Sebastião Salgado na Amazônia - Suruwaha

<b>Suruwaha</b> Expedição do fotógrafo brasileiro documenta os índios suruwahas, que vivem sem cacique ou qualquer outra hierarquia em uma pequena comunidade isolada no sul do Amazonas, onde produzem toda sua comida, cultivam o vigor físico e preservam tradições &ndash;como a de usar poções venenosas para caçar, pescar e morrer jovem

Com bandagens usadas para evitar o estiramento de músculos durante esforço, Atiaxu, Niaxixibu, Giani, outro jovem guerreiro e Baxihywy

Eles tomam seu veneno no rio e correm para morrer em casa

Eles tomam seu veneno no rio e correm para morrer em casa

Uma das marcas culturais mais impactantes dos índios suruwahas é o suicídio. Pessoas saudáveis e fortes provocam a própria morte ingerindo timbó, o veneno que outros povos só usam para capturar grandes quantidades de peixe. Ocorrem dois a três casos por ano, em média, tanto de homens como de mulheres, a maioria entre jovens de 14 a 28 anos. A prática reduz a taxa de crescimento do grupo a 1,9% ao ano, apesar da alta taxa de natalidade (4% ao ano). O autoenvenenamento é a causa de 60% dos óbitos.

Quando os índios percebem que um indivíduo tomou a poção, tentam fazê-lo vomitar, mas, frequentemente, a salvação já não é possível. O líquido tóxico é ingerido na floresta, longe dos olhos da comunidade. O índio se envenena e espera antes de voltar para casa -correndo, já que tem que morrer na maloca.

"Se a pessoa toma veneno, vai para casa e morre no caminho, ela não vai para a casa dos valentes no outro mundo, o céu que eles querem atingir. Então, tem que ter um cálculo preciso de quando tomar o timbó e quando ir para casa, para não morrer antes nem chegar quando ainda dá para evitar a morte pelo vômito", comenta Sebastião Salgado.

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Embora frequente, a perda de um membro da comunidade é sofrida, provoca nos outros a sensação de ter falhado no salvamento. Ainda mais quando se trata de pessoa influente, um caçador de sucesso.

"Não aconteceu nenhum caso enquanto eu estava lá. Eu deveria ter ido no ano anterior, mas houve o suicídio de alguém muito querido. Como eles ficam muito chateados nessas situações, não seria boa época para irmos", conta o fotógrafo.

O suicídio pode ocorrer porque a pessoa está deprimida, por uma morte em família, porque algo deu errado. A pessoa, triste ou envergonhada em consequência de um desentendimento, se mata. "Mas pode acontecer também porque está muito feliz, como se quisesse congelar esse sentimento", conta Salgado.

O suicídio está imbricado na cultura dos suruwahas desde antes da fase mais recente de contato, nos anos 1980. Os próprios indígenas descrevem o momento em que eles passaram a adotar a prática do autoenvenenamento, segundo a antropóloga Adriana Huber Azevedo.

"Eles contam que a primeira pessoa que tomou o timbó foi um homem chamado Dawari, bisavô de uma mulher da comunidade atual. Isso aconteceu em torno de 1930, quando já estavam todos vivendo na área de isolamento."

Segundo a estudiosa, a técnica de ingestão do timbó já era conhecida pelos suruwahas desde o século 19, quando eles tinham contato intenso com outro grupo da região, os katukinas. Mas eles só começaram a praticar o ato quando remanescentes dos diferentes grupos ("dawa") passaram a viver juntos, no século 20.

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Antes da fusão, os conflitos eram resolvidos no universo simbólico, pela intervenção de xamãs. Eles atribuíam os problemas de uma pessoa a feitiços feitos por alguém de outro grupo. Uma pessoa que se achava vítima de feitiçaria apelaria a seu pajé para devolver o ataque. Vivendo juntos em uma mesma maloca, esses atritos passaram a ser represados, o xamanismo perdeu a função de mediação, as relações interpessoais se tornaram diretas.

A partir desse momento, acredita a antropóloga, as pessoas passaram a manifestar a reação a conflitos pela ingestão de timbó. Sua interpretação é que o objetivo não é a morte, mas a resolução do conflito: "Cerca de 80% dos casos são resolvidos pela intervenção da comunidade, evitando a morte", explica.

Os suruwahas são conhecidos pela habilidade de manipular poções. São apelidados "índios do veneno", o que desperta temor em outros grupos e mesmo entre indigenistas. As principais poções que usam na pesca e na caça são o timbó e o curare.

O timbó é usado por diversas etnias para a pesca na época da seca, quando os rios baixam e ficam empoçados. Os suruwahas o extraem da raiz de uma planta (Lonchocarpus nicou) que produz um líquido leitoso. Jogado na água, ele atordoa os peixes deixando-os paralisados, na superfície. O efeito desaparece em minutos e não afeta o alimento.

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O curare, conhecido como "veneno de flecha", é usado para caça, na ponta de setas grandes, disparadas com arco, ou pequenas, sopradas com zarabatana. É produzido a partir de cipós que precisam ser cozidos. O efeito dessa poção também é paralisante e o animal atingido perde a capacidade de fugir.

Os suruwahas caçam macacos e aves com zarabatana e outros animais, maiores, com arco.

No princípio, Aji Marihi (deus ou herói criador) criou um povo de homens poderosos, chamados saramadys. São os ancestrais dos suruwahas, segundo sua mitologia. Eles aprenderam todas as habilidades necessárias para a vida: caçar, pescar, construir casas, produzir venenos, fazer a roça, plantar. As mulheres aprenderam como fazer a cerâmica, as roupas e tudo. Nessa época, todos os seres vivos eram humanos. Ao longo do tempo, alguns homens foram se transformando em outros bichos ou plantas, e assim se formaram todas as coisas.

Todo mundo tem uma alma, que habita o coração. Dali, ela comanda a memória e as emoções. O homem pode mentir, mas sua alma é sincera. Quando um suruwaha morre, conta a mitologia, a alma abandona seu corpo e vai para o igarapé Pretão, onde eles moram. Ali, no fundo escuro das águas, espera a época das chuvas para seguir viagem rumo aos grandes rios, até um momento em que consegue pular para o céu.

Ao saltar para o céu, cada alma se projeta para um dos três céus em que se divide o mundo segundo a cosmogonia dos suruwahas: as casas do Sol e da Lua, que se localizam em um plano superior; e o arco-íris, em um espaço intermediário entre os dois. Em cada um desses planos os mortos se concentram conforme seu destino específico. Embora não explique os suicídios, é possível relacionar a prática a essa crença.

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No caminho da cobra, que coincide com o traçado do arco-íris, ficam os mortos por picadas de serpentes. O arco-íris, que outros povos cultuam como linda expressão da natureza, é sinal de má sorte para os suruwahas: quando aparece, alguém vai ser mordido por uma cobra.

No caminho do Sol vão aqueles que morrem na velhice, por acidentes ou doenças, todas as pessoas que não foram picadas por cobra e nem provocaram a própria morte. O destino desses índios que morrem velhos é penoso, as almas vagam sem sossego até achar uma comida celeste que as faça renascer e conquistar a juventude eterna.

Por fim, para o "caminho do timbó", que corresponde à trajetória da Lua, vão os que se autoenvenenam.

O melhor céu, portanto, e dos que morrem jovens e fortes. Eles vivem a verdadeira existência pregada nos cantos e mitos: um mundo embaixo das águas, onde as almas se tornam peixes (como aqueles que os suruwahas costumam pescar, atordoados pelo timbó). Esse é seu destino final. De certa forma, o lugar que concentra os suicidas é o mais parecido com o paraíso após a morte da cosmogonia cristã.

O mito suruwaha conta que o herói Aji Marihi era ao mesmo tempo homem e onça, tinha poderes de um grande xamã, capaz de transformar todas as coisas. Para criar a humanidade, esfregava entre as mãos as sementes de diversas plantas e as jogava no chão. Todas se transformavam em gente, índios e não índios.

Os primeiros homens a sair das mãos do criador foram os jaras, os civilizados ou não índios, feitos com a semente da sorveira (uma árvore alta, comum na região). Depois, com sementes de breu, foram feitos os samaradys, ancestrais dos suruwahas; e com envira, seus inimigos míticos, os jomas. E assim, um a um, foram sendo criados os povos.

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Grupo ganhou fama ao virar alvo de campanha contra infanticídio

Apesar do isolamento, os suruwahas ganharam exposição pública nos últimos anos devido a outro tabu: o infanticídio em grupos indígenas.

Usando principalmente a internet, a entidade evangélica Jocum (Jovens com uma Missão) incluiu o grupo entre os alvos de uma campanha contra morte de recém-nascidos.

Por considerar que a Jocum fazia proselitismo que prejudicava os índios, o Ministério Público Federal exigiu que a Funai descredenciasse a entidade, proibindo que ela trabalhasse com os suruwahas, a partir de 2004.

Com apoio da bancada evangélica, o deputado Henrique Afonso (PT-AC) apresentou, em 2007, um projeto de lei que obriga o poder público (Funai ou Sesai) a intervir em caso de risco, para evitar o infanticídio em famílias indígenas.

Aprovado na Câmara em 2015, o texto está parado na Comissão de Direitos Humanos do Senado, onde enfrenta reação contrária de entidades de direitos humanos e do presidente da comissão, Paulo Paim (RS), do mesmo PT.

"O infanticídio tem adquirido proporções insignificantes entre os suruwaha. Eles têm sido vítimas de uma campanha de criminalização e 'animalização'", diz o antropólogo Miguel Aparicio Suárez, autor da dissertação de mestrado "Presas do Timbó" (Ufam, 2014).

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