Dos restos do cotidiano e dos farrapos de uma experiência de segregação racial, econômica e social, emerge uma mulher-personagem tecendo, por uma poética dos retalhos, uma potente imagem de um Brasil assombrado por fantasmas e processos de marginalização de pessoas, culturas e modos de expressão, inclusive os literários.

Um Brasil que é uma paragem do belo como composição de linguagens em rebuliços de metamorfoses.

Para compreender o Brasil, é necessário conhecer os processos do sistema colonial escravagista, seus violentos meios, linguagens e procedimentos de exclusão e tentativas de apagamento das pessoas em estado de escravidão. Assim como restaurar narrativas ignoradas ou excluídas de personagens liminares, muitas vezes ocultos, transeuntes por diferentes mares, terras e linguagens; retratos de resiliência, reflexões sagazes, coragem, estratégias e regimes de narração diferenciados; personagens que habitam 'Um Defeito de Cor', compondo perfis exemplares, como Kehinde, narradora griô que fertiliza nossa escuta e expande nossa percepção. Nesse livro, Ana Maria Gonçalves produz um corte plurissignificativo nos protocolos de representação do negro e da negrura na sociedade e na literatura brasileiras.

Uma linguagem e uma composição narrativa primorosas. Uma fábula exemplar sobre a migração forçada dos desvalidos e desterrados que perambulam por uma sociedade inóspita, por uma paisagem estéril, destituídos de voz, de corpo, de palavras e de poder. Um Brasil dissoluto, severino que, como verseja o poeta João Cabral de Melo Neto, é 'como um cão sem plumas'.

Uma narrativa mordaz e sarcástica, na qual Lima exercita uma crítica potente à corrupção dos poderes instituídos, aos grotescos e caricaturais ideais de nacionalismo e a um Brasil em estados diversos de miserabilidade, cuja população se degrada tanto nos becos urbanos quanto nos formigueiros rurais.

Uma narrativa fundacional de um ideário de nação, de invenção de uma origem, de criação de um imaginário mítico mestiço na idealização de um projeto de identidade nacional; projeto este que se constrói pelo alçamento de uma língua brasileira como 'forma de expressão', como pontua Haroldo de Campos, dissonante do timbre lusitano, mas consonante com uma linguagem literária que se deseja imagem especular e tradução da almejada nacionalidade cultural nativa, ainda em processo de formação. Uma 'arqueografia de vanguarda', dirá o mesmo Haroldo.