Sebastião Salgado na Amazônia - Ianomâmis

<b>Ianomâmis</b> Aventureiros do ouro e seus rastros nos rios e na selva põem em risco o maior grupo indígena de pouco contato com os brancos, que há mil anos vive em seu shangri-lá entre picos, vales e cachoeiras, no extremo norte do Brasil

Garimpeiros clandestinos ameaçam paraíso ianomâmi

Garimpeiros clandestinos ameaçam paraíso ianomâmi

O paraíso e o inferno se revelam diante de quem percorre o longo caminho até as comunidades na Terra Indígena Yanomami, no extremo norte do país. Na fronteira do Brasil com a Venezuela, nas mais altas serras do território brasileiro, reside há cerca de mil anos o maior grupo indígena de pouco contato do planeta, hoje com 35 mil pessoas.

A distância entre a área habitada pelos índios e a capital de Roraima, Boa Vista, a cidade grande mais próxima, é marcada por uma floresta alta que se estende pelos vales entre montanhas e tepuis (formações antigas parecidas com chapadas). Rios descem das terras altas em corredeiras, com muitas cachoeiras.

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O barco ou o avião se torna um ponto miúdo entre grandes montanhas como numa espécie de shangri-lá em que a neve do Himalaia tivesse sido pintada de verde. A paisagem é impressionante até para exploradores experientes como o alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), que morreu no Brasil em uma das expedições à região. Seus relatos inspiraram Mário de Andrade, que se baseou em um mito local da formação do mundo para situar ali, às margens do rio Uraricoera, o nascimento de Macunaíma, seu herói sem nenhum caráter.

Na mesma jornada, porém, o viajante que se aproxima das comunidades ianomâmis e ye'kwanas habitantes da área se defronta com o inferno encarnado em grandes feridas abertas na selva por garimpeiros. A destruição é imensa. Mesmo as áreas que foram abandonadas depois da exploração permanecem sem cobertura, estéreis como ilhas de deserto no meio da floresta. O garimpo acontece nos vales, nas beiras de rio ou nas planícies de aluvião.

Nos últimos três anos, empresas de Roraima exportaram 770 quilos de ouro para Índia e Emirados Árabes, segundo registros oficiais. Esse ouro foi produzido ilegalmente: não existe uma só mina registrada no estado. Todo o metal é explorado em garimpos clandestinos dentro da Terra Indígena Yanomami.

Uma quantidade maior, 1.200 quilos, foi comercializada em contrabando, segundo a Polícia Federal.

No último dia 6, em operação de combate à mineração criminosa denominada Hespérides, a PF prendeu em Boa Vista 18 pessoas envolvidas em contrabando de ouro e apreendeu com elas R$ 1,5 milhão em espécie, mais de cem quilos de ouro, 70 quilos de prata e 22 carros de luxo.

Os registros da exportação de ouro produzido em Roraima nos controles do Ministério da Economia começaram em 2017. Há várias razões possíveis para que as empresas locais tenham passado a documentar a venda de um produto ilegal. A investigação policial aponta que, como os órgãos públicos brasileiros não exigem atestados de origem, o registro "esquenta" o ouro, que então é exportado por quase o dobro do preço no mercado informal.

Habitantes do alto das montanhas, protegidos pelo acesso difícil às cordilheiras, os índios ianomâmis ficaram preservados do assédio dos colonizadores espanhóis, de um lado, e dos portugueses, do outro, por todo o período colonial e por mais um século após as independências de Venezuela e Brasil.

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Ao longo dos séculos 19 e 20, os indígenas começaram a descer dos cumes e ocupar os vales. Os primeiros encontros com brancos documentados ocorreram apenas no final do século 19 e foram pouco frequentes até meados do século passado.

Assim, os ianomâmis puderam chegar à segunda metade do século 20 como um grupo numeroso e quase sem contato com a sociedade não indígena.

Essa vantagem se tornou desvantagem quando o intercâmbio se intensificou entre os anos 1950 e 1970, depois que a ditadura militar decidiu passar estradas por aquelas florestas quase virgens.

Despreparados para resistir às enfermidades dos brancos, os índios morriam como moscas ao contrair gripe, malária, sarampo e doenças sexualmente transmissíveis.

Nos anos 1980, cerca de 15% da população ianomâmi no Brasil morreu de doenças provocadas pela invasão de 40 mil garimpeiros (cinco vezes mais que a população indígena instalada na área invadida).

Quando milhares de mineradores ilegais foram expulsos da área pelo governo federal, em 1990 e 1991 (leia mais ao lado), os poucos que ficaram se tornaram mais agressivos.

Em 1993, uma comunidade ianomâmi foi vítima do único caso classificado como genocídio em toda a história do Brasil, que resultou na condenação dos acusados a 20 anos de prisão. Passado um quarto de século, o único vivo entre os condenados pela chacina atua novamente como empresário da mineração ilegal, na nova invasão que voltou a degradar a saúde dessa etnia.

Céu e inferno marcaram o ano do líder ianomâmi Davi Kopenawa. Já em janeiro ele se preocupava com as ameaças feitas pelo presidente Jair Bolsonaro e as medidas tomadas logo após a sua posse, como a retirada da Funai da alçada do Ministério da Justiça e a discussão sobre a municipalização da Secretaria de Saúde Indígena.

Mas ao final do período, Kopenawa ganhou o prêmio Right Livelihood, um reconhecimento internacional por seu trabalho de dedicação à defesa do meio ambiente.

Kopenawa acompanhou Sebastião Salgado à comunidade ianomâmi de Piaú, que fica no estado do Amazonas, no sudoeste da terra indígena.

A própria expedição do fotógrafo foi marcada por momentos de epifania e agonia: a festa que estava sendo documentada, com índios de outras comunidades, transmutou-se em choro coletivo quando chegou a notícia de que um membro de outra aldeia fora morto em uma emboscada.

Após a chegada do corpo aconteceu um ritual fúnebre em que se promoveu o desaparecimento total do morto, de forma a atender a tradição ianomâmi de não guardar qualquer rastro da pessoa.

Depois de chorar a pessoa morta, de queimar seu corpo e pilar seus ossos para que virem pó, os índios enterram as cinzas por um ano ou mais. Passado esse período, uma festa será feita, durante a qual as cinzas serão distribuídas como parte de um banquete, para serem consumidas por todos os presentes. E a vida segue.

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