Descrição de chapéu livros DELTAFOLHA

Mapa mostra como autores clássicos viam o Rio de Janeiro por seus livros

Levantamento indica locais da capital fluminense, que recebe agora a Bienal, citados na literatura brasileira do século 19 ao início do 20

Ilustração: Mariana Froner/Folhapress

SÃO PAULO O Rio de Janeiro sempre habitou o imaginário de escritores brasileiros, não só como pano de fundo, mas como parte viva de suas histórias. Esquinas, ruas e bifurcações cariocas integram tramas incontornáveis da literatura brasileira.

Foi na rua dos Barbonos, hoje rebatizada Evaristo da Veiga, que Camilo e Rita se encontravam em segredo no conto “A Cartomante”, de Machado de Assis. Já em Botafogo residia a família burguesa de Francisco Teodoro e Camila, do romance “A Falência”, de Júlia Lopes de Almeida. No bairro do Rio Comprido, em meio à vegetação nativa, ficava o fictício Ateneu, colégio onde transcorre o clássico homônimo de Raul Pompeia.

A cidade recebeu neste ano o título de Capital Mundial do Livro, honraria cedida pela Unesco pela primeira vez a um município de língua portuguesa. É um reconhecimento, segundo a instituição da ONU, pelos programas que incentivam a inclusão social e o acesso à leitura no Rio.

Por isso, uma Bienal do Livro com programação em espaço ampliado que inclui um parque de diversões para leitores e leitoras, acontece desta sexta, dia 13, até o dia 22 de junho no Rio, com uma programação de diversas iniciativas ligadas à literatura.

Para dar uma dimensão da representação do Rio no olhar de escritores, a Folha identificou, com auxílio de inteligência artificial, os locais citados em 47 obras de 11 escritores fundamentais dos séculos 19 e 20. Depois, esses pontos foram geolocalizados no mapa atual da cidade.

Os autores e livros foram escolhidos a partir de pesquisa e entrevistas com especialistas na literatura brasileira dessa época. A reportagem selecionou autores cujas obras estão sob domínio público, entre romances e coletâneas de contos e crônicas. Foram considerados apenas os livros mais referenciais desses autores que eram ambientados no Rio.

O mapa inclui pontos citados em trechos de Aluísio Azevedo, Carmen Dolores, Coelho Neto, Délia, João do Rio, Joaquim Manuel de Macedo, Júlia Lopes de Almeida, Lima Barreto, Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida e Raul Pompeia.

A ferramenta traz 223 citações com valor histórico, escolhidas por reunirem informações relevantes sobre o local em questão, por serem fundamentais no enredo da obra ou por ajudarem na caracterização de personagens. As citações respeitam a gramática adotada nos livros.

Mapa literário do Rio de Janeiro

Por quantidade de citações em logradouros ou bairros com a nomenclatura atual; textos seguem gramática da época

Citações agrupadas

Logradouros

Bairros

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Entre os endereços, o mais citado é a rua do Ouvidor, que aparece ao menos uma vez em 29 obras diferentes. Ainda hoje com esse nome no centro da cidade, foi a principal via comercial do Rio entre o século 19 e o 20 —lojas de luxo, impulsionadas pela abertura dos portos ao comércio internacional, tinham as portas abertas para suas calçadas.

Após a chegada da família real portuguesa em 1808, o centro carioca foi por muito tempo palco dos principais acontecimentos políticos e culturais do país, afirma Rodrigo Jorge Neves, professor de literatura brasileira da Universidade Federal Fluminense.

A imagem mostra uma vista panorâmica da cidade do Rio de Janeiro, com muitos telhados de casas visíveis. No fundo, há edifícios altos e algumas torres, possivelmente igrejas, com cúpulas. O céu está claro e há uma baía visível à direita, com alguns barcos ancorados.
A cidade vista a partir do extinto Morro do Castelo; região central em 1885 Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles

“A região central, chegando até a Glória e o Catete, era onde se encontravam intelectuais e artistas de diversos cantos do país. Por conta dessa centralidade, o Rio era um espaço de grande fluxo de novidades provenientes de várias partes do mundo.”

A rua do Ouvidor, então, era ponto de encontro de escritores e políticos, sede de jornais e livrarias-editoras, como o Jornal do Comércio e a Garnier, que publicou a maior parte da obra de Machado de Assis em vida. Dali também surgiu a primeira sala fixa de cinema do Brasil, o Salão de Novidades Paris, e a produção do primeiro telefone no país.

Na literatura, essa via movimentada serviu de cenário para encontros e confidências. Foi em meio ao seu vaivém que Brás Cubas, protagonista do clássico de Machado, reviu sua amada Virgília. No mesmo lugar, dona Leonor trocou bilhetes com o amante boêmio Celso Gondim no conto “Histórias de cada Dia”, assinado por Carmen Dolores, pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo.

A imagem mostra uma cena movimentada da Rua do Ouvidor, na cidade do Rio de Janeiro, capturada em preto e branco. Há muitas pessoas caminhando nas calçadas e na rua, com alguns carros antigos visíveis. Várias lojas estão presentes, incluindo uma com o nome 'A Capital' e outra chamada 'Carneiro'. Placas e anúncios estão visíveis, incluindo um que diz 'Liquidação total'. O ambiente parece ser de uma área comercial movimentada.
Rua do Ouvidor, na cidade do Rio de Janeiro Fundo Correio da Manhã/Arquivo Nacional

A praça da República, também conhecida como Campo de Santana, é outro ponto do centro da cidade mencionado com frequência entre os autores da época. Marcado por várias trocas de nome, o espaço é citado ao menos uma vez em 12 obras.

Ali se sediaram eventos importantes do Império e da República —desde a instalação do primeiro quartel do país, em 1811, passando por protestos da Revolta da Vacina, em 1904, até a ocupação por militares, em 1964, numa emboscada contra estudantes que se opunham ao golpe.

O local é rota frequente dos personagens dos livros, funcionando como ponto de referência e de acesso ao transporte público da época, o bonde.

Ainda na região central, são frequentes ambientações na antiga rua dos Ourives (hoje Miguel Couto), na antiga Direita (hoje rua Primeiro de Março) e no Largo da Carioca. Há, claro, representações nas praias, como a lua de mel de Laura e Jorge em Botafogo, no livro “Inverno em Flor”, de Coelho Neto.

"As onze da noite, já a cidade dormia, partiram em carro fechado para o retiro nupcial que elle forrara de pelles molles e ornara de móveis antigos, na praia de Botafogo", contava trecho do livro de 1987.

Importante ressaltar que o Rio de 200 ou 100 anos atrás era outro, com a vida mais circunscrita ao centro, que tinha a maior concentração urbana. A zona sul dos bairros de Copacabana e Leblon, retratados nas novelas, passou a ser ocupada há mais ou menos um século -o centenário do Copacabana Palace, por exemplo, foi há dois anos.

O Túnel Santa Bárbara, que liga a área central ao bairro de Laranjeiras, na zona sul, foi construído somente em 1963, e o Rebouças, um dos principais eixos de ligação entre sul, norte e centro, quatro anos depois.

Um mapa detalhado da cidade do Rio de Janeiro em 1910, mostrando a topografia, ruas, e áreas urbanas. O mapa é colorido, com áreas em tons de verde e marrom representando a vegetação e a elevação do terreno. O título 'CIDADE DO RIO DE JANEIRO' está destacado na parte inferior, junto com informações adicionais sobre a elaboração do mapa. As bordas do mapa contêm legendas e escalas.
Mapa da cidade do Rio de Janeiro em 1910 Francisco Jaguaribe Gomes de Matos/Biblioteca do Congresso Americano

Mais invisibilizados na produção cultural de séculos passados, os subúrbios cariocas foram objeto literário de Lima Barreto. O levantamento da Folha mostra como o autor integrou às suas tramas bairros como Inhaúma, Todos os Santos, Piedade, Méier e Engenho de Dentro.

“Lima é o primeiro escritor que fala sobre os subúrbios”, diz Beatriz Resende, professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Demorou muito até ter uma literatura que se ocupasse da zona norte, dos excluídos, dos negros, das favelas. A literatura era de jovens ricos, filhos de donos de terras, que vinham estudar no Rio de Janeiro.”

Décadas depois do autor de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, outros nomes passaram a trazer o subúrbio ao centro da literatura nacional, por meio de movimentos surgidos nos anos 1970 a partir, por exemplo, da poesia marginal.

É um ângulo literário que passou a agregar autores recentes que ilustraram as periferias do Rio, como Paulo Lins, autor de “Cidade de Deus”, Geovani Martins, de “O Sol na Cabeça”, e Alberto Mussa, de "A Extraordinária Zona Norte”.

A imagem mostra um viaduto com arcos, que se eleva sobre uma rua movimentada. Abaixo do viaduto, há vários carros estacionados e em movimento, incluindo um caminhão e um carro de passeio. Algumas pessoas estão atravessando a rua, enquanto um ciclista passa. Ao fundo, há edifícios e postes de eletricidade. O céu está nublado, e a imagem é em preto e branco, sugerindo uma época passada.
Bondes circulando sobre os Arcos da Lapa, 1955 Fundo Correio da Manhã/Arquivo Nacional

Além de ser moldada no centro mais rico da cidade, a literatura do século 19 era dominada por homens. A escrita era uma ferramenta de confronto para as autoras do período, que questionavam o ideal feminino e pautavam temas como divórcio, independência financeira e emancipação das mulheres, como nas obras de Carmen Dolores, Délia e Júlia Lopes de Almeida.

A autoria das obras de mulheres era alvo de questionamentos, bem como o reconhecimento de sua qualidade. Na crítica literária, os homens distinguiam a chamada “literatura de mulher” da “verdadeira literatura” deles, diz Anna Faedrich, professora de literatura brasileira na UFF e organizadora da coletânea “Júlia do Rio - Crônicas da Belle Époque Carioca”.

“Há também a dificuldade de quebrar a expectativa de que mulher só escreve sobre determinados assuntos como o ambiente doméstico, a maternidade. Elas estão antenadas nas questões políticas, sociais, mundiais.”

As escritoras sofriam retaliações por ousarem falar de assuntos não circunscritos à casa e foram escalonadas para baixo no cânone, segundo a pesquisadora. Está em curso, entretanto, um processo de reavivamento dessas obras com a inclusão de autoras mulheres nas listas de vestibulares de algumas das maiores universidades do país, gerando demanda nos leitores e no mercado e incentivando novas publicações.

O RIO DE CLARICE

O Rio também foi representado por grandes nomes como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Clarice Lispector, que não integram este mapa por terem obras protegidas por direito autoral.

Eternizada em uma estátua no Leme, Clarice trouxe para seus escritos diversos locais, sendo o Jardim Botânico o mais citado, segundo Teresa Montero, biógrafa da escritora e autora do “O Rio de Clarice: Passeio Afetivo pela Cidade”.

A imagem mostra uma paisagem com um lago calmo em primeiro plano, cercado por pedras e vegetação. À esquerda, há um pequeno edifício branco com uma varanda, situado em uma colina coberta de árvores. No fundo, diversas palmeiras e outras plantas tropicais estão visíveis, criando um ambiente natural e sereno.
Lagoa do Jardim Botânico; foto de 1890 Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles

“Ela frequentou esse espaço pelo menos desde o final dos anos 1940, quando escreveu o conto ‘Amor’, presente na coletânea "Laços de Família", de 1960. Na história, a personagem Ana vive um momento de epifania no local. É o encontro consigo mesma”, afirma. Ao longo dos anos 1970, Clarice citou o Jardim Botânico em seis crônicas, segundo a biógrafa.

Lugares frequentados por autores ou citados em sua literatura também fazem parte do turismo no Rio de Janeiro, onde há famosas rotas literárias que percorrem bairros para contar a cidade retratada (e vivida) por autores emblemáticos como Clarice, Machado e Drummond.

METODOLOGIA

A base de dados que alimenta o mapa dessa reportagem foi feita com a ajuda de inteligência artificial, que leu as obras e identificou nelas áreas do Rio de Janeiro, depois georreferenciadas e checadas. As coordenadas geográficas foram obtidas a partir da base de dados de localizações do Google Maps.

Todas as localizações passaram por um refinamento manual da reportagem, que buscou identificar as áreas que deixaram de existir, que mudaram de nome, que eram ficcionais ou que não puderam ser identificadas em documentos históricos.

Uma das fontes de pesquisa para o levantamento foi o projeto machadodeassis.net, que identifica todos os locais citados na ficção machadiana.

EQUIPE

Análise de Dados e Reportagem: Natália Santos / Gráficos e Desenvolvimento: Vitor Antonio / Edição: Paula Soprana e Walter Porto / Ilustrações: Mariana Froner / Colaboraram: Nicholas Pretto e Rubens Alencar