os 500 são outros

Ao desafiar um papado que via como corrupto, Martinho Lutero pôs em marcha a Reforma Protestante, que mudaria o curso da história e daria origem às neopentecostais no Brasil

Reprodução de vídeo de cultos que prometem 'curas milagrosas' e 'expulsão de demônios'

As crenças

‘Curas milagrosas’ têm apelo em meio a ‘caos’ social, afirma especialista

"Tira, Senhor, deste homem, tira desta mulher o cisto, o tumor, o câncer, faz o milagre na vida deles", diz de olhos fechados o pastor, quase não parando para tomar fôlego entre as frases. Cerca de 20 fiéis o acompanham dos bancos, murmurando "eu creio, Senhor", mãos erguidas em oração.

Cenas assim se repetiram diversas vezes ao longo da semana, num grande templo neopentecostal do interior de São Paulo.

Em dado momento, o pastor pergunta se alguém quer compartilhar algum testemunho sobre a ação divina em sua vida. Conta que uma criança com câncer que fora desenganada pelos médicos se recuperava após uma fiel orar por ela. "E olha que a família nem é da igreja, foi a vizinha que pediu a Deus por ela."

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A crença em curas milagrosas é um traço importante das denominações pentecostais e neopentecostais, que correspondem à maior parte dos evangélicos do Brasil. Representado por grupos tão diferentes quanto Assembleia de Deus e Renascer em Cristo, o movimento parte do princípio de que os grandes sinais da presença de Deus relatados a respeito dos primeiros cristãos no Novo Testamento estão disponíveis aos crentes do século 21, desde que eles coloquem sua fé em Cristo e peçam a ajuda do Espírito Santo.

Daí a designação geral dessas igrejas –afinal, teria sido na festa de Pentecostes (50 dias após a Páscoa judaica) que os discípulos de Jesus receberam o Espírito Santo em forma de línguas de fogo, segundo o livro bíblico dos Atos dos Apóstolos. Essa dádiva espiritual teria sido acompanhada da capacidade de realizar curas, expulsar demônios e falar em línguas estranhas, atributos que os membros das igrejas modernas afirmam reavivar.

E não apenas no Brasil –o pentecostalismo tem alcance global e segue padrões parecidos até no longínquo Quirguistão (Ásia Central). Cá e lá, a sensação de que curas sobrenaturais estão prestes a acontecer vem quando a oração em voz alta, coletiva e extática, atinge uma espécie de clímax, relata Mathijs Pelkmans, professor de antropologia da London School of Economics.

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Pelkmans conta ter presenciado o momento no qual Venera, uma moça na casa dos 20 anos que fora muda a vida toda, pronunciou a palavra "Jesus" em culto da quirguistanesa Igreja do Evangelho Completo de Jesus Cristo –ou foi o que pareceu aos olhos dos fiéis naquele momento.

Meses depois, membros da igreja contaram ao antropólogo que Venera continuava afônico. Para o professor, os dons de cura do pentecostalismo têm um apelo especial em contextos de confusão institucional e perda de tradições, como o Quirguistão pós-soviético.

Segundo Candy Gunther Brown, do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade de Indiana (EUA), muitas igrejas pentecostais têm uma relação ambivalente com o registro das curas. Costumam coletar testemunhos sobre os milagres em seus sites e até editar livros com eles, mas se recusam a fornecer informações médicas detalhadas a pesquisadores interessados em estudar o fenômeno.

Para ela, além do aspecto religioso, as curas "pelo Espírito Santo" envolvem elementos sensoriais (a imposição das mãos do pastor, a oração repetitiva etc.) que têm entrada com pessoas que se sentem abandonadas pela relativa impessoalidade da medicina moderna.