Mina de ouro parecia formigueiro caótico, mas era um sistema bem organizado
Mina de ouro parecia formigueiro caótico, mas era um sistema bem organizado
08.jul.2019 - 2h00
A impressão que se tem ao olhar as fotos de Serra Pelada é de um formigueiro de gente em uma confusão absoluta. Mas no caos aparente havia uma ordem minuciosa.
"Logo aprendi que aquilo que à primeira vista parecia um movimento desordenado era, na verdade, um sistema muito sofisticado, no qual cada um dos mais de 50 mil trabalhadores sabia que papel havia escolhido desempenhar", explica o fotógrafo Sebastião Salgado.
Para começar, é possível observar que as paredes da cratera não eram completamente verticais nem lisas. Elas mais pareciam uma composição geométrica, semelhante às gravuras do artista holandês Maurits Escher (1898-1972), com escadas subindo e descendo de pequenos espaços de terra de 2 m x 3 m, do tamanho de uma vaga de automóvel, que se projetavam como se estivessem pendurados na parede.
Esses lotes, chamados de "barrancos", pertenciam aos pioneiros, os garimpeiros que chegaram nas primeiras semanas logo após a descoberta do ouro na região.
Eles formaram uma cooperativa, lotearam a mina e sortearam em 1979 e 1980 quem ficaria com qual dos mais de 200 "barrancos".
Os donos dos lotes contratavam cinco tipos de trabalhadores. O primeiro era o "meia praça", que definia quem iria escavar um certo local e que recebia 5% sobre o ouro encontrado no lote. Sua roupa estava sempre mais limpa que a dos outros, e ele não portava ferramentas.
Todos os demais eram assalariados: o "cavador" era quem rompia o solo com picaretas; o "formiga" levava para fora da cratera os sacos de terra que pesavam cerca de 40 quilos, subindo as escadas apelidadas de "adeus, mamãe".
Esses trabalhadores eram monitorados pelo "apontador", que contava quantos sacos subiam e que podia ser visto, com a camisa mais limpa, segurando um caderno de anotações.
Fora da cratera, os sacos eram entregues ao "apurador", que lavava a terra, usando a bateia (bandeja redonda e funda), e depois fazia a separação do ouro usando mercúrio. Por último, era feita a queima do mercúrio, para purificar o metal.
O ouro encontrado era fundido em barras ou pepitas e vendido ao posto da Caixa Econômica Federal a um preço 15% menor do que o praticado no mercado internacional.
Quando um barranco produzia ouro, o garimpeiro-empresário ia bem, pagava as contas de seus empregados e embolsava o lucro. Quando passava algum tempo sem conseguir extrair, acabava por tomar empréstimos ou vender participação em seu barranco.
Quem fazia esse papel de banqueiro eram os pioneiros bem-sucedidos ou gente de fora que financiava os donos de lotes em troca de participações nos resultados do trabalho.
Muitos garimpeiros que trabalharam em Serra Pelada repetem ainda hoje uma lenda segundo a qual há, sob a antiga mina, uma laje de 50 toneladas de ouro puro. É um mito.
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Segundo Felipe Tavares, geólogo que estudou a serra de Carajás em seu doutorado, ali existe mesmo um depósito de ouro, mas está disperso em pequenos traços de rocha.
"Tem muito minério, mas não há um modelo de exploração que permita extraí-lo de forma economicamente viável", diz Tavares, que é chefe da divisão de geologia econômica da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais.
Segundo pesquisadores, há mesmo 50 toneladas de ouro na rocha profunda de Serra Pelada. Mas seria preciso triturar toneladas de pedras e submetê-las a processos químicos para obter alguns gramas do metal.
Tavares conta que a Colossus, uma empresa canadense, investiu muito dinheiro em túneis para tentar acessar a rocha sob o lago, e percebeu que precisaria de muito mais para conseguir voltar a extrair algum ouro de Serra Pelada. A empresa acabou falindo em 2014.
O que explica a existência de reservas de ouro tão ricas em alguns lugares do Brasil, como o Pará, é a antiguidade do terreno. "Toda a serra de Carajás, que inclui Serra Pelada, foi formada no período arqueano, entre 2,7 bilhões e 3 bilhões de anos atrás", diz o geólogo.
Nesses lugares, movimentos geológicos podem fazer com que um veio mais antigo aflore e fique exposto. Em Serra Pelada, o ouro aflorou há "apenas" 40 milhões de anos.
"Já no final dos anos 1960, os estudiosos sabiam que ali seria uma região rica porque foi encontrada a grande reserva de ferro de Carajás, em 1967. E onde há muito ferro, tende a ter outros minérios também, como ouro", diz o geólogo.
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Embora Serra Pelada tenha se tornado um símbolo, ela não é a maior mina do Brasil. "Na Amazônia, a reserva de Salobo, em Marabá, que vem sendo explorada pela Vale, é muito maior do que Serra Pelada. Ali, o ouro é secundário, o cobre é o principal", afirma.
Se em Serra Pelada, como em Minas Gerais, o ouro aparece em depósitos subterrâneos profundos, em outros lugares da Amazônia ele está quase na superfície, como na areia das margens dos rios que atravessam a terra dos yanomamis, em Roraima, ou dos mundurukus, no Pará, na bacia do rio Tapajós.
É dessas áreas demarcadas que sai hoje boa parte da produção de ouro do país, extraído de maneira ilegal.
Brasil foi o país que mais produziu ouro no mundo entre 1750 e 1850
O Brasil há muito deixou a posição de maior produtor mundial, que ocupou entre 1750 e 1850.
No fim do período colonial, com produção de 16 toneladas ao ano, o país extraiu o ouro que financiaria a Revolução Industrial, na Inglaterra.
Com o esgotamento do garimpo de Minas Gerais, perdeu relevância no mercado internacional. A produção nacional só voltaria a crescer depois da descoberta de Serra Pelada, em 1979: em 1980, foram extraídas 40 toneladas; em 1985, 62 toneladas (4,1% do total mundial).
A queda da produção em Serra Pelada, na segunda metade dos anos 1980, foi compensada pelo garimpo na área yanomami, o que elevou o total para 80 toneladas em 1990.
O fechamento de Serra Pelada e a expulsão dos garimpeiros ilegais de Roraima, a partir de 1992, derrubaram o volume produzido, que chegou a 38 toneladas em 2005.
Com a crise de 2008, o preço do ouro subiu e gerou um novo ciclo de garimpo em vários pontos da Amazônia, como nas áreas dos yanomamis e dos mundurukus.
Essa extração ilegal se refletiu na produção, que foi para 58 toneladas em 2010 e 70 toneladas em 2012, último dado do Instituto Brasileiro de Mineração. Segundo o Conselho Mundial do Ouro, em 2018 foram produzidas 97 toneladas, mais que todo o período de Serra Pelada.
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Mulher se disfarçou de homem para trabalhar em Serra Pelada
Marina Cantão é miúda, morena e franzina. No pescoço, leva pendurada uma pequena pepita de ouro. É a memória dos tempos de garimpo, que há muito ficaram para trás.
Seu restaurante em Boa Vista, capital de Roraima, o Marina Meu Caso, é apontado na internet como um dos melhores da cidade. Serve quase um só prato e uma bebida: peixe com baião de dois e cerveja.
O que falta em variedade gastronômica ela preenche com o principal tempero da casa: suas histórias.
Os casos preferidos são os que ela vivenciou em Serra Pelada. Como uma mulher pequenina conseguiu driblar a proibição imposta pelo poderoso major Curió, apelido de Sebastião Rodrigues de Moura, militar que, ao assumir o controle do garimpo no início de 1980, proibiu mulheres na área?
Sua resposta é semelhante à de outras mulheres que furaram o cerco: fazendo-se passar por homem.
Nascida na Ilha de Marajó (Pará), Marina chegou a Serra Pelada para trabalhar em um restaurante. Como milhares de brasileiros, sonhava garimpar e ficar rica. Um dia, morreu um travesti de Goiás, que também trabalhava em um restaurante da região. Marina falsificou a identidade do morto e se pôs a trabalhar no garimpo disfarçada de homem.
Logo constatou o que as histórias das corridas do ouro revelam: pouquíssimos ficam ricos e muitos não encontram nada. Quem se dá bem são os fornecedores de serviços essenciais aos trabalhadores.
Marina abriu um restaurante na violenta Vila Trinta, formada a 30 quilômetros do garimpo, e mantinha sempre à mão o revólver que lhe rendeu o apelido de "Goiana do 38" (ela seguia usando a identidade do morto, passando-se por travesti).
Quando o ouro de Serra Pelada começou a secar, em 1987, ela partiu em busca do novo Eldorado: as florestas de Roraima.
Com algum dinheiro, voltou ao garimpo, desta vez como empresária, operando na área chamada Paapiú. Controlava uma balsa com vários empregados e equipamentos necessários para o trabalho na margem de rios -bombas para jatear as barrancas, motor para dragar a lama e esteiras para apurar o ouro.
Os ventos viraram quando Collor reconheceu a Terra Indígena Yanomami e expulsou os garimpeiros, em 1992. Marina foi então para a Venezuela -ela diz que não se deu conta de que estava além da fronteira.
Em seguida à ação do governo brasileiro, o país vizinho realizou uma série de ações repressivas para impedir a ocupação de suas terras por garimpeiros ilegais. A aventureira perdeu sua balsa em uma blitz e ficou perambulando vários dias pela floresta, até encontrar um outro grupo de garimpeiros, com quem chegou a Boa Vista.
Ao se instalar na capital de Roraima, decidiu com o marido, Boboco, parar com as aventuras e voltar a se dedicar à culinária.
Seu primeiro restaurante funcionou em um barco no porto da cidade. Depois, instalou-o em um terreno às margens do rio Branco, onde está até hoje.