A voz do morro
As comunidades são parte do cenário do Rio de Janeiro. Surgiram com as primeiras tentativas de expulsar a população mais pobre de áreas nobres da cidade e hoje se espalham por toda a cidade. Conheça a história das favelas do Rio
Desenhos: Allan Rabelo
Roteiro: Bruno Maron
Pesquisa: Bruna Fantti
Produção: Eduardo Asta
Desenvolvedor: Lucas Zimmermann
Século 19. O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravatura. Os milhares de ex-escravos que ganharam a liberdade tiveram de encontrar uma nova forma para sobreviver e buscar espaço nas cidades. Um movimento que transformou e ainda influencia a organização do Rio de Janeiro.
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A escravatura é abolida em 1888. Sem casa e dinheiro, ex-escravos ocupam o Rio, milhares deles vindos das lavouras do interior do Estado.
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Para essa população, a única opção de moradia eram os cortiços, tipo de habitação bastante precária que aglutinava famílias inteiras em um espaço muito pequeno.
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Para tentar remover os vestígios do Brasil colonial, o governo inicia um processo de modernização após a Proclamação da República, em 1889. Cortiços são demolidos.
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Alguns célebres, como o Cabeça de Porco, foram abaixo, deixando 2.000 desabrigados. Em 1893, esses moradores se mudaram para os morros da Providência e de Santo Antônio e formaram as primeiras favelas, erguendo casebres com restos da demolição.
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Em 1897, acaba a Guerra de Canudos, um dos conflitos mais sangrentos da história do Brasil. Um enorme contingente de ex-militares fica sem salário e sem emprego.
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Após terem feito uma série de protestos por pagamentos prometidos e não cumpridos, esses militares ocupam também o morro da Providência, que já abrigava uma grande quantidade de ex-escravos.
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Morro da Providência
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Quartel General da polícia, 1900
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Ao chegarem à cidade do Rio, em 1897, esses soldados passaram a se referir ao morro da Providência como "morro da favela". A favela é uma vegetação que recobria um morro nos arredores da cidade de Canudos.
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ParaCnidoscolus quercifolius
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A crise habitacional ocasionada pela demolição dos cortiços se intensifica. Um número cada vez maior de desabrigados gera uma ocupação substancial no morro da Providência.
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Demolir! Construir! Modernizar! O Rio de Janeiro do século 20 segue a toada dos grandes centros urbanos do mundo. Em 1903, o prefeito Pereira Passos surge como um trator em seu projeto conhecido como bota-abaixo, abrindo avenidas e demolindo casas.
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As favelas se tornam alternativa diante da diminuição da oferta de moradia e da alta dos aluguéis. São descritas pela mídia como lugares anti-higiênicos e desumanizados.
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Escritores como João do Rio, no entanto, rompiam essa visão estereotipada e exaltavam a riqueza cultural da favela, como em sua crônica de 1911 sobre o “celebrado morro” de Santo Antônio.
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A população pobre, que precisava morar perto do trabalho por conta da limitação dos transportes públicos, passa a ocupar as favelas no centro e na zona sul, únicas regiões com trens e bondes.
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Castelo
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Morro de Santo Antônio
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Morro da Providência
A cartografia do Rio de Janeiro aos poucos vai mudando sua face. Surgem favelas míticas, como a Mangueira.
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O Governo Vargas inicia, em 1937, uma época beligerante que marcaria para sempre os habitantes das favelas cariocas. Os moradores dessas áreas se tornam alvo de remoções. Programas de transferência e alojamento provisório vão pipocando pela cidade, criando animosidade entre as autoridades e os removidos
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Alguns projetos, como os Parques Proletários Provisórios, na década de 40, e a Cruzada de São Sebastião, nos anos 50, abrigam moradores das favelas; 17 delas, na Lagoa e no centro, foram destruídas para formar parques proletários.
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A Cruzada São Sebastião, liderada por dom Helder Câmara, cria em 1955 um conjunto habitacional no Leblon, a primeira experiência de alojar removidos perto de onde viviam. O modelo reforçava a ideia de comunidade, fundamental para a afirmação social dos moradores.
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Somos uma comunidade!
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A década de 60 foi marcada pela consolidação de um movimento antifavela, liderado por Carlos Lacerda, primeiro governador eleito do Estado da Guanabara.
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Resultado: 27 favelas destruídas, com a remoção de mais de 40 mil pessoas para outras áreas da cidade e novos conjuntos habitacionais erguidos.
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O objetivo dessas ações era ocupar o subúrbio com indústrias e habitações para os pobres.
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O regime militar foi palco do ápice dessa política de remoções, que encontrava resistência das faverlas, cujas principais lideranças foram cooptadas ou subjugadas.
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A partir de 1975, ocorre o esgotamento da política de remoção, principalmente pelos problemas financeiros do BNH, o órgão financiador dos programas habitacionais. O abandono do poder público favoreceria a prática clientelista entre habitantes das favelas e políticos.
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Toda proteção aos que votarem em mim.
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Chegam os anos 80 e, com eles, a força avassaladora do tráfico de drogas, o primeiro sintoma grave do vácuo deixado pela ausência de poder público nas favelas.
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Traficantes com formação adquirida a partir da convivência com militantes políticos formam as bases do Comando Vermelho, facção criminosa que dominou sozinha o tráfico até os anos 90, com complexas rotas internacionais, armamento pesado e fugas cinematográficas.
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Escadinha
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Rala peito!!
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No início da década de 90, os cariocas já tinham se acostumado com expressões como "bala perdida" e "área de risco", uma nomenclatura que escancarava a questão da violência urbana, invariavelmente identificada como o principal problema causado pelas favelas.
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…uma bala perdida de fuzil AR 15…
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Isso é armamento do Exército israelense!
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Lucros astronômicos do tráfico de drogas geram um levante de facções rivais como o Terceiro Comando e Amigos dos Amigos.
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Explodem as guerras. Muito sangue é derramado.
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O tráfico dominava as favelas, mas as remoções pareciam ter sido eliminadas do vocabulário da cidade. Começa a se consolidar o processo de urbanização das favelas.
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Antes
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Em 1995, surge o programa Favela-Bairro, na prefeitura de César Maia, com grande financiamento estrangeiro.
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Depois
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No século 21, no entanto, voltam as políticas de remoção, justificadas pela presença de grandes eventos esportivos sediados no Rio.
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Em 2009, para conter a expansão das favelas, o governo anuncia a construção de muros em 11 comunidades da zona sul. A medida gera críticas, como as do presidente Federação das Associações de Moradores de Favelas do Estado do Rio, Rossino de Castro.
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Nós somos contra.
Não precisamos de muros.
O que nós precisamos é de políticas públicas e não que transformem a favela em um gueto
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Um ano antes, em 2008, as favelas já haviam vivido a implantação de um novo projeto de segurança pública: as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora).
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...e a perseguição dos acusados continua com a ajuda do Exército...
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“Nego” tá quebrando a firma da vagabundagem...
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Não tá sobrando nenhum pra contar história
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Um projeto que levou à expulsão -ainda que momentânea- do tráfico.
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...E à redescoberta dos morros por moradores do asfalto e turistas.
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Os bailes funk, a partir dos anos 90, tornaram-se uma das principais expressões culturais das favelas, unindo morro e asfalto.
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Mas passaram a rarear nas favelas com UPPs, já que dependiam de autorização dos comandantes militares locais, quase sempre negada.
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A favela se torna 'hype".
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Algumas ganham teleféricos, albergues e festas que aglutinam moradores e turistas.
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Points como o mirante do Arvrão, no Vidigal, são disputados graças ao visual deslumbrante.
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Mas a realidade dos moradores não é festiva. Em julho de 2013, na Rocinha, a maior favela carioca, com cerca de 70 mil moradores, o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza desaparece, dando origem a uma série de protestos populares. Segundo o Ministério Público, ele foi torturado e morto por policiais da UPP.
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O caso, amplamente divulgado, mostrou a força de mobilização dos moradores da favela, articulados em várias instâncias: ações judiciais, associação de moradores, meios acadêmicos e imprensa.
Estamos na era da favela.com, onde todo e qualquer tipo de abuso ou repressão policial é denunciado em blogs, redes sociais e aplicativos, como o Whatsapp.
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“Com mais de um século de história, quase 1,5 milhão de moradores, berço de algumas das mais marcantes criações culturais do rio, como o samba,
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a escola de samba, o bloco de Carnaval, a capoeira, o pagode de fundo de quintal,
o pagode de clube e o bailes funk,
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... as favelas mostram que cresceram muito além da ideia de áreas segregadas.”*
* Alba Zaluar, no livro "Um Século de Favela"
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