Sebastião Salgado na Amazônia - Zo'é

<b>Zo'é</b> Etnia que viveu décadas quase sem contato com brancos se esconde na floresta próxima às Guianas por causa do coronavírus, que já infectou mais de 28 mil indígenas no país, segundo dados não oficiais; na mais longa expedição de seu projeto 'Amazônia', o fotógrafo Sebastião Salgado passou dois meses acompanhando o dia a dia desta comunidade que habita uma área montanhosa na região do Cuminapanema, ao norte do Pará

Os meninos <b class="red">Tam&#361;puá</b> (à esq) e <b class="red">Didéri Tenóm</b> brincam na pedra de uma corredeira, em paisagem comum na região alta da floresta, no <b class="red">Cuminapanema</b>

Missionários levaram gripe

Missionários levaram gripe que matou 20% do grupo

Após várias décadas recolhidos em seus domínios, com poucos encontros com gente de outras etnias, os primeiros contatos mais intensos dos indígenas chamados Zo'é com não índios foram provocados por missionários do capítulo brasileiro da entidade evangélica norte-americana Missão Novas Tribos do Brasil.

Usando como guias índios convertidos da etnia Tiryió, moradores da Terra Indígena Tumucumaque, ao norte da Terra Zo'é, os missionários instalaram um posto em uma área ao sul da região, de onde passaram a atraí-los.

Os contatos iniciados em 1982 se intensificaram ao longo dos anos seguintes até um encontro em 1987. Atraídos por presentes jogados de avião ou deixados em locais estratégicos em seus caminhos, os indígenas foram sendo atraídos e se aproximaram da sede da missão. Era o início de de um relacionamento que duraria anos.

Em 1989, no entanto, os missionários pediram ajuda à Funai (Fundação Nacional do Índio) diante de uma emergência sanitária, como narra o indigenista Sydney Possuelo, que foi enviado para a área pela presidência da entidade.

Os indígenas tinham contraído gripe dos missionários e muitos estavam com pneumonia.

Sem defesa para as doenças dos brancos, morreram, em curto período de tempo, cerca de 20% da população original de cerca de 170 pessoas contatadas em 1987. Em 1991, eles eram apenas 133.

O fotógrafo paraense Rogério Assis integrava a primeira equipe da Funai a chegar ao local. Ele descreve uma cena dantesca: "Era um cenário dramático de epidemia. Os índios todos ferrados, muitos cegos por um tipo de deficiência visual causada pela gripe, pareciam desnutridos."

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Muitos indivíduos tinham contraído uma forma grave de conjuntivite viral e outros, tracoma. "Havia só um médico da Funai tratando as pessoas. Os missionários chamaram a Funai e sumiram", diz Assis.

O indigenista Possuelo afirma que a situação era bem complicada. "Fui, fizemos um diagnóstico e voltei depois com médicos. Os índios falavam tupi, nós tínhamos dois funcionários que falavam línguas tupi diferentes, mas isso rapidamente se resolveu porque logo virou uma coisa lúdica, eles acharam engraçado que a gente conhecesse palavras semelhantes. Ficamos ali e estabelecemos nossa presença."

Os missionários mantiveram o posto, que chamavam "Base Esperança", pelos dois anos seguintes.

Naquele mesmo ano de 1989, o Brasil teve a primeira eleição direta para presidente em que foi eleito Fernando Collor. Durante pouco mais de um ano, a equipe da Funai conviveu com a missão evangélica, até que, em 1991, Collor chamou Possuelo para comandar a entidade indigenista.

Logo ao assumir, o novo dirigente do órgão proibiu a presença de missões religiosas em áreas de índios de recente contato e expulsou a Missão Novas Tribos do Brasil da área indígena Zo'é.

Possuelo tinha proposto, em 1986, uma mudança da política implantada pelo Marechal Rondon, fundador do Serviço de Proteção aos Índios, que previa o contato oficial com índios isolados.

O novo presidente da Funai defendia o que ficou conhecido como "Política do Não Contato", que os índios isolados ou de pouco relacionamento com os "brancos" devem ser mantidos nessa condição, para diminuir o impacto cultural e principalmente das doenças dos não índios. Para ele, o contato da Novas Tribos com os Zo'é era a prova de toda a sua teoria. Ele explica: "A teoria do Rondon, de trazer os índios para o convívio para que pudessem aproveitar a 'civilização', era uma prática ineficiente, mortal para eles. Antes, você chegava lá, fazia o contato e um ano depois você já não encontrava os índios. Eles desapareciam, morriam todos ou alguns fugiam, assustados com as doenças que matavam os outros. Outros eram empurrados por aproveitadores brancos".

As estatísticas de mortes de indígenas brasileiros após os contatos, no século 20, são assombrosas: "Invariavelmente, morriam 30% ou 40% do grupo com doenças de brancos no primeiro ano. Esses eram os casos bem sucedidos. Nos casos mal sucedidos, toda a etnia desaparecia", lembra Possuelo, para quem "contato é igual a desaparecimento!".

O ex-presidente da Funai usa os números de mortos Zo'é logo após o contato para reforçar sua política e justificar o afastamento dos missionários evangélicos da área. "Eu via também uma questão de brasilidade: aquilo é um território do Brasil, os povos indígenas têm usufruto e a terra é da União. O Estado nacional tem que estar presente. Se eu for aos Estados Unidos e disser que vou fazer uma missão de proselitismo em terras indígenas deles, eu não passo da alfândega".

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Segundo o indigenista, nos meses seguintes, quando os funcionários da Funai aprenderam a língua, os índios passaram a narrar as perdas de vidas nos anos anteriores. "Eram doenças do contato: gripe, pneumonia. Eles iam contando os nomes e números de mortes. Foi quando soubemos da verdadeira mortandade que tinha acontecido. Os missionários não tinham relatado nada".

Procurada pela Folha, a Missão Novas Tribos do Brasil não retornou aos pedidos da reportagem.

Evangelizadores chamavam índios de 'arredios do Cupinapanema'

A Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) procurou, desde o início dos anos 1980, estabelecer contato com os Zo'é.

O livro "Esperando a Volta do Criador" (2008), de Onésimo Martins de Castro, um dos responsáveis pelo trabalho com a etnia, descreve a busca e localização dos indígenas que eram chamados de "arredios do Cuminapanema".

O título da obra tenta explicar os motivos pelos quais diferentes denominações cristãs evangélicas se dedicam a contatar etnias que não mantêm relacionamento com a cultura cristã e a sua fé de que Cristo voltará à Terra para a vitória final contra Satanás. Neste dia, dizem, todos os povos do planeta se converteriam ao cristianismo. Ou, nas palavras do autor: "Conforme a revelação no livro do 'Apocalipse' (...) 'Quando o Evangelho for pregado em todo mundo, virá o fim'."

Para o fundamentalismo evangélico, o diabo tenta permanentemente adiar a conversão dos povos isolados.

Por isso, os militantes da Missão Novas Tribos do Brasil, combatem a política do não contato, estabelecida no país durante a gestão de Sydney Possuelo na Funai, a partir de 1991.

O órgão determinou a expulsão da missão da terra indígena Zo'é.

Em uma guinada de 180 graus em relação à política adotada anteriormente, o governo de Jair Bolsonaro nomeou para a direção do departamento de índios isolados da Funai um ex-missionário da Missão Novas Tribos do Brasil, Ricardo Lopes Dias.

Ao assumir, Dias disse que não tem mais vínculos com a organização de evangelização de índios e que foi nomeado por sua formação como antropólogo, com mestrado e doutorado.

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