Casamento segue tradição de primos cruzados
Casamento segue tradição de primos cruzados
Tradicionalmente, os ashaninkas se casam conforme regras fixas para o estabelecimento dos pares, segundo as quais se juntam primos-irmãos predeterminados: um jovem deve se casar com a filha do irmão de sua mãe; uma jovem se casa com o filho do irmão de sua mãe.
Eles são chamados de "primos cruzados" na antropologia. Os ashaninkas dão preferência aos primos pelo lado da mãe.
Esse hábito pode parecer estranho aos brasileiros de origem europeia, para quem casamentos entre primos são mais raros, mas é comum em outras culturas.
O sistema é chamado de iroquês, por ser semelhante ao costume de uma tribo canadense, onde foi observado no século 19.
O princípio prevê que a irmã de sua mãe também é sua mãe. Assim, os filhos dela são seus irmãos (casar com um deles seria incesto também um irmão de seu pai é como se fosse seu pai (seus filhos são como seus irmãos, e casar com eles é um incesto). A esses primos a antropologia denomina "paralelos".
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Esquemas de casamentos entre primos cruzados são frequentes em grupos no Acre, como os yawanawás. Há algumas décadas, porém, o hábito não é seguido com rigor absoluto. Em uma análise de 800 casamentos, publicada em 1970, o antropólogo norte-americano John Bodley constatou que só uma pequena fração seguia o modelo à risca.
Mas, na comunidade visitada pela Folha, continua sendo o modelo predominante.
Enison, 28, que se casou com Iniriya (sua prima cruzada), conforme a norma tradicional, me diz que não há falta de jovens para realizar as uniões conforme a regra, mas têm ocorrido vários casamentos com pessoas de fora da comunidade.
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A família que me hospedou em Apiwtxa era formada por um ashaninka, Wewito, e sua mulher, Auzelina, oriunda de outra etnia do Acre, os yawanawás. Eles se conheceram estudando para serem professores, na capital do estado, Rio Branco.
"Quando nos formamos, ele falou que ia me buscar, nem acreditei. Mas depois de uns meses ele foi, e eu vim morar com ele", conta Auzelina, que desde então adotou roupas e pinturas de rosto típicas das mulheres ashaninkas.
O irmão mais velho de Wewito, Francisco, também se casou com uma yawanawá, Eliane, mas ela mantém no rosto as pinturas típicas de seu povo de origem.
Wewito e Francisco são filhos do líder da comunidade, Antônio, 72, que ainda jovem casou com uma mulher branca, cujo pai era seringueiro na região. Seu nome é um retrato do preconceito contra os índios. Quando ele era pequeno, o registro de nascimento era feito na igreja -a certidão de batismo. Os ashaninkas eram chamados de campas, e o costume era pôr o nome da tribo como sobrenome. "O padre se recusou a registrá-lo com o nome de índio, que seria Piyãko Campa. Ele foi batizado como Antônio Campos," conta Francisca, sua mulher. Ela aprendeu a língua indígena e adotou a cultura tradicional, mas nunca usou roupas ou pinturas corporais dos índios.
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Mais tarde, Antônio adotou seu prenome indígena, Piyãko, como sobrenome, que hoje identifica sua família: irmãos, filhos e sobrinhos, em um clã de cerca de 300 pessoas. Ele e Francisca, "Dona Pity", como é chamada, tiveram sete filhos e criaram mais sete, formando uma grande comunidade de parentes, para os quais Antônio é uma espécie de pinkatsari, líder ou "homem poderoso".
Descendentes de uma mulher que fala português e de um índio, os filhos de Pity e Antônio dominaram as duas línguas e a cultura dos dois povos, o que ajudou sua inserção nos debates que viriam a marcar o Brasil dos anos 1980 e 1990, a Constituinte e a redemocratização.
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"Meu avô Samuel disse à minha mãe: 'Você não está casando só com meu filho, mas com o povo ashaninka'. E ela nos deu a facilidade da língua, que nos ajudou muito na luta pelos direitos. Na época, nós éramos chamados na região de 'os caboclos da Dona Pity'", conta Francisco.
Para ele, a missão de sua geração, que hoje beira os 50 anos, é manter os jovens ashaninkas de prontidão para enfrentar desafios que têm pela frente: a pressão de madeireiras e do tráfico de drogas e a ausência dos órgãos do Estado que deveriam se dedicar aos povos indígenas.
Colaborou Eliane Fernandes Ferreira