os 500 são outros

Ao desafiar um papado que via como corrupto, Martinho Lutero pôs em marcha a Reforma Protestante, que mudaria o curso da história e daria origem às neopentecostais no Brasil

Análise

Lutero via aristotelismo como ‘prostituta grega’ no cristianismo

Não, Martinho Lutero (1483-1546) não foi um "simples" reformador. Foi um intelectual profundamente imerso nas polêmicas filosóficas e teológicas de seu tempo, assim como seu "ancestral", Agostinho de Hipona (354-430).

Uma dessas controvérsias, talvez uma das mais essenciais, foi aquela ao redor do que acabou por ficar conhecido como a polêmica humanista.

Ela agitou a Europa dos séculos 13 a 17, e Lutero está bem no meio dela. Deita raízes no debate em torno da concepção de natureza humana cristã, que, por sua vez, tem na polêmica da graça entre Agostinho e Pelágio (360-420) sua primeira manifestação.

Mas outro termo, essencial no debate entre Lutero e Erasmo de Roterdã (1466-1536), já está aí presente: "livre-arbítrio" –possivelmente, inventado por Agostinho.

Agostinho foi duro crítico do que em filosofia ficou conhecido como a contaminação do cristianismo pelo estoicismo de Pelágio –para quem todo homem recebia graça suficiente para escapar do pecado original. Era, pois, autônomo na sua vontade passível de "melhoria" moral por si mesmo.

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Para Agostinho, essa ideia era absurda, uma vez que, empiricamente, os homens não escapavam do pecado (todos orgulhosos, mentirosos, inseguros e por aí vai).

Poucos sim. Esses recebiam a graça contingente e eficaz (salvífica), dada de modo inesperado a "predestinados". Esse caráter contingente da graça era justamente para humilhar o orgulho daqueles que se achavam moralmente superiores aos miseráveis pecadores comuns.

Para Agostinho, o orgulho estoico estava presente na teoria pelagiana, e o que faltava ao estoico e a sua pretensa autonomia era ajoelhar e chorar.

Como é sabido, Lutero debaterá com Erasmo, o grande humanista holandês católico, justamente acerca do livre-arbítrio. O texto "Servo Arbítrio" (1525), do alemão, critica a ideia de humanismo presente em Erasmo. E qual é ela?

Em filosofia, é a ideia de que o homem é autônomo moralmente, passível de aperfeiçoamento, e que suas criações culturais e racionais não só atestam isso como alimentam seu infinito processo de aperfeiçoamento. O conceito tem longa credencial filosófica.

Já no século 13 –ainda que sem a terminologia "humanismo", que ganhou identidade no período renascentista--, a filosofia parisiense terá numa das suas estrelas de época, o médico aristotélico Siger de Brabant (1240-1282), um defensor da autonomia racional e moral humana.

Ainda que não negando a necessidade da fé absolutamente, Brabant defenderá a possibilidade de o homem atingir uma certa felicidade a partir do uso do intelecto livre sobre a vontade.

Lembremos que Lutero via a contaminação da cultura cristã europeia pelo aristotelismo como a entrada da "prostituta grega" no cristianismo. Para ele, o humanismo do livre-arbítrio era um erro ontológico, não só teológico ou moral. Para o reformador, o equívoco de Erasmo não era simplesmente um pecado da vaidade, era um mau entendimento de toda a tradição israelita e cristã.

'Tudo é vaidade'

Não à toa, no prefácio de sua tradução alemã do Eclesiastes, Lutero afirma que, ao contrário do que possa parecer, o livro da Bíblia hebraica (que os cristãos chamam de Velho Testamento) não visa afirmar a pura e simples miséria da Criação ("tudo é vaidade, vaidade das vaidades"), mas sustentar que tudo depende da vontade livre de Deus. De novo, a graça surge como conceito contrário à autonomia humana. Por quê?

O erro ontológico dos humanistas era imaginar que seria possível ao homem pós-adâmico colocar-se em relação com Deus (realizando o Bem) sem a intervenção Deste. O pecado de Adão recusara exatamente o caráter de graça da Criação, querendo afirmá-la "sua" de alguma forma. Ao afirmar que a Criação não era graça "de graça", mas "propriedade" humana, Adão e Eva lançaram o homem numa ignorância de Deus.

Para Lutero, sendo Cristo Deus absolutamente, nossa falta de relação com Deus se repetia em nossa falta de relação com Cristo. Essa distância entre nós e Cristo só poderia ser vencida pela intervenção livre Dele (eis o sentido da graça salvífica).

O erro do humanismo era reincidir no erro de Adão, afirmando sua falsa autonomia –cego pelo pecado, afirmava a existência de um livre-arbítrio autônomo, recusando-se a ver a escravidão da vontade humana ao orgulho herdado do erro de Adão, afirmando sua "propriedade" sobre a Criação, e sobre nossa vontade e intelecto, podendo fazer deles o que quiséssemos.

Logo o erro humanista não era mero erro de "cálculo moral", mas erro cognitivo, que tornava o homem cego para o fato de que nossa dependência para com Deus é nossa única salvação e, sendo assim, só a humildade na espera da misericórdia pode falar a nossos corações atormentados pelo orgulho de um intelecto cego.

Só a humildade nos restitui a percepção da graça à nossa volta. O pecado é cegueira, revolta e orgulho, segundo Agostinho. Mas quebrar o "feitiço" do orgulho, só a graça salvífica pode fazê-lo. Sem ela, repetimos, como num sintoma infinito, a miserável aposta do homem em si mesmo.