escalada
Projeto de ecoturismo indígena retoma idas ao pico da Neblina
10.set.2017 - 2h00
O ianomâmi é, antes de tudo, um lorde. Gentil e cuidadoso com os visitantes do recém-lançado Projeto Yaripo, que promete reabrir escaladas ao pico da Neblina, mas também altivo, distante. Quase inalcançável, como a montanha.
Quem achar que eles são inferiores –ou ferozes, como quer o controverso antropólogo americano Napoleon Chagnon– tem agora a chance de mudar de ideia escalando o ponto culminante do Brasil em sua companhia. Já existe até uma lista de espera para 2018 ou 2019, a depender de algumas melhorias na trilha.
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Aviso aos caminhantes: o ambiente hostil não favorece expedições. A mata fechada característica da Amazônia tem o solo entrecortado por raízes escorregadias, charcos, pedras íngremes e muitos igarapés (riachos e rios).
Chove demais e faz calor. São Gabriel da Cachoeira (AM), a cidade mais próxima, tem temperatura média na casa dos 26°C e precipitação anual que pode ultrapassar 3.000 mm (em São Paulo, ela fica em torno de 1.400 mm).
Não é uma caminhada fácil, física e psicologicamente. Mas, com um preparo mínimo, qualquer turista mais aventureiro pode enfrentá-la. E a recompensa é enorme: nada se compara a alcançar o cume.
Sem a ajuda dos ianomâmis, porém, nem pensar.
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"Yaripo", na língua Yanomami falada na região de Maturacá (AM), é a "montanha do vento". Apesar do nome, o grupo de 11 visitantes do qual a Folha participou chegou ao topo do pico da Neblina em 21 de julho sob calmaria e forte mormaço, com 21°C a 2.995 m de altitude.
Havia neblina, claro, mas ela ia e voltava. Dava para entrever o vizinho 31 de Março (2.974 m), segundo ponto mais alto do Brasil, e a planície venezuelana que se espraia ao pé do paredão de rocha abrupta.
A trilha de acesso fica do lado brasileiro, onde se sucedem vistas impressionantes da serra do Imeri. São 36 km a pé, com uma elevação total de mais de 2.900 m no terreno, em cinco dias.
O percurso de ida e volta toma oito dias. Todo ele ocorre dentro da Terra Indígena Yanomami, que tem 96,7 mil km² (um pouco maior que Portugal), dos quais 11,3 mil km² se sobrepõem à área do Parque Nacional da Serra da Neblina (que tem 22,5 mil km², pouco mais que o Estado de Sergipe).
Desde 2003, o caminho está oficialmente fechado. Os ianomâmis decidiram que não tolerariam mais a invasão de suas terras pelos grupos organizados por agências de turismo, que iam ao pico da Neblina sem autorização da Funai nem do ICMBio, órgãos responsáveis por terras indígenas e unidades de conservação, respectivamente.
As excursões, contudo, continuaram acontecendo, quase sempre com a participação de ianomâmis das aldeias Maturacá e Ariabu, que reúnem na região uma população aproximada de 1.700 pessoas. Na condição de carregadores e guias, ganhavam uma ninharia.
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INVASÃO
O pico da Neblina figura no alto da lista de desejos de turistas aventureiros como Silvio Alpendre, hoje com 57 anos. Em outubro de 2016, ele e dois amigos acharam que estavam em boas mãos ao aceitar o convite para subir a montanha vindo de um coronel reformado da Polícia Militar amazonense, que dizia já ter organizado tudo com os ianomâmis.
"Na realidade, depois ficou claro que ele organizou uma espécie de invasão", lamenta hoje Alpendre.
Ao chegar a Maturacá, de noite, foram confrontados por soldados do Exército armados: o que faziam ali? O oficial da PM informou que iriam ao cume e que tinham combinado tudo com Júlio Goes, um ianomâmi poderoso em Ariabu.
Um dia depois, o grupo percorreu a trilha por menos de 40 minutos. Os militares os alcançaram para dizer que dois barcos lotados de ianomâmis com espingardas e bordunas vinham em seu encalço. Era mais prudente que voltassem.
De retorno a Maturacá, o grupo de turistas foi notificado sobre uma reunião, na manhã seguinte, para decidir seu destino. Quando chegaram ao ginásio de esportes da missão salesiana ao lado de Ariabu, foram instalados em cadeiras de frente para a arquibancada. Ela se encheu aos poucos, enquanto líderes locais os desancavam em português e em sua própria língua.
Em votação, os ianomâmis resolveram que o grupo poderia retornar a São Gabriel da Cachoeira.
Como saldo ficou o prejuízo com passagens aéreas, hospedagem em hotéis e o dinheiro pago ao coronel para que providenciasse alimentação e carregadores.
Ao ouvir do PM aposentado que a provação teria valido pela experiência, Alpendre diz ter retrucado: "Só aprendi aqui o que não se deve fazer". Apesar do constrangimento, relata que não chegou a sentir-se fisicamente ameaçado.
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Os turistas não poderiam ter escolhido momento mais inadequado para entrar sem autorização na terra indígena. O Projeto Yaripo "" Ecoturismo Yanomami vivia um período crucial, após três anos em gestação, com vários cursos de capacitação e reuniões com Funai, ICMBio e Ayrca (Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes).
Mais que forasteiros desavisados, eles se tornaram verdadeiros intrusos naquela altura em que a Ayrca, finalmente, se punha de acordo sobre o Plano de Visitação exigido pelas normas do ICMBio para os parques nacionais.
A EXPEDIÇÃO
Luiz Capovila respirou aliviado quando o comunicador Motorola que carregava deu um chiado e se ouviu a voz de Salomão Mendonça Ramos, coordenador do Projeto Yaripo na Ayrca, falando de Maturacá.
Era o quarto dia de expedição. O grupo já havia abandonado a floresta fechada e adentrado um mar de bromélias, próximo dos 2.000 m de altitude do acampamento Base. À frente, abria-se o panorama majestoso da serra do Montila.
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"Tirou um peso de 37 kg de minhas costas", disse o engenheiro paulista de 29 anos, que andara preocupado com o mutismo do aparelho. O alívio era força de expressão, pois ele ainda carregava a mochila lotada de equipamentos, de facão a lanternas e telefone de satélite. Capovila estava incumbido de testar um sistema provisório de rádio VHF para manter a comunicação com a aldeia ao longo da trilha.
Apenas 48 horas antes da caminhada ao pico da Neblina, ele havia chegado de outra pernada extenuante, de três dias, para instalar uma antena repetidora no alto de montanhas contornadas pelo percurso, uma barreira que interrompia o sinal. A picada aberta pelo pessoal da Ayrca, no entanto, terminava cerca de 4 km a oeste do ponto escolhido por Capovila.
Com isso, a antena provisória terminou instalada no local errado, e boa parte da trilha do Yaripo ficou na sombra das montanhas vizinhas, excluindo a possibilidade de conexão com a aldeia.
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Além de recolher o equipamento provisório empregado no teste, o que exigiu uma terceira caminhada do engenheiro no prazo de duas semanas, ele terá de voltar em novembro para instalar –desta vez no local certo– a antena definitiva, com dez metros.
O plano é levar turistas pagantes ao pico da Neblina em 2018 ou 2019, e o sistema de rádio não pode faltar.
COMITIVA
A expedição na qual a Folha tomou parte teve outra finalidade. Além de Capovila, mobilizou Nelson Brügger, da Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada. Sua missão era avaliar o grau de dificuldade dos trechos de rocha íngreme, hoje providos de cordas, para planejar a fixação de degraus de metal. Serão necessários 58, estabeleceu o montanhista.
O guia Tomé Fonseca, 42, liderou o grupo de 13 ianomâmis, cada um carregando um jamanxim (cesto-mochila de cipó) com até 35 kg. São rapazes na faixa de 20-30 anos, que falam pouco e andam muito, sempre dispostos a pegar mais peso para aliviar os visitantes desacostumados àquele ambiente.
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Vários levam entre o lábio inferior e a gengiva um rolinho de tabaco com algodão e cinzas. É o "pëë" (pronuncia-se "perré"), hábito quase universal nessa etnia.
Havia no grupo representantes do ICMBio, Luciana Uehara, e da Funai, Anderson Vasconcelos e Alexandre Viana. Do Instituto Socioambiental (ISA), que presta consultoria ao Projeto Yaripo, foi Lucas Lima, geógrafo com mestrado em antropologia (e mestre, mesmo, em dar sugestões de organização aos ianomâmis sem assumir um papel superior).
A expedição foi custeada pela Escola Frederick S. Pardee de Estudos Globais, da Universidade de Boston, por iniciativa da professora Julie Michelle Klinger, que levou a estudante Marie Bridget Baker e o colaborador José Renato Peneluppi Jr. A equipe de reportagem da Folha, que pagou as próprias despesas, incluiu o consultor em ecoturismo e fotógrafo Marcos Amend.
NATUREZA
A expressão "mar de bromélias" é metafórica, mas guarda nexo com a realidade. Há muita água sob a massa vegetal. Ambas se acumulam sobre a camada de rocha impermeável e dão origem ao charco que muitos no grupo elegem como o pior trecho da trilha.
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Algumas das poucas árvores apresentam raízes aéreas para se firmar no solo inconfiável. Em conjunto com o lodo escuro, trazem à memória os mangues do litoral.
Após essa espécie de pântano, o caminho passa a conter muitas pedras soltas, algumas de aspecto rosado (quartzito). Surgem aqui e ali grandes conglomerados, rocha sedimentar que agrega uma infinidade de seixos roliços, que passaram muito tempo submersos e em movimento, no fundo de rios, talvez bilhões de anos atrás.
Foram parar ali, a mais de 2.000 m de altitude, porque a crosta terrestre se soergueu na região, em algum momento de 65 milhões de anos para cá. Assim se formou a serra do Imeri, um dos muitos "inselbergs" (literalmente, montanhas-ilhas) que irrompem no escudo da Guiana.
Os ianomâmis circulam pelas imediações há tempos. Vão ali como guias e carregadores para turistas clandestinos, quando recebem um terço do pagamento que o Plano de Visitação submetido ao ICMBio prevê (mínimo de R$ 1.000).
Também acontece de acompanharem pesquisadores em busca de novas espécies de pássaros, répteis e insetos. Outros carregam material dos garimpeiros ilegais que procuram ouro nas serras –isso quando não são os próprios indígenas a manusear bateias e máquinas para desmontar barrancos.
Eles reverenciam o Yaripo porque ali haveria muitos espíritos. Há quem veja com restrições a ida de mulheres ao cume, pois esse "outro mundo" é território masculino dos pajés. A visão é combatida pela associação feminina de Maturacá e Ariabu, a Kumirayoma. Na expedição anterior, uma de suas integrantes, Maria de Jesus Yanomami, se tornou a primeira ianomâmi a atingir o topo do pico da Neblina.
INFRAESTRUTURA
Mulheres e homens que se aventurarem na trilha terão de se conformar com a falta de privacidade. Não há banheiros, só a vegetação para ocultar quem se agacha. O banho de rio se faz sempre com alguma roupa. A nudez não é bem vista nessa região com forte influência moral dos padres salesianos.
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As clareiras abertas para acampamento são pequenas. As redes de dormir ficam armadas a centímetros uma da outra, sob a lona de 7 m x 4 m que faz as vezes de teto –verdes, para que barracos de turistas não sejam confundidos com os de garimpeiros, amarelos. Os ianomâmis dormem em barracas menores, bem ao lado.
A cozinha é uma fogueira a céu aberto. A mesa, um pedaço de lona dobrada no chão, ou folhas de algum parente de bananeira (que também podem servir para embrulhar alimentos assados na brasa, a técnica ianomâmi "haro-haro").
A base do cardápio –uma só refeição por dia, no final da caminhada– compõe-se de farinha de mandioca e arroz com feijão (alimento que os carregadores não dispensam, dispondo-se a carregar uma panela de pressão de 12 litros).
A mistura, que varia entre carne de vaca salgada, calabresa defumada e frango frito, tende a escassear no caminho de volta. Biscoitos de água e sal, cuscuz cozido à maneira nordestina e a ocasional tapioca acompanham o café da manhã.
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ẼXTASE
A falta de conforto e a exaustão da última pernada (mil metros de elevação em quatro horas) são esquecidas assim que se atinge o cume. Após quatro dias olhando para o chão, medindo cada passo no terreno acidentado, um panorama grandioso se desdobra paredes abaixo do diminuto platô, que tem um mastro e uma bandeira brasileira caídos.
Mesmo na neblina que vem e vai, a visão da vasta planície amazônica a partir da montanha que perfura as nuvens enche os olhos de luz, de verde e de lágrimas. A face do Yaripo que dá para a Venezuela é quase vertical, um abismo que deixa a todos atônitos e cientes da própria pequenez.
Julie Klinger, da Universidade de Boston, saca um telefone de satélite e liga para o marido, com quem conversa de modo emocionado. Ao terminar, dá a todos a possibilidade de falar com pessoas queridas, e vários aceitam a oferta.
A comemoração se faz com água, chocolate e paçoca de carne seca. Multiplicam-se abraços, fotos de grupo e acenos para a câmera do drone (talvez o primeiro a decolar no alto do pico da Neblina).
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Havia três mulheres na turma de "napëpe" (não ianomâmis), mas só duas –Klinger e Luciana Uehara– fizeram a escalada final. Nenhuma ianomâmi integrava esta expedição, ausência que daria o que falar na assembleia para eleger a diretoria da Ayrca, dois dias após o retorno do grupo a Maturacá.
GẼNERO
Convidada para compor a mesa da assembleia e provocada pelas dirigentes da Kumirayoma a falar da importância das mulheres na expedição, Klinger perfilou vários motivos.
Primeiro, contou que só estava ali, depois de decidir apoiar o Projeto Yaripo, porque tinha assistido a um vídeo sobre a expedição pioneira em que a ianomâmi Maria de Jesus aparecia no pico, gravado por Marcos Wesley Oliveira, do ISA. A presença feminina também teria facilitado aprovar a verba para a excursão de que fizera parte.
A Universidade de Boston, explicou a professora, pauta-se por diretrizes da ONU que consideram inerente ao conceito de desenvolvimento sustentável a igualdade de gênero, ou seja, participação ativa de mulheres. "Não só como cozinheiras, mas como carregadoras e até guias", especificou.
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Além disso, mulheres da comunidade local deixariam mais à vontade turistas do sexo feminino em situações que envolvam saúde e higiene (como procurar carrapatos no corpo). Por fim, sem garantia desse envolvimento completo das ianomâmis –como de resto prevê o Plano de Visitação acordado entre comunidades, ICMBio e Funai--, o apoio americano para futuras expedições poderia ficar ameaçado.
O argumento usual dos homens ianomâmis de que elas não aguentariam o peso dos jamanxins enfurece as mulheres, que carregam cestos com até 50 kg de mandioca ou lenha das roças para casa.
Na realidade, o que está em jogo é o pagamento, que eles preferem manter num grupo pequeno, com parentes e aliados políticos. Permitir mulheres só faria aumentar o número de pessoas no rodízio.
O ianomâmi é, apesar de tudo, um lorde –e muito cioso da tradição segundo a qual lordes e ladies, "waro" e "suwe", ocupam espaços diferenciados na sociedade.
Não há lugar para elas, por exemplo, na hora de aspirar o paricá, espécie de rapé que permite aos "pata" (anciãos) trocar de mundo e se entender com os espíritos que habitam o Yaripo.
Cabe a eles negociar o bem-estar dos "napëpe" que se arriscam nas suas encostas –cerimônia de pajelança que muito emocionou os visitantes estrangeiros.