conflito ancestral
Barreira construída para trazer segurança aparta vidas e memórias
4.set.2017 - 02h00
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Umm Judah, 64, se esqueceu de muitas coisas. Entre elas, a palavra que moldou os anos mais recentes de sua vida: "muro".
Professora aposentada, a palestina vive nas cercanias de Belém diante de uma barreira de concreto de oito metros de altura.
É esse o horizonte à sua porta, que a separa da terra que cultivou por décadas e das lembranças dos filhos iluminados pelos faróis e satisfeitos com os figos recém-colhidos.
"É como uma venda", diz à Folha. "Como se nos arrancassem os olhos."
Durante a entrevista, ela aponta a construção mais de uma vez por não se lembrar de como chamá-la, mesmo em seu árabe nativo.
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O muro diante de sua casa é um trecho da barreira de 764 quilômetros que Israel ergue desde 2002 para se separar dos territórios palestinos da Cisjordânia, onde estão cidades como Belém e Ramallah. A maior parte é cerca, e o concreto é usado nas áreas urbanas. Faltam os últimos 194 quilômetros da construção.
A barreira tem impacto brutal nas vidas de pessoas como Umm Judah. Mas israelenses de diferentes orientações políticas concordam, por outro lado, que existia a necessidade urgente de erguê-la.
As memórias da Segunda Intifada ainda estão frescas. Cerca de 3.000 palestinos e 1.000 israelenses morreram entre 2000 e 2005 durante o levante palestino contra a ocupação israelense. Os palestinos enviavam homens-bomba; os israelenses revidavam com tanques.
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O israelense Ury Vainsecher, 71, se recorda bem. Ele já vivia em Kfar Saba, cidade a um quilômetro do muro, no caminho para a palestina Qalqilya.
"Quando meus filhos eram menores, eu os levava a todos os lugares de carro. Tinha medo de que tomassem o ônibus", diz. "Entre eu ser vítima de uma explosão e uma palestina viver rodeada por muro, prefiro vê-la cercada."
Vainsecher perdeu um amigo em um atentado. O filho de um vizinho morreu em outro ataque, e um conhecido que estava em uma pizzaria de Jerusalém alvo dos terroristas, também.
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O trecho da barreira diante da casa de Umm Judah é um dos mais recentes.
Um ano atrás, a palestina caminhava dois ou três minutos até seu pomar para passar o dia sob as oliveiras enrolando folhas de uva. Hoje ela precisa dirigir por 40 minutos para alcançar o outro lado.
"Mas o muro ajudou os israelenses. Estão relaxados."
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A fricção causada pela barreira na vida de palestinos como Umm Judah envenena a possibilidade de haver paz entre os dois povos em breve.
O projeto foi questionado desde a concepção por figuras como Yossi Beilin, arquiteto dos Acordos de Oslo (as negociações de 1993 que levaram à divisão da Cisjordânia em diferentes áreas de controle).
Se não tivessem sido interrompidos pelo assassinato do premiê israelense Yitzhak Rabin por um ultranacionalista em 1995, tais acordos poderiam ter encerrado o conflito.
"Era claro que os palestinos seriam humilhados pela construção do muro", diz Beilin, em Tel Aviv.
"Mas não foi feito por malícia, e houve esforços para que eles não sofressem, ainda que esses esforços não tenham sido suficientes", afirma, citando uma série de apelos às cortes israelenses –seis deles com sucesso– para mudar a rota da barreira.
Muros, diz Beilin, "não são fotogênicos".
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"São muito difíceis de explicar. A barreira virou um símbolo de como colocamos os palestinos em uma prisão. É a vida deles, e eles se perguntam por que têm que pagar esse preço." Não apenas por terem sido separados da terra que cultivavam, mas também porque a sua liberdade de ir e vir foi drasticamente reduzida.
A Folha acompanhou a passagem de trabalhadores palestinos rumo a Israel em dois postos de controle militar, em Belém e em Ramallah.
Às 5h, a fila já transbordava dos corredores metálicos que lembram um curral, os ratos passando pelo chão imundo. Ansiosos, alguns trabalhadores escalavam as grades e formavam uma fila paralela no alto, como equilibristas distópicos.
O ritual é cotidiano para milhares. "Tornamos a vida de muitos palestinos terrível", afirma Beilin. "Mas reduzimos o número de mortes, e é difícil dizer que isso tenha sido errado."
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Não é errado, do ponto de vista legal, que um país construa muros em seus limites.
Mas a divisão entre Israel e os territórios palestinos não é uma fronteira convencional porque, afinal, não existe um Estado palestino. A divisa costuma ser a chamada Linha Verde, que marca as fronteiras anteriores a 1967, ano da Guerra dos Seis Dias, quando Israel tomou a Cisjordânia.
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Vem daí mais uma complicação desta história, vivida diariamente por Umm Judah: de cada 6,5 quilômetros da barreira, 5,5 foram construídos dentro da Cisjordânia e, portanto, fora da fronteira. Em alguns trechos, o muro está 18 quilômetros distante de onde teoricamente deveria serpentear.
A explicação de um tenente-coronel do Exército israelense que não pôde se identificar é a de que o trajeto foi adaptado às necessidades de segurança. Em algumas ocasiões o muro precisava passar em cima de uma colina, e não embaixo, por exemplo.
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"Nossa experiência nos tribunais é sempre a mesma", afirma a advogada palestina Dalia Qumsiyeh, que representa Umm Judah.
"O governo israelense usa a palavra mágica, 'segurança', e aprova assim os seus planos", diz. "Mas, antes de falar em segurança, pensem na senhora que não consegue entrar em sua terra."
Ou no palestino Hani Amer, 60, que vive na região noroeste da Cisjordânia, sobre a linha em que o governo israelense queria ter construído o muro.
Ele se recusou a deixar sua casa, a barreira a contornou, e ele foi cercado em seu terreno de 1.000 m² pelo concreto, o arame farpado e pelas cercas de segurança.
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A poucos passos dali, está o assentamento israelense de Elkana, razão para as preocupações.
"Disseram que ou eu saía daqui ou ficaria isolado. Quis ficar, a despeito de todas as dificuldades, porque é a minha casa", diz, sentado em um balanço no jardim. À sua frente, está o muro.
Por algum tempo, Amer precisou pedir que os soldados israelenses abrissem o portão da sua propriedade toda vez que queria sair.
"Receber visitas era um inferno. Uma punição coletiva." Com a pressão de organizações humanitárias, o agricultor teve uma pequena vitória: recebeu a chave para uma portinhola no muro, pela qual hoje passa.
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Ao receber a Folha em sua casa, Amer se agacha atrás de um carro, para que a polícia israelense não o veja –ele teme ser punido por receber a imprensa e falar de sua vida. Poderiam, por exemplo, lhe tirar a chave da portinhola.
"Tive tantos problemas que já nem consigo me lembrar de todos", diz, antes de relatar alguns.
Quando seu filho de três anos engatinhou por baixo da cerca, por exemplo, a mãe não teve permissão para cruzar a barreira e buscá-lo. A criança foi encontrada do outro lado e trazida de volta.
"Eu fui até os soldados e lhes disse: Vocês não são humanos. Vocês viram meu filho e não fizeram nada."
Ao ser lembrado que Israel ergueu o muro para garantir a segurança do país, Amer diz que "o que garante a segurança é a justiça". "Quando você distingue entre dois irmãos, não tem segurança. Imagine entre dois povos."
A barreira rompeu em diversas regiões do país o contato, ainda que limitado, que havia entre palestinos e israelenses.
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Amer vive próximo de Qalqilya, onde israelenses costumavam fazer compras antes da Segunda Intifada.
O local é próximo também de Tzur Yigal, onde vive o israelense-uruguaio Eran Landau, 64. "Minha casa foi erguida por uma família palestina", diz. "Tenho amigos do outro lado, apesar de ter lutado contra eles", afirma.
"O muro nos inquieta, mas ou você cuida da sua família, ou não. Quero viver bem, e quero que minha filha viva bem. Se ela puder ir para a discoteca sem riscos, não me importo com o que dizem."
Landau é membro de uma força-tarefa voluntária para a segurança de Tzur Yigal, e guarda armas, um capacete e uma máscara de gás dentro de uma sala à prova de explosões. "Tenho um fuzil M16 para viajar. Poderiam me atacar a qualquer momento com um coquetel molotov."
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O recém-eleito prefeito de Belém, Anton Salman, discorda da avaliação. "Não acho que seja questão de segurança. É confisco de terra", diz diante do muro que divide sua cidade. Ele perdeu parte de suas propriedades, isoladas do outro lado da barreira.
Os desvios em relação à Linha Verde engoliram 9,4% da Cisjordânia, um processo monitorado pelo israelense Dror Etkes, diretor da ONG Kerem Navot. "Fiscalizamos como Israel toma terras na Cisjordânia para dar aos colonos israelenses", diz –os colonos são os israelenses que vivem dentro da Cisjordânia.
"A barreira foi construída para permitir que os assentamentos crescessem. Há uma correlação entre a presença de colonos e da barreira."
Para o ex-soldado israelense Avner Gvaryahu, 32, é preciso entender a barreira como parte de um sistema mais amplo, que envolve o projeto dos assentamentos. "O governo quer minimizar o número de palestinos aqui."
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Gvaryahu é o líder da organização Breaking the Silence, que compila testemunhos de soldados israelenses sobre a violência da ocupação da Cisjordânia. Ele foi paraquedista, período durante o qual recebia ordens diretas de colonos.
"O objetivo do sistema é proteger os israelenses, mas ninguém protege os palestinos", diz Gvaryahu. "Nunca haverá uma sensação real de segurança até que os palestinos tenham respeito e dignidade."
Ao redor dos muros e cercas, há zonas-tampão às quais o acesso de palestinos é restrito por razões de segurança.
"Em algumas áreas entre barreiras é possível ver como surgiu uma nova vida selvagem", diz Etkes, e aponta para um grupo de veados, que cruzam diante do carro da reportagem e se esgueiram por debaixo do arame farpado rumo à terra de que agora são na prática os donos.
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Umm Judah teme que esse seja o futuro de seu pomar, do outro lado do muro, caso o governo israelense decida que ela já não pode mais cruzar o controle militar. "Sinto como se tivesse perdido alguém da minha família. Roubaram a minha felicidade", ela afirma, e chora.
Depois, sobe em uma rua do vilarejo, alta o suficiente para enxergar por cima do muro. Vê seu pomar inacessível –damascos, pêssegos, peras, alecrim– e lamenta: "Vou morrer aqui".