Um mundo de muros

Sérvia | Hungria

as barreiras que nos dividem

Política anti-imigrantes de premiê húngaro deixa no limbo, no mato e na neve milhares de retirantes e refugiados vindos da África, Ásia e Oriente Médio

persistência

Na porta da Europa, tentar entrar é ciclo de perpétua incerteza

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Duas cercas paralelas, de quatro metros de altura, estendem-se ao longo dos 175 quilômetros de fronteira entre a Sérvia e a Hungria para impedir a entrada de refugiados e migrantes.

A primeira é uma cerca simples de arame farpado, construída em setembro de 2015. A segunda, uma barreira de alta tecnologia, ficou pronta em março deste ano. É equipada com sensores elétricos que dão choques leves em quem tenta passar e avisam aos guardas a localização exata do intruso.

Tem câmeras com visão noturna e sensores térmicos que detectam a aproximação de pessoas. E alto-falantes que advertem em três línguas, inglês, árabe e farsi : "Alerta, você está na fronteira da Hungria, que é propriedade do governo húngaro; se você danificar a cerca, cruzar ilegalmente ou tentar atravessar, estará cometendo um crime".

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{{imagem=2}} [[ifo lateral / mapa fronteira com principais cidades]]]

Apesar da parafernália, milhares de sírios, afegãos, paquistaneses e iraquianos não desistem do que batizaram de "the game", o jogo –a tentativa de cruzar ilegalmente a fronteira em busca de uma vida melhor na União Europeia.

Durante semanas, os migrantes ficam escondidos em grupos de dez a 30 pessoas no mato, em locais chamados de "the jungle", a selva, esperando a hora de cruzar. Quando o traficante de pessoas liga de madrugada, os grupos correm para a fronteira.

A tática é se dividir: 30 pessoas entram de um lado, 20 de outro. A polícia não consegue pegar todos de uma vez e alguns conseguem entrar.

A primeira cerca foi construída pelo nacionalista Viktor Orban, o primeiro-ministro da Hungria, no pico da crise dos refugiados. Na época, uma multidão de mais de mil pessoas por dia tentava entrar na Hungria. O número caiu muito, mas ainda há 50 pessoas tentando atravessar diariamente de forma ilegal.

O paquistanês Rana Muzzafar Sabir, 28, já tentou cruzar 11 vezes da Sérvia para a Hungria. Na última, há um mês, policiais húngaros o pegaram já dentro do território da Hungria e o espancaram. Chutaram seu olho e quebraram seu nariz, ele conta. Depois, o deportaram para a Sérvia. Ele não foi para o hospital porque tem medo de a polícia aparecer.

{{info=1}} [[info – refugiados que chegam à europa ano a ano]]]

Os Médicos sem Fronteiras (MSF) atenderam 106 pessoas vítimas de violência da polícia de fronteira húngara de janeiro de 2016 a fevereiro de 2017. Na maioria dos casos, os migrantes tinham marcas de espancamentos, mordidas de cachorro e tiveram ossos quebrados. No inverno, refugiados relatam que os policiais despejavam água fria em suas roupas e os deixavam por horas na neve, a temperaturas abaixo de -10 °C.

Sabir saiu de sua casa, em Lahore, há oito meses. Passou por Irã, Turquia, Bulgária e Sérvia. "Estou cansado, mas continuo determinado", diz Sabir, da "selva" onde se esconde, nos arredores de Subotica, na Sérvia. Ele e mais dez paquistaneses acampam no local, onde há muito lixo espalhado, cobertores no chão e uma barraca.

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Numa grade de jipe que virou grelha, os refugiados assam pão chiapati e cozinham frango ao curry com mantimentos trazidos por uma ONG. Carregam os celulares em postos de gasolina e vivem à base de energéticos.

Muitos deles aprenderam o pouco de inglês que sabem no caminho, assistindo a vídeos no YouTube e ouvindo música no celular.

Para despistar, a cada noite eles dormem em um lugar diferente, muitas vezes dentro de vagões abandonados de trem. Voltam para "a selva" para cozinhar e esperar o chamado do coiote, que cobra 2.500 euros (R$ 9.200) pela travessia da Sérvia até a Áustria, através da Hungria.

Normalmente, só pagam se conseguirem chegar, mas alguns traficantes pedem uma "entrada" não reembolsável.

{{info=2}} [[[info: procedência dos imigrantes/nacionalidades]]]

{{info=3}} [[[número de refugiados em países europeus que mais os recebem]]]

"Às vezes fico muito deprimido, não me acostumo com essa vida", diz Sabir, que tem um MBA em finanças e trabalhava como contador na Pepsi em Lahore. Ele deixou o Paquistão porque começou a ser perseguido pelo grupo terrorista Lashkar-e-Taiba. "E quando cheguei aqui chamavam a gente de terrorista."

O afegão Hameedullah Suleiman, 18, já tentou cruzar seis vezes. Aluno exemplar, cursava faculdade de engenharia aeronáutica no Paquistão com bolsa de estudos, mas os pais exigiram que retornasse para seu vilarejo no sul do Afeganistão.

"Se voltasse, teria que parar de estudar para trabalhar com meus irmãos na terra, sem falar no Taleban, que matou muita gente que conheço", diz ele, que vive na "selva" há um mês. "Às vezes penso: o que está acontecendo com a minha vida?"

Suleiman quer ir para Londres, onde mora um tio seu.

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Existem cerca de 6.000 refugiados encalhados na Sérvia, esperando para entrar na União Europeia.

Muitos vivem nos campos de refugiados e estão em listas de espera para entrar na Hungria, onde terão o pedido de refúgio analisado. Mas a espera pode levar dois anos, e muitos jamais conseguirão refúgio. Então, tentam cruzar ilegalmente.

No campo de Obrenovac, no subúrbio de Belgrado, vivem 950 homens solteiros, sendo 250 menores de idade.

Segundo Mirjana Ivanovic-Milenkovski, porta-voz do Acnur, a agência de refugiados da ONU, na Sérvia, 1 em cada 4 refugiados hoje na Sérvia é menor de idade, muitas vezes desacompanhado.

Em Obrenovac, passam o tempo jogando críquete ou navegando na internet em seus celulares. Usam o campo de dormitório. Depois de uns dias lá voltam para a "selva", para tentar cruzar para Croácia ou Hungria.

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Em 2015, passaram mais de 400 mil migrantes pela Hungria, a porta para a UE, em seu caminho para países como Alemanha e Suécia, mais amigáveis a refugiados.

Após a construção da cerca, o aumento do patrulhamento nas águas turcas e o acordo entre UE e Turquia para remanejar ao país euroasiático os que chegassem à Grécia, assinado em março de 2016, o número despencou.

No entanto, muitos refugiados ficaram encalhados em campos na Grécia (mais de 60 mil) e na Sérvia (mais de 6.000).

Boa parte dos sírios e iraquianos que vieram naquela época conseguiram ser acolhidos como refugiados pela UE.

Sobraram cidadãos de países que têm mais dificuldade em receber esse status, como Paquistão, Bangladesh e Afeganistão, e os poucos que continuam a chegar.

{{info=4}} [[[[info: principais rotas]]]]

{{imagem=1}} [[[info: renda na sérvia, hungria, alemanha, paquistão e afeganistão]]]]

"A maioria não tem nenhuma perspectiva de entrar legalmente; a lista de espera tem milhares de pessoas, mas a Hungria só está admitindo oito por dia para a área de trânsito, enquanto têm seus processos analisados. Mesmo assim, após examinarem o processo, a maioria não conseguirá refúgio", diz Stephane Moissaing, chefe da missão do MSF na Sérvia.

"Nós todos sabemos que isso não é uma crise de refugiados. Dos que estão vindo, 95% são migrantes econômicos, não são perseguidos, mas querem uma vida melhor", diz Zoltan Kovacs, porta-voz do primeiro-ministro húngaro Viktor Orban.

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"Todos querem o estilo de vida europeu, e as fronteiras abertas passam a mensagem de que é isso possível; a Europa não pode assumir a responsabilidade por todos."

Para Robert Molnar, prefeito da cidade fronteiriça de Kubhekhaza, que se opõe a Orban, argumentar que a Hungria não deve receber migrantes econômicos é egoísta.

"Cerca de 10% da população húngara é imigrante econômica, saiu do país em busca de oportunidades –então esses húngaros têm o direito de buscar uma vida melhor e os migrantes que vêm para cá fazer o mesmo não têm?", diz.

Desde 2012, Orban, que chama os migrantes de "cavalo de Tróia do terrorismo", vem implementando uma política anti-imigração. O governo lançou uma campanha com outdoors em que se lia: "Se você vier para a Hungria, não tome os empregos dos húngaros" e "Se você vier para a Hungria, você precisa respeitar nossa cultura".

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Orban baixou leis autorizando o confinamento em centros de detenção dos refugiados que estão com processo em análise. Os centros são contêineres cercados por arame farpado onde refugiados vivem por meses, e foram criticados pelo Acnur e pela UE.

Além disso, Orban criou uma divisão policial chamada Caçadores de Fronteiras e quer recrutar 3.000 pessoas.

A cerca teve grande apoio da população. Imre Csonka, agricultor em Horgos, na fronteira com a Sérvia, lembra-se do dia em que milhares de refugiados e migrantes pisaram em sua plantação de crisântemos, em 2015.

"Eles destruíram todo meu trabalho", diz. "A cerca era necessária, a polícia sozinha não estava dando conta de deter toda essa gente", afirma Csonka enquanto passa o trator em suas terras, a poucos metros da cerca.

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Segundo o governo húngaro, o gasto com a cerca, policiamento, áreas de trânsito e campanhas soma 1 bilhão de euros.

"A Hungria não deveria receber um só migrante", diz o caminhoneiro Attila Szegedi, 45, que fazia parte de uma milícia privada de defesa das fronteiras. "O Islã é incompatível com a nossa cultura", diz.

Para ele, a cerca foi uma boa medida, mas o governo não é duro o suficiente nas punições contra aqueles que entram ilegalmente no país.

"Queremos que as pessoas vejam o que tem ocorrido na Alemanha, na França e na Suécia por causa dos migrantes, há uma onda de crimes, violência contra mulheres", diz.

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"Não negamos que existam problemas de segurança, mas o governo exagera e assusta as pessoas", diz o sociólogo Mark Kékesi, fundador da ONG Migration Aid (ajuda à migração), em Szeged.

"A legitimidade do governo de Orban depende disso, o pensamento do eleitor é: 'eles podem ser corruptos, mas defendem nosso país dessas pessoas que querem roubar nossos empregos e estuprar nossas filhas'."

Para o ativista Tibor Varga, 61, da Eastern Europe Outreach, a crise da migração é complexa e não será resolvida apenas com cercas.

"Pense na seguinte situação: você acolhe em sua casa uma família sem teto de dez pessoas. Como você foi boa e os ajudou, eles chamam outras duas famílias com dez pessoas cada e pedem que você também as acolha", diz ele, que trabalha há sete anos com refugiados na Sérvia.

"O que você vai fazer? Você tem capacidade para ajudar todo esse pessoal? Não existem respostas simples."

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Alguns dias depois do encontro com a Folha na "selva", o paquistanês Sabir tentou cruzar a fronteira pela 12ª vez e foi bem sucedido.

Ele andou durante quatro dias para atravessar a Hungria, sem comer nada, só bebendo água. Foi se orientando pelo GPS no celular, mas, quando acabou a bateria, trocou o Google Maps pelo instinto. Está agora em um campo de refugiados na Áustria. De lá, vai para a França, onde quer morar.

O afegão Hameed também cruzou alguns dias após o encontro com a reportagem, mas foi pego por policiais húngaros. Deportado, voltou para um campo de refugiados em Belgrado e pretende tentar cruzar em breve. Desta vez, pela Croácia.

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