Garimpo rouba roça, água e saúde dos mundurukus, e governo Lula protela retirada de invasores

Exploração ilegal de ouro enlameou rio, espalhou mercúrio e desorganizou comunidades, que buscam respostas para transtorno de desenvolvimento de crianças

Como um ritual da infância, as crianças mundurukus têm, a cada dia, dois encontros marcados com o rio Kabitutu.

“Espera um pouco e você vai ver todas elas nas águas do rio. Fica tudo preto”, diz o professor Misael Munduruku, 54, em referência à cor do cabelo dos meninos e meninas.

O relógio marca 12h, início de uma tarde abafada e quente de um setembro amazônico -o calor e a secura dos rios, nesse ciclo vazante na floresta, são cada vez mais de extremos. Centenas de crianças surgem juntas do coração da Katõ, a maior aldeia da porção da TI (Terra Indígena) Mundurucu que gira em torno do rio Kabitutu.

A calma com que percorrem o caminho até o portinho da aldeia contrasta com o ritmo acelerado das brincadeiras no leito do rio. O banho no Kabitutu, um rio com água barrenta, enlameada e de aparência pastosa, em decorrência da terra revirada em garimpos de ouro no território, tem barulho e euforia. O ritual se repete a partir das 18h. E assim é todos os dias.

Crianças tomando banho de rio

Crianças mundurukus brincam no rio Kabitutu, na aldeia Katõ - Lalo de Almeida/Folhapress

Aldeia adentro, um grupo de três crianças mundurukus não vive a experiência do Kabitutu. Elas têm “retardo mental grave”, “atraso do desenvolvimento psicomotor”, “transtornos globais de desenvolvimento”, como consta em prontuários que registram os atendimentos médicos feitos.

As meninas não conseguem andar, se sentar, falar. Passam os dias na rede. Algumas noites são de choro contínuo. Os pais buscam resposta para o quadro de saúde das filhas. Recorrem a raízes para o alívio da dor física. Vão a pajés da Katõ e de aldeias vizinhas. O entendimento é que o pajé pode enxergar o que se passa no corpo das crianças.

“Ele faz um trabalho para tirar a doença”, dizem os familiares de uma das três meninas, a mais velha, de 7 anos.

A prima, de 4, esteve com um neurologista em Itaituba (PA). “Encefalopatia não especificada”, anotou o médico. Os pais da criança mais nova, de 2 anos, buscaram um pajé em outra aldeia e de lá seguiram para Santarém (PA), em busca de suporte fisioterápico. Eles já estiveram na cidade antes, por dois meses seguidos, num universo bem distinto -e bem distante- do da Katõ.

Pernas de uma criança em uma rede e, abaixo, no chão, um cachorro deitado numa galocha

Menina munduruku de 7 anos com problemas neurológicos descansa na rede em sua casa na aldeia Katõ - Lalo de Almeida/Folhapress

Não há respostas sobre a motivação do quadro de saúde dessas crianças mundurukus. Mas uma suspeita: a possibilidade de as deficiências serem decorrentes de um processo de contaminação das mães por mercúrio, a substância usada nos garimpos ilegais no território para separar e amalgamar o ouro encontrado.

“Informações técnicas publicadas indicam que o ouro encontrado sob a forma de pó exige o uso do mercúrio para formar um amálgama na proporção de um quilo de ouro para um quilo de mercúrio”, aponta um relatório de auto de infração do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) referente a um garimpo ilegal na região do rio Tapajós.

Margem de rio desmatada e com areia de cor cinzenta e água barrenta

Área de garimpo perto da aldeia Estirão das Cobras - Lalo de Almeida/Folhapress

Estudos já mostraram a contaminação de mundurukus pelo mercúrio. Mas ainda não há respostas científicas definitivas sobre eventual relação disso com os casos das crianças “molinhas”, expressão usada pelos indígenas.

“Esses casos precisam, no mínimo, ser investigados. Há um grande número de crianças com retardo cognitivo”, afirma o médico neurocirurgião Erik Jennings, ligado à Sesai (Secretaria de Saúde Indígena), com atuação em Santarém e responsável por investigações na área. “Existe alta dosagem de mercúrio, principalmente em mulheres em idade reprodutiva e em crianças e adolescentes.”

Homens e retroescavadeira em área com lama aberta para garimpo

Garimpeiros ilegais no rio Rato, afluente do rio Tapajós, em foto de 2018 - Lalo de Almeida - 19.ago.2018/Folhapress

Uma investigação médico-científica permitiria dizer se os casos, que se repetem em diversas aldeias, se associam a intoxicação por mercúrio ou a uma má assistência no pré-natal e no parto, por exemplo.

Existe um senso de urgência com o que se passa na TI Mundurucu. O isolamento e as dificuldades de acesso -são horas pelos rios Kabitutu e Tapajós até a cidade de Jacareacanga, 390 km pela Transamazônica sem asfalto até Itaituba e mais 370 km até Santarém- deixam as crianças sem o atendimento médico necessário.

As incertezas sobre a saúde de crianças e adultos vêm gerando constrangimento e abatimento entre mundurukus, um povo com tradicional espírito guerreiro. O assunto causa incômodo a parte das lideranças.

O cerco dos garimpos às aldeias, até bem próximo das comunidades, prossegue em ritmo acelerado, apesar de operações esparsas para destruição de escavadeiras.

Invasores circulam o tempo todo em embarcações pelo Kabitutu, abarrotadas de equipamentos para o garimpo -mangueiras, antenas, fogões. Eles também têm trânsito livre na aldeia Katõ. Em uma das cantinas, operada por um indígena, compram horas de uso de internet e podem vender o ouro amealhado -um grama vale R$ 210.

Crianças nadam na água e brincam na margem do rio enquanto uma embarcação passa mais ao fundo

Crianças mundurukus no rio Kabitutu, na aldeia Katõ - Lalo de Almeida/Folhapress

Silhuetas de jovens reunidos em um local com sombra, mexendo no celular

Jovens mundurukus acessam a internet pelo celular perto de local que vende horas de conexão a garimpeiros - Lalo de Almeida/Folhapress

A Katõ foi cercada por garimpos. Boa parte está desativada -o que fica é um cenário de terra arrasada, uma cicatriz sem vida.

Invasores vão abrindo novos espaços, seguindo o curso do rio, e o cerco se amplia, como numa aldeia vizinha, a Estirão das Cobras, onde o nível de cooptação de indígenas para a atividade ilegal gera insegurança extrema a quem tenta resistir.

A busca por ouro engole roças inteiras de banana, mandioca, cará, milho e melancia. “A parte mais fértil foi engolida”, diz um munduruku. As plantações vão mudando de lugar, empurradas pelo ritmo do garimpo ilegal.

Vista de drone de áreas abertas para garimpo no meio da floresta

Garimpo ilegal perto da aldeia Katõ - Lalo de Almeida/Folhapress

Mulher, de costas, caminha com cesta de palha nas costas

Mulher munduruku carrega cesto com cará colhido em uma roça na aldeia Katõ - Lalo de Almeida/Folhapress

A exploração de ouro no território mudou de figura a partir de 2019, com a entrada de escavadeiras hidráulicas capazes de abrir, em 24 horas, áreas que homens levariam meses para revirar.

O ano foi o primeiro do mandato de Jair Bolsonaro (PL), que empoderou, com palavras e ações, invasores em terras indígenas. Em 2018, os garimpos na TI Mundurucu ocupavam 1.399 hectares. No ano seguinte, já eram o dobro. Em 2022, quase o quádruplo: 5.464 hectares. Os dados são do MapBiomas, uma rede formada por ONGs, universidades e empresas de tecnologia.

Em sobrevoos feitos de 2021 a 2023, o Greenpeace identificou 32 escavadeiras na TI Mundurucu. A ONG apontou um impacto da exploração ilegal de ouro em 725 km de rio no território. Mais da metade da população é afetada pela atividade, conforme o Greenpeace.

Navegar pelo Kabitutu permite constatar esse efeito, da aparência barrenta da água ao desbarrancamento de diferentes trechos das margens. Áreas de garimpo vão se enfileirando rio acima, ocultadas por uma mata ciliar mantida como um biombo.

Vista de drone de áreas de garimpo no meio da floresta conservada

Garimpo próximo à aldeia Estirão das Cobras - Lalo de Almeida/Folhapress

Na Estirão das Cobras, grandes galões de combustível -os carotes- são mantidos na entrada da aldeia. Duas escavadeiras seguem em operação na área, segundo lideranças. Os carotes gigantes, que alimentam o maquinário da exploração ilegal de ouro, estão na frente de outras aldeias. Na Katõ, onde vive o cacique geral, Arnaldo Kaba Munduruku, 61, não há carotes do tipo.

Arnaldo exerce a função de cacique geral há dez anos. É uma voz crítica aos garimpos, em meio a um intenso processo de cooptação e pressão por invasores.

Pessoas em um barco, com expressão séria

O cacique geral Arnaldo Kaba Munduruku, de chapéu branco, conduz barco pelo rio Kabitutu - Lalo de Almeida/Folhapress

“A gente já perdeu muito lugar sagrado por causa de garimpeiro branco”, diz. “A fartura acabou. Não acha mais caça como antigamente. A terra está toda arrebentada, nosso território, todo destruído. O corpo da gente já tem mercúrio.”

O cacique se ressente da mudança radical dos hábitos alimentares, num lugar onde a língua munduruku segue predominante. O peixe sumiu. Foi substituído pelo frango comprado em Jacareacanga. No portinho da Katõ, os barcos aportam com famílias indígenas vindas da cidade e com caixas de frango e engradados de refrigerante.

Diversas embarcações vazias atracadas na beira de um rio

Porto da aldeia Katõ, na Terra Indigena Mundurucu - Lalo de Almeida/Folhapress

“Antes, tinha fartura. Hoje, a gente aguenta a alimentação do branco”, afirma Arnaldo. “Resultado do garimpo foi só doença, como diarreia e malária.”

Os atendimentos feitos na unidade de saúde da aldeia comprovam a percepção do cacique. Por semana, são 15 casos de diarreia em crianças e idosos. O que mais preocupa, porém, é a malária, especialmente a falciparum, a forma mais grave da doença -esse é o nome do protozoário, Plasmodium falciparum, mais temido por indígenas e garimpeiros.

Num único dia, o microscópio e as lâminas manuseadas por Manoel Munduruku, 58, detectaram sete casos de malária. “A ‘falcípora’ chegou aqui. Em setembro, foram quatro casos de indígenas que vêm dos garimpos e dois de não indígenas. Eles chegam com febre, dor de cabeça, calafrio”, diz o técnico.

Malária por falciparum é sempre caso de emergência médica, diante do risco de evolução para casos graves em poucos dias, conforme protocolos da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

Casa e varal são vistos através de uma janela

Casa tradicional na aldeia Katõ - Lalo de Almeida/Folhapress

Não à toa é frequente a busca de garimpeiros não indígenas por ajuda na unidade de saúde, diante dos sintomas da doença. “Quero fazer a lâmina”, pedem os invasores. Os exames são feitos no posto.

O garimpo provocou profunda desorganização política entre os mundurukus, especialmente em razão da presença, numa associação sediada em Jacareacanga, de indígenas com participação ativa na mineração ilegal. São uma minoria, num universo de 9.200 indígenas -a maior parte das 150 aldeias resiste à prática. Os efeitos, porém, são duradouros na estrutura das comunidades.

Vista de drone da aldeia no meio da floresta preservada

A aldeia Katõ, na Terra Indigena Mundurucu - Lalo de Almeida/Folhapress

Em abril de 2021, o MPF (Ministério Público Federal) denunciou 13 pessoas à Justiça por formarem um grupo criminoso para exploração ilegal de ouro na TI Mundurucu, inclusive na cabeceira do Kabitutu. Dos 13, 5 são indígenas -e 2 seguem participando das decisões de associação dos mundurukus, inclusive sobre quem entra ou não no território.

Um documento citado na denúncia registra pagamentos de R$ 106,4 mil a 12 indígenas. A descrição dos procuradores sobre o grupo evidencia o nível de pressão sobre quem resiste ao garimpo ilegal.

“O grupo de indígenas atua de maneira explícita e truculenta na defesa do garimpo em território protegido, articulando manifestações públicas em favor da atividade ilícita, aliciando outros indígenas e intimidando, por meio de ameaças e violência, aqueles que são contrários à prática”, cita a denúncia.

O dano ambiental causado pelo grupo foi estimado em R$ 74 milhões. O MPF calculou em mais de R$ 1 bilhão os prejuízos ambientais e sociais ao território em razão da exploração ilegal de ouro.

Essa região do Tapajós é um corredor de garimpos ilegais, tanto na terra indígena quanto em unidades de conservação. Itaituba e Jacareacanga são dependentes, em boa parte, desse mercado ilegal.

Vista de drone dos rios com água esverdeada

Encontro das águas poluídas pelo garimpo do rio Rato com o rio Tapajós, em foto de 2018 - Lalo de Almeida - 24.ago.2018/Folhapress

As operações esporádicas feitas por Ibama e Polícia Federal fazem os fluxos de invasores retraírem, mas momentaneamente. O garimpo resiste, reocupa espaços e abre novos. E intensifica ameaças a lideranças contrárias à atividade ilegal.

No governo Lula (PT), até agora, não foi colocado em prática um plano para a retirada de invasores, como o que é executado desde fevereiro na Terra Indígena Yanomami. Nas primeiras listas de prioridade feitas, a TI Mundurucu ocupava uma posição intermediária.

O Ibama tem pronto um plano operacional para a desintrusão, diante da constatação de 9.000 alertas de garimpo na região do Tapajós em 2023 -metade do verificado em todo o país.

Estrutura de madeira de uma casa abandonada em chão de areia

Acampamento abandonado em garimpo perto da aldeia Estirão das Cobras - Lalo de Almeida/Folhapress

“Tirar invasores é urgente. Não há lei que ampare. Isso atrapalha a organização dos indígenas”, afirma Hans Munduruku, coordenador regional da Funai na unidade Tapajós. Ele é irmão de Arnaldo Munduruku, o cacique geral. “Precisamos de fiscalização permanente.”

A partir da próxima segunda (9), a Fiocruz vai a campo na terra Mundurucu -incluída a aldeia Katõ- para o início de um acompanhamento e estudo, por dois anos, de gestantes e recém-nascidos expostos ao mercúrio. O trabalho, que envolve dez aldeias, é capitaneado pelo pesquisador Paulo Basta e tem apoio da Sesai.

A ciência pode levar respostas definitivas aos mundurukus da Katõ, onde 400 dos 800 moradores são crianças.

Três meninos na beira do rio com uma canoa atracada perto do grupo

Crianças mundurucus na beira do rio Kabitutu - Lalo de Almeida/Folhapress

Um grupo de meninos se antecipa ao ritual do meio-dia e aparece antes no Kabitutu, com óculos de proteção nos olhos e um arpão improvisado nas mãos. A pequena lança de ferro pontiaguda tem uma borracha na ponta contrária, acionada entre os dedos para a execução de um disparo.

Eles armam o arpão e tomam um fôlego antes do mergulho na água barrenta, mas calma, do rio. Tentam enxergar embaixo d’água. E vão atrás de algum peixe. “A gente caça surubim.”

ENTENDA A SÉRIE

A série de reportagens Cerco às Aldeias mostra como indígenas brasileiros têm sido impactados pela infestação de garimpos ilegais que chegaram muito próximos de suas comunidades. O trabalho, cujos capítulos são publicados ao longo do ano, tem apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund, em parceria com Pulitzer Center.

Reportagem e coordenação Lalo de Almeida e Vinicius SassineEdição e revisão de textos Giuliana de ToledoEditor de fotografia Otavio ValleEdição de fotos Fernando Sciarra, Lalo de Almeida e Otavio ValleTratamento de imagem Edson SallesEditor de arte Kleber BonjoanInfografia Gustavo Queirolo e Diana YukariDesign Irapuan Campos e Fernando SciarraCoordenação de desenvolvimento Rubens Fernando AlencarDesenvolvimento Gustavo Goulart e PilkerApoio Amazon Rainforest Journalism Fund, em parceria com Pulitzer Center