A biografia, por definição, é focada num indivíduo. Mas quando este é popular, arrasta um mundo maravilhoso. Ruy Castro fisgou sempre heróis do povo que não precisam de badana para explicar o livro. A Carmen Miranda é o que a baiana tem, mas com a sua biografia aprendemos, afinal, sobre portugueses cariocas do bairro da Lapa, décadas de 1910 e 20; o sucesso de 'O Anjo Pornográfico' (sobre Nelson Rodrigues) bebeu nas aparições do Sobrenatural de Almeida; 'Estrela Solitária' (Garrincha) teve antes as arquibancadas cheias… Acrescento 'Adoniran', de Celso de Campos Jr, impossível de ler sem banda sonora: 'Saudosa Maloca'…
O diarista a cuidar com gosto e gozo a nossa língua, em folha de jornal. O jornal noticiava a morte de Guimarães Rosa, e o cronista adiava, 'já falo dele', e ia por antigas escarradeiras de louça, por lições de gramática, não é 'se eu me manter', é 'mantiver', e a sopa que comera, no dia anterior, no Antonio’s, perdão, não foi sopa, foi omelete… – para desaguar, sozinho, 'ninguém me via, só eu', na inveja pelo morto. Tudo contado pelo próprio, a quente, ao leitor. Em lado nenhum o cidadão comum, cada dia, foi tão soberbamente tratado como nestas crônicas diárias.
A Rainha Ginga
José Eduardo Agualusa
O pai dos cronistas angolanos, Ernesto Lara Filho, confessava copiar Nelson Rodrigues. Isto é, escrevia da forma coloquial e satírica com que ainda hoje os candongueiros (motoristas ilegais que garantem o sistema rodoviário na capital Luanda) fazem vídeos populares na mais rica língua portuguesa atual. É redutor falar dos 200 anos do Brasil sem atravessar o grande mar fronteiro. Agualusa, para contar a rainha Ginga (século 17) – a África que deu a África de hoje –, usou como narrador um padre nascido em Olinda, filho de índia e mulato. Porque isso está tudo ligado.