Mais de 15 mil menores brasileiros já cruzaram Darién rumo aos Estados Unidos
Elas enfrentam a travessia da selva entre Colômbia e Panamá ao lado dos pais, em sua maioria haitianos que viviam no Brasil; no caminho, lidam com o abandono e a morte
Elas enfrentam a travessia da selva entre Colômbia e Panamá ao lado dos pais, em sua maioria haitianos que viviam no Brasil; no caminho, lidam com o abandono e a morte
“Brasil?”, pergunta-se aos imigrantes do Haiti acompanhados de filhos pequenos. Suas expressões são de exaustão, mas a chance de um aceno positivo acompanhado de um sorriso no rosto é grande.
São os haitianos que emigraram ao longo da década de 2010, após o grande terremoto daquele ano, construíram suas famílias e tiveram filhos brasileiros. Muitos se veem hoje sem perspectiva e buscam no estreito de Darién, a chamada “selva da morte”, uma rota rumo aos Estados Unidos.
Neste território inóspito entre Colômbia e Panamá –controlado, de um lado, pelo narcotráfico e, de outro, por grupos indígenas–, a mais grave crise migratória das Américas na atualidade transcorre como uma rotina.
Todos os dias, mais de mil pessoas, em média, conseguem concluir a perigosa travessia. Entre elas, crianças e adolescentes brasileiros. Desde 2020, mais de 15,7 mil, a maioria filhos de haitianos, cruzaram a sufocante floresta tropical, em uma caminhada de cerca de 100 km. A contagem, oficial, é reconhecidamente subnotificada.
Não há ligação rodoviária que conecte as Américas do Sul e Central, uma vez que a estrada Panamericana é interrompida justamente por Darién. A maior parte dos migrantes costuma chegar pelo rio Tuqueza e desembarcar das piráguas, canoas com capacidade para carregar em média 15 pessoas que aportam diariamente em localidades indígenas.
Um número desconhecido de vidas se perde ao longo do trajeto.
Enfileirando-se em um corredor estreito entre frágeis construções de madeira da comunidade de Bajo Chiquito, região do povo Emberá-Wounaan, o menino Fiedimio, 3, veste uma camisa com as cores e o nome do Brasil. Mineiro, é filho de haitianos que havia sete anos moravam em Araguari, município vizinho de Uberlândia.
Naquela manhã de terça-feira de uma temporada de seca, com os termômetros acima de 35°C, ele estava no colo da mãe, extenuada, aguardando a triagem do serviço de fronteiras panamenho, o Senafront. Bajo Chiquito é um dos primeiros pontos acessados pelos imigrantes após cruzarem a selva. Foram três dias e três noites dentro da mata.
“O Brasil é o melhor país para viver. O único problema é o salário. Preciso fazer mais dinheiro para ajudar minha família de Porto Príncipe”, diz o pai, Fiednir Demosthen, ao lado do irmão, Michelt, o primeiro da família a chegar ao Brasil, há dez anos, e também pai de um menino brasileiro de 5 anos. “Um dia quero voltar para o Brasil, comprar casa e ficar”, diz Fiednir.
Ao menos 15,7% do PIB do Haiti é composto pelo envio de remessas dos expatriados, segundo o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) –no Brasil, a fatia é de 0,2% do PIB.
Menos de 24 horas depois e a poucos quilômetros de onde estava a família de Fiednir, Mackenson, 31, acariciava seu caçula, o brasileiro Guerlens, de 7 meses, preso ao peito do pai com um sling. Ao lado, a esposa Rudeline, 27, e o também brasileiro Leonardo, 3, cuja primeira língua é o português. “Mas ele parece não querer falar. Está um pouco chateado, cansado.”
Em uma fila com centenas de outros imigrantes, a maioria da América Latina, os pais haitianos que viviam no Brasil fazia nove anos margeavam o rio Tuqueza. Estavam à espera de piráguas que, por US$ 25 (cerca de R$ 125), levam os recém-chegados à Estação de Recepção Migratória de Lajas Blancas. Trata-se de um terreno particular cedido ao governo do Panamá para abrigar imigrantes e onde um novo périplo os aguarda.
Mackenson tinha a quantia suficiente para poder levar a família. Mas, ao seu redor, dezenas de outros sentavam-se no chão de pedras, por vezes machucados de ferimentos feitos na selva, para clamar que algum piragueiro aceitasse levá-los sem custo. O dinheiro havia acabado ou fora roubado por pequenas gangues que atuam no lado panamenho da selva.
“O que leva a gente a vir para cá é a moeda”, diz Mackenson, que na zona leste de São Paulo trabalhava na construção civil. “No Brasil eu tinha minha casa, meu carro. Tinha construído a vida. Mas, com um salário de R$ 1.500, não consigo mandar US$ 100 (R$ 500) para os pais. É triste ter de se desfazer de tudo.”
A família estava em seu 15º dia consecutivo de viagem até Darién. Saíram do terminal de ônibus da Barra Funda, em São Paulo, e foram até Corumbá (MS), na fronteira com a Bolívia. Então, atravessaram para o lado boliviano e continuaram por via terrestre, sempre de ônibus, até chegarem à Colômbia.
Lá, tiveram de pagar US$ 350 (R$ 1.750) por pessoa ao Clã do Golfo, cartel do narcotráfico que controla a porção colombiana de Darién, para ingressar na selva, onde estiveram por três dias. “Me arrependi bastante de ter vindo para cá. Foi o verdadeiro inferno”, relata Mackenson. Apesar disso, já havia decidido seguir na empreitada do “sonho americano”, um termo tão comum no estreito de Darién.
O desespero para conseguir sustentar a família e a desinformação sobre as condições hostis de Darién explicam em partes por que o fluxo não cessa.
A 25 quilômetros por terra de Bajo Chiquito –ou a pelo menos cinco horas de pirágua, numa época do ano em que o baixo nível dos rios dificulta a navegação–, David, 42, busca algum espaço com o mínimo de brisa do lado de fora da pequena barraca que divide com a família na caótica estação de Lajas Blancas.
Poucos dias atrás, estava em Manaus, onde comprava frutas e farinha de tapioca numa feira e as revendia nas ruas. Ele tenta ajudar a mãe idosa que segue no Haiti e criar os três filhos, os brasileiros Joseph Mathias, 13, Rebeca, 4, e Débora, de 1 ano e 9 meses
“O salário não alcança. Quando vendia fruta, ganhava de R$ 2.500 a R$ 3.000 por mês. Com três crianças e a mulher sem trabalho, não dava”, afirma David. Como boa parte dos demais abrigados em Lajas Blancas, ele relata desconfortos intestinais após ingerir as bebidas e comidas do local. Superlotada, a estação migratória abrigava cerca de 1.260 pessoas naquele dia.
David conta não ter como pagar pelo bilhete do ônibus –US$ 40 (R$ 200) por pessoa– que cruza o Panamá pela Panamericana até a fronteira com a Costa Rica.
Há pouco mais de um ano, na véspera do Carnaval brasileiro, um acidente com um desses veículos matou duas crianças brasileiras na província de Chiriquí, a quase 700 quilômetros de Darién: a menina Milena, 2, e o bebê Biden Victor, de 6 meses.
As crianças faziam parte de um grupo de mais de dez haitianos que saíram de Navegantes (SC). Oito deles, incluindo a pequena Milena, eram parentes do motorista de Uber Samuel Emilé, natural de Porto Príncipe e desde 2013 no Brasil. No acidente, ele também perdeu o irmão Julio, 38, e a irmã Gisleine, 42.
Por mensagens, a família se comunicava com Samuel, que não quis emigrar de novo. A decisão de partir rumo aos EUA ocorreu após Julio ser demitido sem justa causa e, assim, passar por dificuldades. “Da noite para o dia, as mensagens deles pararam de chegar. Então fui procurar notícias e descobri sobre o acidente.”
Samuel chegou a ir ao Panamá buscar os parentes que sobreviveram, mas eles decidiram seguir adiante. “O que mais me doeu é que, quando cheguei, estavam já enterrados numa vala comum, como cachorros.”
Longe da selva, outra criança brasileira sobrevivente de Darién passa sua infância nos arredores da capital, Cidade do Panamá. É a menina Delícia Chama, 7. “Delícia” teria sido a única palavra que ela verbalizou, além de “mamãe”, ao ser encontrada sozinha na mata, no fim de 2019.
Não se sabe se a menina, que chegou sem documentos e cuja idade foi estimada por meio de um exame dentário, foi abandonada ou perdeu a mãe na travessia. Suas memórias permitiram conectá-la ao estado do Acre, onde supostamente cresceu, mas nenhum parente foi encontrado.
Delícia acaba de ser naturalizada panamenha com um nome escolhido por ela mesma e que será omitido nesta reportagem para preservá-la. Também foi colocada para adoção.
No mesmo local há outras duas bebês brasileiras, também personagens da crise migratória. No fim de 2023, em uma coincidência que surpreendeu os serviços de infância, as duas meninas, uma filha de pais haitianos, e a outra, de angolanos, chegaram no mesmo dia sem seus familiares a Bajo Chiquito, nos braços de haitianos que disseram tê-las encontrado na selva, sozinhas.
No caso da filha de angolanos, de cerca de um ano, a expectativa da diplomacia brasileira é reuni-la com sua mãe, que vive em São Paulo, assim que possível. A bebê foi retirada do país pelo pai biológico sem autorização e levada para o Darién.
Segundo o Unicef, braço da ONU para a infância, pelo menos 3.300 menores chegaram sozinhos ao fim da travessia de Darién em 2023 –estão nesta contagem aqueles cujos pais ainda estão na mata e em breve devem se reunir com os filhos nas estações migratórias e os que foram abandonados ou perderam a família na floresta.
É o triplo do número registrado em 2020 (1.079) e aproximadamente 50 vezes o observado em 2019 (65), quando o monitoramento passou a ser feito pelo Unicef. Dos mais de 520 mil migrantes que cruzaram a selva da morte em 2023, ao menos 22% eram menores.
“Temos todos os dias identificado de 15 a 18 crianças desacompanhadas ou separadas dos pais”, diz Margarita Sánchez, chefe do escritório do Unicef em Darién, na cidade de Metetí, às margens da rodovia Panamericana.
“Muitas relatam que nunca quiseram partir, sem serem ouvidas pelos pais. Mas carregam um sentimento de esperança, de querer chegar a um lugar e poder estudar, retomar a vida.”