ao sul da fronteira
Expectativa e ressentimento atormentam quem fica para trás
26.jun.2017 - 02h00
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O muro que Donald Trump prometeu construir na campanha ainda não saiu do papel. Mas os mexicanos já são obrigados a conviver há décadas com as barreiras deixadas por Barack Obama, George W. Bush e Bill Clinton.
A separação física com o vizinho pobre do sul tem sido uma política de Estado desde que Clinton ergueu os primeiros trechos, em 1993, reaproveitando sucata trazida da Guerra do Golfo. Já são 1.046 km de barreiras separando os dois países, incluindo as grades de 4,6 metros contratadas pelo correligionário Obama.
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Via de regra, o muro costuma crescer de altura à medida que se aproxima das regiões mais povoadas. Separa cidades, como as duas Nogales, a mexicana e a norte-americana. Diminui ou desaparece nas áreas mais inóspitas, onde caminhadas de dias ao longo da barreira natural do deserto produzem mortes diárias.
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O muro não é apenas físico. Os mexicanos também se ressentem do endurecimento da vigilância e das leis imigratórias, sobretudo após a ataques do 11 de Setembro, em 2001. As promessas feitas por Trump de mais repressão a imigrantes irregulares são mais questão de intensidade do que mudança de rumo.
"Trump nos assusta e traz incertezas, mas é preciso recordar que Obama também foi um presidente muito cruel e rude com os imigrantes. Fez as 'redadas' [grandes operações de captura de imigrantes ilegais], as deportações em massa, as separações de famílias, os centros de detenção. Foi ele quem fez esse muro aqui e quem mais deportou na história dos EUA. Nunca disse nada, mas fez muito", afirma o padre Javier Calvillo, 47, diretor da Casa do Migrante de Ciudad Juárez, sua cidade natal.
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"O meu maior medo é o muro que Trump pode construir nas mentes e nos corações dos americanos e até dos mexicanos que estão lá. É o muro mais perigoso: vem o racismo, vem o apontar de dedos. Em El Paso, as pessoas têm medo de ir à escola, ao trabalho. É um ambiente de pânico e terror", completou.
Mesmo no governo Trump, o muro de Obama continua avançando na região de Ciudad Juárez, substituindo uma antiga cerca baixa de tela, facilmente transponível.
As obras estão agora em Puerto de Anapra, bairro de ruas de areia e casas sem acabamento a cerca de 30 minutos do centro de Juárez, cidade de cerca de 1,5 milhão de habitantes que já foi a mais violenta do mundo devido a disputas territoriais entre cartéis de narcotráfico.
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Anapra é habitado principalmente por funcionários das "maquiladoras", grandes fábricas, na maioria norte-americanas, que se instalam em território mexicano em busca de mão de obra barata. Apenas em Juárez, essas empresas mantêm cerca de 300 mil operários.
O ritmo de construção é rápido. A cada 30 minutos, uma nova chapa da grade de 1,5 metro de extensão é erguida por um guindaste, encaixada na base de concreto e soldada com outra chapa por operários, a maioria mexicanos.
"Não gosto de trabalhar aqui, mas tenho de alimentar a família", diz um deles, que se identificou como Marcos e trabalha para uma fornecedora de cimento. Ele explica que os pais moram em Juárez, mas que a visita é cada vez mais difícil devido à segurança rígida –costuma levar cerca de duas horas para cruzar a ponte fronteiriça.
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As sobras da obra viraram uma fonte de renda extra para os moradores. Carregando um longo pedaço de cano de aço em um dos ombros, a operária Fabiola Vellez, 31, disse que a peça vale 50 pesos (US$ 2,80, ou R$ 9,30).
Trata-se de um pequeno reforço do salário de mil pesos (US$ 56, ou R$ 190) que recebe por semana em uma fábrica de cabos automobilísticos. A poucos metros, no Texas, o salário mínimo semanal está em US$ 290, o quíntuplo.
Apesar da fonte extra de renda, Vellez não está feliz: "Em dezembro, 'la migra' (Patrulha da Fronteira dos EUA) lançou brinquedos por cima da cerca. Com o muro, não será mais possível", lamentou.
O muro também atrai crianças, que pedem dólares e doces através da cerca. Mais ousado, um adolescente demonstrou à reportagem que conseguia escalar até o topo do novo muro em poucos segundos, para irritação de um operário, que prometeu chamar a mãe e recebeu em resposta uma saraivada de xingamentos em espanhol.
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O muro venceu José Hector Nevarez, 33. Detido e deportado pela primeira vez em 2010, no governo Obama, tentou voltar aos EUA duas vezes e foi capturado pela Patrulha da Fronteira nas duas.
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Resignado, decidiu reunir a família no México, que Hector havia deixado quando tinha 15 anos. Vieram a mulher, Gabriela, 32, e os filhos, Emiliano, 12, e Azul, 7.
O muro impôs uma divisão na família. Num drama que se repete com frequência cada vez maior, os pais são mexicanos, mas os filhos possuem cidadania norte-americana por terem nascido lá.
Para eles e centenas de outras famílias de deportados, a solução foi morar no povoado de Puerto Palomas, (157 km a oeste de Juárez). Todo dia, enquanto os pais trabalham no lado mexicano, os filhos atravessam a fronteira para ir às escolas norte-americanas do Novo México.
"Os EUA são o seu país. Em seu momento, vão ter um emprego lá, ter uma vida social lá", diz Hector, que nos EUA trabalhou na construção civil e como motorista. "Queremos que façam a sua vida lá. E, obviamente, se tivermos a oportunidade de lá visitarmos, tudo bem, mas vivendo não."
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A rotina familiar começa às 6h, quando a temperatura costuma oscilar em um dígito. Primeiro, ele leva Emiliano até o posto fronteiriço. Ao lado do filho, caminha por alguns metros em território americano até a entrada do posto de controle imigratório. "Se quiserem, podem me prender aqui onde estamos."
Ao lado de outros pais deportados, Hector observa Emiliano entrar em um dos cinco ônibus amarelos enfileirados do outro lado da aduana. Uma hora mais tarde, ele repete a rotina com Azul.
Na volta da escola, é a vez de Gabriela esperar os filhos na saída do posto de controle mexicano, onde as mochilas precisam passar por uma máquina de raio-X.
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O muro traz perigos. O cuidado do casal em levar os filhos pessoalmente até a entrada do posto fronteiriço tem um motivo: evitar que as crianças sejam usadas por narcotraficantes para driblar a vigilância americana.
"Lamentavelmente, vivemos em um país onde existe todo tipo de criminalidade. Há casos de meninos usados como mulas e detidos pela imigração. Estamos sempre atentos para que não levem nada mais do que o material escolar em suas mochilas."
O muro também gera dinheiro. Hector trabalha no tradicional restaurante Pink, a poucos passos da fronteira e popular entre norte-americanos que cruzam para Palomas em busca de dentistas e oculistas mexicanos que cobram uma fração do que custaria nos EUA.
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Em casa, Gabriela complementa a renda dando banho em cachorros. Os clientes são americanos, que entregam e pegam os bichos de estimação nos poucos metros de zona neutra entre os dois postos fronteiriços.
O muro cria rotinas estranhas. Nos cinco anos em Palomas, o casal nunca foi à escola dos filhos -por Skype, viram a formatura do ensino fundamental de Emiliano e conversam com os professores. "Mas nos sentimos muitos sortudos, [estudar nos EUA] é um privilégio que nem todos podem ter", diz Hector.
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Sobre Trump, ele tem dúvidas: "Ele está dizendo o que as pessoas querem ouvir. Está dizendo que ele vai fazer um muro enorme, bonito e grandioso, mas não vai acontecer. É só um falastrão."
A 680 km a oeste de Juárez, Caborca é a última parada para vários centro-americanos antes de se arriscar no deserto onde o muro ainda não alcançou. Ali, quase todos os dias, dezenas desembarcam da "Bestia", apelido dado a qualquer um dos trens que atravessam o México e são usados pelos imigrantes para se aproximar da fronteira, em viagem clandestina e perigosa.
Vizinho à estação de trem, uma Casa de Migrante abrigava 57 imigrantes em meados de abril, a grande maioria hondurenhos. No grupo, predominantemente masculino, muitos já haviam sido deportados dos EUA, mas preferem se arriscar de novo no país de Trump a viver nos pobres e violentos países centro-americanos, sobretudo Honduras, El Salvador e Guatemala.
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Ao contrário de Juárez, as instalações são precárias. A maioria dormia do lado de fora da casa acanhada, em cima de tapetes e sob o teto de lona, apesar da madrugada fria do deserto. O acúmulo de lixo deixava seu odor no ar.
Os relatos revelam uma viagem perigosa. Um diz que foi obrigado a beber a própria urina durante a caminhada que durou cinco dias, sem sucesso. Outro teve de voltar após infecção provocada por picadas de carrapatos.
Driblar o muro é caro e perigoso. Há dois preços cobrados pelos coiotes. São cerca de US$ 8 mil (R$ 26 mil) para a travessia, mas o valor pode cair pela metade se o imigrante levar uma mochila com drogas até os EUA.
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Um dos poucos que se aventuravam pela primeira vez, o salvadorenho Emir (nome fictício), 30, levou 45 dias até chegar a Caborca. Diz ter viajado em 15 trens. "Foi difícil, há situações de que não vou esquecer nunca. Conheci uma menina que perdeu a perna subindo no trem."
À espera do momento certo para se arriscar no deserto, Emir não teme a linha dura de Trump: "Não existe um presidente dos Estados Unidos que não tenha deportado pessoas".
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O muro tem frestas. A lógica é parecida à de uma visita na prisão: todos os dias, alguma família se reúne entre as grades "padrão Obama" que separam Nogales, México, de Nogales, Estados Unidos. Trocam comida, presentes, notícias, conversam, cantam e tentam se tocar.
No terreno inclinado de chão batido, a faxineira Aída Laurean, 47, no lado mexicano, passou das 11h30 às 18h30 ao lado da filha Sofia, no lado americano.
As duas se separaram quando Aria não quis perder o funeral da mãe, no México, mesmo sabendo que não conseguiria voltar aos EUA.
Chegou a tempo para o enterro, mas ficou sete anos sem ver a filha.
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O muro assusta. Sofia, atendente de telemarketing, só se arriscou a se aproximar dele depois que começou a transitar o documento para a residência, ao qual tem direito por ter se casado há pouco com um mexicano-americano. Enquanto o processo não ficar pronto, porém, ela não pode deixar os EUA.
Sobre Trump, Aída apenas brinca: "O comentário é que ele quer fazer um muro novo. Que seja bem baixinho para que eu possa pular."