Sebastião Salgado na Amazônia - Zo'é

<b>Zo'é</b> Etnia que viveu décadas quase sem contato com brancos se esconde na floresta próxima às Guianas por causa do coronavírus, que já infectou mais de 28 mil indígenas no país, segundo dados não oficiais; na mais longa expedição de seu projeto 'Amazônia', o fotógrafo Sebastião Salgado passou dois meses acompanhando o dia a dia desta comunidade que habita uma área montanhosa na região do Cuminapanema, ao norte do Pará

Indígenas se refugiaram em região de difícil acesso com montanhas e muralha verde

Indígenas se refugiaram em região de difícil acesso com montanhas e muralha verde

As florestas ao norte do rio Amazonas estão mais preservadas do que aquelas sob risco de devastação, localizadas ao sul. Ali, no norte do Estado do Pará, o relevo é composto como uma subida desde as margens do grande rio, que segue pela planície onde um dia foi o fundo do mar. O alto da rampa é a cadeia de montanhas que separa o Brasil da Venezuela e das Guianas.

Para escalar esse território, é preciso muito esforço, remar contra a força de rios de corredeiras ou embrenhar-se por densas florestas que formam uma muralha verde. A distância de quase 290 km, percorrida em pouco mais de uma hora por monomotor, leva 25 dias de barco ou a pé.

Foi ali, entre o rios Cuminapanema e Erepecuru (ou Peru do Oeste), que, por cerca de 60 anos ou mais, os índios que viriam a ser chamados de Zo'é se esconderam de grandes fluxos de pessoas. Embora não tenha sido um tempo de absoluto isolamento, mantiveram pouco contato com quilombolas ou outros grupos indígenas da região entre os anos 1920 e os anos 1980, quando se encontraram com missionários evangélicos.

Os Zo'é contam histórias de conflitos com outros grupos étnicos da região, que causaram mortes e o seu relativo isolamento ao longo do século 20. "Eles falam de ataques de índios. Do oeste, vinham os Apan (que eles descrevem como canibais do leste, vinha um povo que eles chamam de Tapy'yj (quebradores de cabeças, porque provavelmente atacavam com bordunas)", conta a antropóloga Dominique Gallois, que estuda índios da região desde os anos 1980.

Foram os religiosos da Missão Novas Tribos do Brasil que batizaram de Zo'é os indígenas até então conhecidos como "isolados do Cuminapanema", quando eram observados por pilotos de aviões a serviço da Funai (Fundação Nacional do Índio) que sobrevoavam a região. "Eles provavelmente tentavam dizer que eram 'gente mesmo', que é o significado da expressão Jo'é, aportuguesada pelos missionários", explica a linguista Ana Suelly Cabral, maior especialista na língua Zo'é.

A ideia do absoluto isolamento dessa etnia é quebrada por sinais de alguns contatos com outros povos, ainda que esporádicos. Nos anos 1980, os indígenas tinham objetos de metal que, provavelmente, obtiveram de quilombolas; e sua língua tupi contém palavras de idiomas de grupos vizinhos. Eles também sabiam os nomes que os brancos davam aos rios.

Os Zo'é são índios tupi, como os guaranis do Mato Grosso do Sul, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e da Bahia. Como os tupinambás e os tupiniquins que conviveram com os primeiros portugueses; como os Kamaiurá do Xingu. Ou outros tantos descendentes dos primeiros tupi que cerca de 6 mil anos atrás deixaram a região onde fica Rondônia.

Salgado passou dois meses 'no paraíso' em sua mais longa expedição "Fiz uma viagem ao paraíso." Assim Sebastião Salgado descreve a mais longa expedição a um grupo indígena brasileiro de todas as que realizou como parte dos projetos "Gênesis" e "Amazônia".

O fotógrafo brasileiro radicado em Paris passou dois meses com os Zo'é e visitou todas as aldeias onde os cerca de 320 habitantes viviam naquele período. Acompanhou o dia a dia de famílias, o cuidado na roça, as caçadas e participou de acampamentos de pesca nos rios Cuminapanema e Erepecuru.

No Cuminapanema, teve a sensação de uma descoberta ao acampar numa pequena ilha do rio. "Seguramente, somos os primeiros brancos a parar aqui", brincou com a tradutora, Ana Suelly. "Foram viagens maravilhosas", encanta-se.

Os Zo'é são índios de terra firme, não habituados à pesca e a nadar em águas caudalosas. Mesmo assim, Salgado se viu, em certo momento, numa canoa com vários deles e perguntou à linguista: "Eles sabem nadar?". "Não", ela respondeu.

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Os povos indígenas brasileiros se dividem entre habitantes de margens de rios, acostumados a nadar e a navegar, e os de terras altas, que pescam com a água na altura da canela.

Depois do convívio maior com os não índios, os Zo'é passaram a usar canoas e se viram bem navegando.

"Tinha um amigo que me acompanhou durante toda a viagem, o Ipó. Ele vivia me alertando para os riscos de encontrar onças. Semanas antes de eu chegar, uma onça havia matado um homem. Eram duas pessoas, e uma fugiu. Depois, eles se organizaram para caçar a onça. Por isso, quando eu ia de uma aldeia para outra, várias pessoas me acompanhavam", lembra Salgado.

A região também tem outro perigo, as cobras. "O Ipó nunca me deixou ir sozinho na frente. Quando via uma cobra, acertava uma flecha precisamente a uns quatro dedos da cabeça, com pontaria impressionante."

Outra peculiaridade do relacionamento dos Zo'é com os animais impressionou Salgado. "Eles criam queixadas, muito agressivos, como animais de estimação. Vi um homem que tinha um desses porcos selvagens junto à entrada de sua casa, como um cão de guarda." Os indígenas não têm o hábito dos brancos de ter a companhia de cães. "Um dia, quando ele foi me acompanhar na viagem para outra aldeia, veio com a queixada amarrada a uma coleira."

Normalmente, eles adotam os filhotes de animais caçados, em retribuição aos pais que lhes serviram de alimento. Até as temidas onças podem ter filhotes criados pelos Zo'é.

Outro sinal de respeito à presa ocorre quando os caçadores voltam para casa. Ao trazerem as queixadas, que chamam de porcão, eles colocam em sua boca uma castanha. E o caçador diz assim em seu ouvido: "Vá, porcão, estou dando esse alimento a você para que vocês voltem na próxima lua".

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Também os urubus-rei são tratados como família. "São índios contadores de histórias e muito curiosos de ouvi-las também. À noite, conversam muito trocando experiências, absorvendo a memória dos outros. Eles adoram o gavião e o urubu-rei, do qual tiram as penas para os lindos arranjos de cabeça das mulheres. Por isso, adoravam ouvir histórias desses pássaros, que eu poderia repetir todas as noites."

Outra cena inesquecível para Salgado ocorreu em sua despedida. Quando seu amigo e guia Ipó viu o helicóptero que buscaria o fotógrafo, disse: "É um tukuruhú, um gafanhoto". E explicou: "Os aviões batem no chão ao descer e escorregam. O tukuruhú pousa". Em seguida, os pilotos saíram da aeronave com seus capacetes e óculos imensos. "Ipó assustou-se e me disse: 'Salgado, eles não são humanos, são moscas'."

Foi montado no gafanhoto pilotado por moscas que Salgado deixou o paraíso.

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