinto das praias já sofreu erosão grave, sob ação de ressacas causadas por frentes frias que entram de novembro a março e se tornam cada vez mais frequentes.
No bairro de classe média Ocean Park, orla marítima de San Juan, o mar retoma 1,2 m de terreno por ano. Em Loiza, uma faixa de manguezais, lagunas e dunas habitadas na maioria por descendentes de escravos africanos, o avanço do oceano alcança 1,8 m/ano.
Na comunidade de Piñones moram cerca de 2.000 pessoas. Apenas 15 casas se perderam –segundo Maricruz Rivera Clemente, líder comunitária, porque as dunas e o mangue oferecem proteção contra as ressacas. Ela reclama que a ajuda do governo mal chega ao local, o que atribui ao racismo não declarado em Porto Rico.
{{imagem=8}}
Perto dali o artesão negro David Tejada Morales, veterano de três temporadas de combate no Iraque, é o retrato do desamparo: perdeu parte da perna, não na guerra, mas depois de pisar num prego, e aos 69 anos mora sozinho na metade da casa que não foi derrubada por Maria. Caiu a oficina na parte de trás, onde fazia artesanato com metal. Agora passa os dias na cadeira de rodas, à espera.
Uma funcionária da Fema tinha visitado a casa dois dias antes para tirar fotos do estrago. Morales animou-se quando viu da varandinha mais indivíduos brancos tirando fotos na rua, pensando que a Fema retornava com boas notícias sobre indenização –mas era só a reportagem da Folha.
{{imagem=19}}
Estima-se que cerca de 20% das árvores de Porto Rico jamais se recuperarão. Nas que sobreviveram, folhas brotam diretamente dos troncos e cotos de galhos, o que as deixa parecidas com grandes cotonetes verdes. Há relatos de borboletas diurnas circulando à noite em busca de flores inexistentes e morcegos desorientados pela falta de frutos.
As estradas que levam a Utuado –cidade das mais afetadas– ainda compunham em novembro um cenário de bombardeio, com crateras e montes de terra por todos os lados. Poucos carros circulam por elas, não raro veículos de empreiteiras e companhias elétricas envolvidas em reparos, ou camionetes de excursões que combinam caridade com selfies.
Diante da casa de Yessica Matos Torres, um SUV novo, vidros tingidos de preto, estaciona para o desembarque de um jovem loiro com o letreiro #yonomequito (eu não vou embora) na camiseta justa. Os olhos da jovem mãe se enchem de lágrimas ao receber um fardo de água mineral Cristalia e o cartão Visa no valor de US$ 300.
Da morada de Carlos Soto López sobrou só o portãozinho pendurado num pedaço de mureta, onde se lê que a família está na próxima casa, estrada acima. A sua deslizou pelo barranco às 2h20 da madrugada, solapada por uma bica d'água que virou riacho. Ainda pode ser visto 20 m abaixo um carro amarrotado na garagem destruída.
Sem condução para chegar ao trabalho a 20 km de distância, numa ilha em que quase não vê transporte público, Soto perdeu o emprego de motorista de caminhão de lixo. Ele sustenta agora os dois filhos pequenos fazendo bicos como mecânico na casa em que ocupou, do amigo Manolo, que se mudou para os EUA.
{{imagem=10}}
Porto Rico já vinha perdendo população para o continente, em especial para o a Flórida, à taxa de meio milhão de pessoas por década, empurradas pela estagnação do emprego. Nos dois meses após o furacão, o abandono se acentuou, com quase 200 mil borícuas embarcados em voos para os EUA.
Edwin Meléndez e Jennifer Hinojosa, demógrafos do Centro de Estudos Porto-Riquenhos da Universidade da Cidade de Nova York (Cuny, na sigla em inglês), estimaram que até 470 mil nativos, ou 14% da população da ilha, poderão emigrar em definitivo para o continente nos dois anos após o furacão.
As vítimas de Maria fogem de um futuro turvado pela necessidade de reconstruir um país fisicamente devastado e financeiramente falido. Só a tarefa de recolher os escombros das ruas e estradas –um volume projetado em 6 milhões de metros cúbicos, ou o equivalente a 2.400 piscinas olímpicas– deve consumir seis meses.
"Não sabemos mais em que país estamos", lamenta Jorge Báez, ambientalista da ONG Para La Naturaleza.
{{imagem=2}}