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Um dos maiores nomes da arte do país, Tunga morre aos 64, no Rio

Nasci em Rondônia, mas cresci na desorganização gerada pela extinção do Território Federal do Guaporé. Na escola, aprendi sobre o pouco de regional que tem o Estado, com suas diferentes culturas e, ao mesmo tempo, sem cultura própria. Virei fotógrafo, logo depois fotojornalista. Já em São Paulo, queria mostrar o que existia naquele lugar desconhecido do país, histórias perdidas em meio a mudanças de nome e de tempo. No Sudeste, mal sabem diferenciar as siglas RO e RR.

Com 121 anos, o festejo do Divino Espírito Santo no Vale do Rio Guaporé é a manifestação religiosa mais antiga da região e seu ritual segue ensinamentos transmitidos de pai para filho. O choque imagético causa frenesi nas pequenas cidades por onde passam os romeiros, mas o registro histórico é deixado de lado. A falta de documentação acerca da festa capturou minha a atenção; poucos fotógrafos acompanharam a romaria. Os organizadores batalham pelo título de patrimônio imaterial da União, concedido pelo IPHAN.

Martelei três anos em cima da pauta, considerada “luxo” nos tempos de jornalismo rápido e sem dinheiro para grandes histórias. Juntei férias e folgas e, com recursos próprios, parti para a viagem de quase dois meses com moradores do vale do rio Guaporé, descendentes de escravos e indígenas. Ali, eu e minha câmera fomos aceitos de volta à casa.

SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO

Um dos nomes mais celebrados e relevantes das artes visuais do país, Tunga morreu nesta segunda, aos 64. Ele sofria de câncer e estava internado no hospital Samaritano, no Rio, havia três semanas. Seu corpo será enterrado no cemitério São João Batista.

Em quase meio século de carreira, Tunga construiu uma obra plástica incontornável na arte contemporânea, mesclando referências sutis à herança construtiva que dominou as vanguardas nacionais a um universo simbólico único.

Seu mundo de tranças de aço e cobre atravessando pentes, ímãs ultrapotentes, caveiras, esqueletos, sereias, pérolas e sementes foi ao longo dos anos chamado de surrealista, delírios orquestrados como parte de uma mesma sinfonia.

Nascido em Pernambuco e radicado no Rio desde os anos 1970, Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão era filho de um poeta —Gerardo Mello Mourão. jornalista morto aos 90, em 2007, que foi correspondente da Folha em Pequim no início dos anos 1980.

Desde seus primeiros desenhos, Tunga dizia que suas obras partiam de reflexões a meio caminho entre versos e teorias filosóficas e científicas, “nunca demonstráveis nem refutáveis”, ele frisava.

No campo da escultura, maior parte de sua obra que surgiu sempre aliada à performance, usava materiais como cobre, aço e ímãs em construções que lembram o corpo humano, tecidos, pele, cartilagens e esqueletos, revestindo de dimensão carnal tudo que parece surgir como algo de natureza robusta, industrial.

É nesse sentido, falando em “construção rigorosa do imaginário”, que Tunga juntou duas pontas irreconciliáveis do espectro da arte contemporânea —o minimalismo obcecado pela força bruta da matéria, de Richard Serra a José Resende, e a sensualidade sanguínea de obras sobre o desejo, lembrando a dor dos corpos incomuns de Louise Bourgeois.

Esse erotismo, enquanto forma de manifestação do instinto e do desejo, parece guiar grande parte de suas pesquisas estéticas. Em um filme pornográfico que realizou, cristais e pedras surgem como transmutação de fluidos corporais, saliva, urina e fezes —o artista apontava ali uma espécie de alquimia latente na própria existência, de corpos em transformação.


DÂNDI TROPICAL

Sempre vestindo ternos de cores extravagantes, Tunga era um dândi tropical, lembrando às vezes Flávio de Carvalho, um artista de rigor absoluto em sua obra plástica que sabia ao mesmo tempo desafiar a atmosfera espessa que pesa sobre o mundo da arte.

Numa de suas primeiras séries de desenhos, “Museu da Masturbação Infantil”, dos anos 1970, Tunga já indicava esse caminho dúbio.

É uma dualidade que também transparece em “Ão”, filme que rodou em preto e branco num túnel, nos anos 1980, contrastando luz e escuridão.

Suas tranças de chumbo com laços coloridos criadas na mesma década parecem ter sido o primeiro passo de um arco narrativo que atingiu seu auge nas obras mais recentes, em que peças de argila moldadas à mão se equilibram sobre hastes metálicas.

Tunga morreu num momento de transformação em sua obra. Desde o começo da década de 1980, quando representou o Brasil na Bienal de Veneza, e depois de quatro passagens pela Bienal de São Paulo e mostras no MoMA, em Nova York, na Whitechapel, em Londres, no Jeu de Paume, em Paris, entre outras instituições de peso, ele se firmou como o menos solar e mais soturno dos artistas do país.

O esqueleto que pendurou numa espécie de rede debaixo da pirâmide do Louvre, em Paris, coroava essa descida ao inferno. Seu boneco tétrico se equilibrava tendo como contrapeso outras bolsas cheias de caveiras, uma versão fossilizada de obras que fez ao longo da vida em que frágeis objetos surgem suspensos por redes esgarçadas.

“True Rouge”, de 1997, uma de suas obras mais famosas agora no Instituto Inhotim, é uma dessas peças içadas, com frascos e ampolas de vidro cheias de um líquido vermelho, como se fosse sangue.

Nos últimos anos, depois de cicatrizadas as feridas e tendo sobrado só os ossos, talvez um indício do que ele chamava de um “reencontro com o arcaico”, Tunga foi abrindo mais o traço de seus desenhos e ampliando sua paleta de cores para incluir também tons mais solares, talvez, como dizia, lembrando sua vida à beira do mar.

Sua morte coincide com um momento em que ele afirmava ver “mais mistério na luz do que no escuro, na morte”.

MIGUEL DE ALMEIDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ali por meados dos anos 1980, Tunga apareceu na ampla sala do apartamento de seu pai, em Copacabana. Seus cabelos, lisos e compridos, mais ou menos divididos no meio da cabeça, caíam nos ombros e lhe davam um ar de cherokee digital. Magro, olhos escuros estalados no meio da noite, vestia algo assemelhado a uma bata, de gola careca; falava rápido e num tom baixo: "Então, você é o amigo de que meu pai tanto fala", disse, e me abraçou. Nunca mais deixamos de ser amigos.

Seu pai era o lendário poeta Gerardo Mello Mourão. Naquela época, voltava da China, onde fora correspondente da Folha. Os despachos de Gerardo brilhavam ao lado de textos de Paulo Francis, de Nova York; Claudio Abramo, de Paris e Londres; e Osvaldo Peralva, de Tóquio. Sacou a briga de estrelas? Gerardo logo me adotou e me transformou em seu cicerone na Pauliceia. Minha tarefa era descobrir novos restaurantes japoneses pela cidade, e contar causos.

Casado com Léa, filha do poderoso senador Antônio de Barros Carvalho, Gerardo, nascido no sertão cearense, fora deputado federal, fundador de vários jornais e se transformara por conta de sua obra e militância política em cidadão do mundo. Estabelecera uma imensa rede de amigos poetas e políticos ao redor do planeta. Cultivava também bons adversários. Aquilo tudo me fascinava: tinha segredos de polichinelo de personagens distintos como Michel Deguy, Pablo Neruda e Leonel Brizola.

Por vários anos, o senador Antônio Barros dera abrigo (casa, comida e roupa lavada) ao amigo Alberto da Veiga Guignard. Em agradecimento, o doce artista mineiro tratou de pintar o casarão da família, na rua România, no bairro carioca de Laranjeiras. Tetos, portas e algumas paredes foram cobertas por suas cores amenas e cenas cotidianas. Também registrou as filhas do senador numa tela clássica, as gêmeas Maura e Lea, mãe de Tunga, que vai citar o caso na sua série, hilária, "Xipófogas Capilares", da década de 1980.

Então, embaixo do prosaico apelido de Tunga escondia-se o nome heráldico de Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão. Um disfarce. Tanta política, arte brasileira e funda tradição nordestina, vinda da colônia, mais certa distinção próxima ao rapapé, soavam a ele peso desproporcional diante de seu projeto em construir uma obra desterritorializada, não imbricada com regionalismos ou cepas nacionalistas. De Gerardo herdou um fino humor, sofisticado, ao qual acrescentou um gosto pelo chiste e a construção permanente de irrealidades.

Isso no Brasil? Um país jovem mas talhado pela desigualdade social na falsa sisudez da república de doutores? É demais para essa terra um artista que se recusa a tecer um trabalho que não tenha por base a realidade imediata e azeda. Como ousa?

No DNA estético-ideológico pátrio se encontra o desenho da arte como registro, reprodução e, muitas vezes, acentos regionais. Se fosse assento seria mais útil. Assim o que possui caráter internacionalista, no Brasil, é posto sob suspeição. É pau, é pedra, é o fim do caminho.

Talvez venha daí a maior repercussão da obra de Tunga em terras estrangeiras: nos últimos anos foram várias as mostras dele em cidades europeias e americanas. Ele sempre fez um trabalho pertencente ao mundo, a partir de referências colhidas na especificidade dos materiais, por vezes em suas próprias excentricidades (cabelo, ossos, barro etc.), no lúdico, e solidamente amparado numa visão filosófica da arte. Porque sempre teve uma sede exuberante pela vida.

Aí que está. Nestes últimos tempos, trocando ideias para o nosso documentário, percebi como Tunga construía sua poesia calcado em universos distintos, quase intangíveis, e num diálogo com a natureza primeva. Numa imagem, o osso que sobe em "2001" de Kubrick e sob Wagner se transforma numa espaçonave. De primatas a astronautas, glosando Mlodinow.

Na construção do roteiro do nosso filme, senti como Tunga sacava conceitos oriundos da física, da química, de fenômenos geofísicos, da linguística e da filosofia para alicerçar seu pensamento. A todo esse coquetel adicione-se ainda sua picardia e sobretudo sua elegância ao desprezar os temas pedestres do cotidiano. É só olhar em volta e cotejar como ele fará falta.

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