Descrição de chapéu Independência, 200

200 anos, 200 livros

Conheça 200 importantes livros para entender o Brasil, um levantamento com obras indicadas por 169 intelectuais da língua portuguesa

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Giovana Xavier

Historiadora, é professora da Faculdade de Educação da UFRJ e organizadora do catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”

As indicações de Giovana Xavier

95º

Forjado na sua trajetória ativista em movimentos sociais negros articulada ao seu ininterrupto investimento na produção intelectual, oral e escrita sobre as desigualdades raciais, o livro do brilhante professor e doutor Hélio Santos, 'A Busca de um Caminho para o Brasil: A Trilha do Círculo Vicioso', é acurada e generosa oferta de um projeto político de nação que tem como ponto de partida a definição da população negra como 'solução' em vez de 'problema'. Percorrendo o que conceitua como 'trilha do círculo vicioso' do racismo, de suas dores e consequências, o sociólogo analisa, ancorado na literatura temática e em farta pesquisa qualitativa e quantitativa (dados do IBGE, entrevistas, jornais), o cotidiano da escravidão e, especialmente, da abolição da escravatura. Um processo conduzido pelas elites do século 19 que culminou na impossibilidade de produzir um 'lugar decente', de acesso a direitos básicos para pessoas descendentes de escravizados. O ponto alto do livro é a proposição de um projeto de democracia radical no qual destacam-se como pilares o investimento na educação básica com a destinação da maior parte dos impostos federais para este segmento, a construção de uma política de gestão da escola conduzida pelas comunidades locais em vez de exclusivamente concentrada nas mãos do poder público e o desenvolvimento de uma política salarial articulada ao investimento no aperfeiçoamento profissional da categoria docente. Em 2022, ano definido para tomada de decisões acerca das políticas de ações afirmativas, a monumental obra de Hélio Santos torna-se ainda mais importante para nossa compreensão das origens da 'imobilidade social' de pessoas negras devido às históricas conexões entre baixa renda, escolaridade e desemprego, tratadas de forma integrada e para inspirar, de forma qualificada, os movimentos brasileiros por igualdade racial. Tudo isso dentro de um projeto de 'Brasil Unificado' fundamentado em 'novo conceito de inteligência' que passa pelo reconhecimento de nossas 'inteligências múltiplas' (corporal, linguística, musical) que assegura a capacidade brasileira de 'atuar com sentimentos' que tornem possível 'mudar a paisagem humana' desigual que estrutura nossa história como povo.

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Indicações fora da lista

Ainda que o título possa sugerir um romance autobiográfico, o livro 'Cartas a um Homem Negro Que Amei' também é um romance histórico do tempo presente. Narrado na primeira pessoa da autora, a filósofa e socióloga Fabiane Albuquerque oferece-nos com seu belíssimo texto uma interpretação da história do Brasil no século 21 calcada em aspecto genuíno: o ponto de vista de uma mulher negra que escreve e reflete sobre sua história de forma integrada à história nacional. Com uma emocionante trajetória que se inicia em 1980 na cidade de Contagem e no sertão de Minas Gerais, em Corinto, em uma família que tal qual Carolina Maria de Jesus migra para São Paulo em busca de condições humanas e dignas de existência, Fabiane encontra na Igreja Católica a chance de criar novas possibilidades de existência. Possibilidade esta que após anos dedicados ao noviciado mostram-se inviáveis dadas as contradições, conflitos e assimetrias de gênero, raça e classe, alimentadas e naturalizadas pelo catolicismo ao longo dos cinco séculos de história do Brasil. Proclamada sua autolibertação da 'vocação religiosa', percorremos com a autora diversos processos de construção de subjetividade de mulheres negras: o acesso à universidade atravessado pelas opressões patriarcais que impregnam a maternidade, o casamento e os seus sonhos como uma jovem oriunda da classe trabalhadora. Seguindo a tradição feminista negra de colocar em primeiro plano a escrita na primeira pessoa, a autonarrativa de Fabiana dá-se através de correspondências com um professor universitário importante em sua vida: o homem negro que ela amou e que justamente por amá-lo revelou-lhe das formas mais intensas, sinceras e generosas o 'não-dito' do impacto do machismo e do patriarcado na história dos homens negros. Entre tantas belezas que constituem o romance, destaca-se a oportunidade de acompanhar o desabrochar de Fabiane como uma talentosa intelectual negra. Ativista, mãe, acadêmica, pesquisadora que, comprometida com as lutas por paz, justiça e igualdade, ensina-nos a entender mais a fundo a importância dos governos democráticos na história recente do Brasil.

Ao embarcar no romance histórico Maréia – nome que poeticamente ilustra os encontros do mar com a areia, entendemos a grandiosidade de Miriam Alves. Escritora marcada pela inteligência e precisão necessárias à realização de pesquisas minuciosas capazes de forjar personagens que nos fazem compreender a história do nosso país de forma bela e profunda. O que mais chama atenção na obra são a criatividade e a ousadia da consagrada escritora para percorrer sincronicamente as histórias de uma família branca (Menezes & Albuquerque) e uma negra (Nunes dos Santos), com capítulos alternados para cada um dos clãs. Destaca-se, como ponto alto do livro, o investimento da autora de evidenciar em fartos detalhes, sem jogos de desqualificações e revanchismos, as pessoas brancas como poucas vezes são vistas: em detrimento da ideia de povo 'civilizado', na condição de seres humanos produtores de miséria, violência e desgraças de todas as ordens. Em um momento político marcado pela emergência de irrefreável agenda pública de debates sobre normatização da branquidade e seus privilégios, a escrita mar-areia de Miriam demole, com generosas doses de poesia e pesquisa, a ideia de que desumanização seria um problema do negro. Ao evidenciar com sofisticação teórica e sensibilidade poética a escrita autêntica de mulheres negras e de seus projetos políticos para o Brasil, afirmo que Maréia é clássico para compreender a nossa história sob novas luzes interpretativas.