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A política externa do regime militar

Matias Spektor Colunista da Folha

O golpe ocorreu em meio à mais intensa mudança de posição do Brasil no sistema internacional.

Entre 1955 e 1960, o Produto Interno Bruto cresceu 8,1% ao ano. Entre 1964 e 1971, os industrializados passaram de 5% para 31% da pauta de exportações, enquanto o café caiu de 55% para 13%.

O país deixou de ser uma economia rural para virar uma sociedade urbana. Pela primeira vez, o Brasil entrou para a categoria de país emergente.

"Como um gigante adormecido, o Brasil está acordando para um período de expansão quase sem precedente", afirmava "The Times" de Londres. "Poderemos vê-lo se tornar o Japão do Terceiro Mundo."

Na política externa, o regime militar patrocinou a luta anticomunista. Colaborou com uma intervenção na República Dominicana e restaurou laços com o Fundo Monetário Internacional. Operou em países como Argentina, Bolívia, Chile e Uruguai.

Juracy Magalhães, embaixador do regime em Washington, proferiu a frase: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

O regime contou para isso com o apoio dos Estados Unidos. Quando a repressão apertou, o embaixador americano no Brasil, William M. Rountree, e seu adido militar, o coronel Arthur Moura, alentaram a atividade nos porões.

No entanto, com o tempo, os Estados Unidos se tornaram um problema para os militares brasileiros.

O poder econômico norte-americano, que num primeiro momento se beneficiara de acesso privilegiado à Esplanada dos Ministérios, passou a se ressentir da política industrial protecionista.

Em temas diplomáticos, a relação também esfriou. Os militares brasileiros no comando acreditaram estar recebendo tratamento de segunda classe: os investimentos eram menores do que o esperado, as condições, árduas, e a atitude da Casa Branca, imperial. E o regime não estava disposto a coordenar com os americanos cada passo de sua própria Guerra Fria na América do Sul.

Esses problemas se exacerbaram quando o Congresso dos Estados Unidos começou a denunciar o uso de tortura. E tudo desandou a partir de 1976, quando o candidato presidencial Jimmy Carter afirmou que o apoio norte-americano ao Brasil ditatorial “é um exemplo da pior faceta de nossa política externa... Um gratuito tapa no rosto [do povo] americano.”

Nos governos dos generais Médici e Geisel, as relações entre Brasil e Estados Unidos, ao invés de melhorar, pioraram, chegando a seu ponto mais baixo.

Os Estados Unidos deixaram de ser a principal fonte de apoio externo à ditadura para transformar-se em ameaça.

O regime respondeu cerrando fileiras.

Quando Carter veio ao Brasil para pressionar o governo por mais abertura política, os generais receberam apoio de lideranças de oposição, como Ulysses Guimarães, sindicatos, imprensa e parte da oposição, que denunciaram a prepotência norte-americana.

Na política externa, o regime acelerou a diversificação de países consumidores, provedores e investidores –-uma alavanca contra o magnetismo da economia norte-americana.

Os militares também patrocinaram coalizões com outros países em desenvolvimento e assumiram liderança no chamado embate Norte-Sul. O regime se afastou de Israel no Oriente Médio para se acercar dos árabes. Aproximou-se dos novos países independentes da África, mesmo aqueles que eram marxistas e recebiam apoio econômico e militar de Cuba.

A ditadura abriu embaixadas em regiões que antes ignorava e suas empresas estatais passaram a fazer investimentos fora do país. O Banco do Brasil abriu as primeiras agências na América do Sul, ao passo que a Petrobras foi para a África.

O regime também patrocinou um ambicioso programa nuclear. Ao lançá-lo, o general Costa e Silva, então presidente da República, afirmou: “Nada nos impede de fazer pesquisa e mesmo artefatos que posam explodir. Não vamos chamar de bomba, mas de artefato que pode explodir”.

Depois de gastar uma fortuna na tentativa de criar um parque industrial nuclear com tecnologia da Alemanha, o regime levou parte de suas atividades para a clandestinidade. Comprou peças no mercado negro, urânio altamente enriquecido da China e desenhou um míssil balístico. No processo, adquiriu capacidade para enriquecer urânio. O custo foi o isolamento –em temas de não proliferação, o país passou a ser visto como pária.

Em vez de aumentar a capacidade nacional de barganha, o regime militar debilitou-a.

Entre 1973 e 1979, a dívida externa do país quadruplicou, passando de US$ 12 bilhões para quase US$ 50 bilhões.

O país ainda sofreu sanções comerciais e seus representantes passaram a ter de suplicar ajuda a instituições financeiras internacionais. Os ministros da Fazenda da época tiveram de se acostumar à sala de espera do Secretário do Tesouro dos Estados Unidos.

O Brasil da ditadura ficou mais rico, sem dúvida alguma. Contudo, ao sair do poder, os militares deixaram o país numa posição internacional mais fraca, dependente e injusta do que era possível imaginar em 1964.

A cultura, da resistência ao showbiz

Marcos Augusto Gonçalves Colunista da Folha

Em dezembro de 1964, oito meses depois da queda do presidente João Goulart, estreou no Rio de Janeiro o musical "Opinião".

Dirigido por Augusto Boal, o espetáculo era assinado por Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes. Levava ao palco Zé Keti, João do Vale e Nara Leão para protestar contra a ditadura que se instalava.

O "Opinião" era um típico produto da esquerda cultural da época, que orbitava em torno do Partido Comunista e, antes de 1964, animara-se com a perspectiva de consolidação de um regime "nacional-popular" no país. Combatia o imperialismo norte-americano e valorizava o que seria a "autêntica" cultura popular brasileira.

Nos anos que antecederam o golpe, artistas dessa vertente reuniram-se no Centro Popular de Cultura, ligado à União Nacional dos Estudantes, para investir num tipo de produção politizada e didática, voltada para a "conscientização" da sociedade, em especial das classes trabalhadoras.

Derrotada pelo golpe, a esquerda cultural ritualizava no espetáculo a "resistência" ao regime militar e encenava –ao reunir dois compositores de origem popular e uma cantora da zona sul carioca– uma sugestiva aliança entre o artista de classe média e o "povo".

Este, entretanto, não compareceu. O teatro, situado no então moderno shopping center da rua Siqueira Campos, em Copacabana, recebia um público esclarecido –e já convertido– de intelectuais, artistas e estudantes. O mesmo perfil de classe média radicalizada que, pouco depois, apareceria nos festivais de canção popular e na famosa "Passeata dos Cem Mil", em 1968.

A relativa hegemonia do projeto "nacional-popular" não tardaria, porém, a ser problematizada por um novo "movimento" –que ganharia o nome de tropicalismo. As canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil, a instalação "Tropicália", de Hélio Oiticica, o filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, e a montagem de "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, pelo Teatro Oficina, representavam a emergência de um outro modelo de sensibilidade.

De maneira alegórica, estridente, anárquica, essas obras captavam as mudanças em curso no país: a crise do populismo, a impotência do intelectual militante, o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e os disparates de uma sociedade que se debatia entre o arcaico e o moderno.

No final de 1968, o regime militar editou o Ato Institucional nº 5 e inaugurou um período sombrio de repressão e perseguições.

Em tempos de "milagre econômico", o país entrou na era das comunicações por satélite e ganhou uma rede de TV hegemônica, a Globo, que unia os lares de norte a sul.

Foram os anos do "sufoco" e do "vazio", da contracultura, da literatura alegórica, da "poesia marginal".

Aos poucos, com as perspectivas da abertura "lenta, gradual e segura", novas estratégias foram esboçadas, tanto do lado da ditadura quanto dos produtores culturais.

Em que pese o braço repressivo e o anticomunismo atávico do governo militar, suas políticas proativas encontravam pontos de afinidade com a esquerda –em especial na defesa do nacionalismo e do Estado como patrocinador.

O surgimento de agências como a Embrafilme e a Funarte selou um novo tipo de relação –problemática, mas bastante efetiva– entre regime e cultura. Paralelamente, a expansão do mercado e do circuito comercial –TV, indústria fonográfica, "teatrão", editoras etc.– abria novos espaços para artistas e intelectuais.

Nesse novo cenário, muitos dos artífices do teatro realista engajado dos anos 1950 e 1960 migraram para a teledramaturgia da Globo, que ajudaram a formatar.

À sombra do Estado ou em busca do mercado, alguns deles foram acusados, pelos mais radicais, de "adesão" e "cooptação".

Em linhas gerais, consagrou-se nessa época uma espécie de "nacional-popular" genérico –casamento de "Dona Flor" com o "O Bem Amado"– no qual a potência política se diluiu em fórmulas digeríveis pelo grande público e pelo "sistema".

Não por acaso, quando o presidente José Sarney lançou a Nova República, alguns dos expoentes da antiga esquerda cultural foram convocados para a formulação das políticas culturais. Na realidade, mesmo que não oficialmente, eles já estavam, de certa forma, no poder.

Imprensa apoiou ditadura antes de ajudar a derrubá-la

Oscar Pilagallo Especial para a Folha

Com mais ou menos intensidade, a grande imprensa brasileira apoiou o golpe de 64. Depois de um período de entusiasmo com o novo governo, os jornais –uns cedo, outros tarde– passaram a criticar a ditadura e, após duas décadas, nos estertores do regime, tiveram papel relevante na redemocratização.

A unanimidade contra o presidente João Goulart foi construída ao longo de seu governo, à medida que cresciam o radicalismo e a aproximação com setores da esquerda. Em setembro de 1961, no conturbado episódio de sua posse, que marcou o início da articulação golpista, a imprensa estava dividida.

Vários jornais se declararam contra o veto militar ao vice de Jânio, que renunciara. Os Diários Associados, com jornais espalhados pelo país, posicionaram-se a favor da posse. No Rio, os dois principais veículos, "Correio da Manhã" e "Jornal do Brasil", também defenderam a legalidade. Foi essa também a linha editorial da Folha.

Dois jornais advogaram que Jango não assumisse: "O Globo", no Rio, e "O Estado de S. Paulo", este com o agravante de não aceitar nem ao menos a solução parlamentarista, costurada para contornar o impasse.

Mesmo os veículos que haviam defendido a posse de Jango, no entanto, passaram a criticar seu governo.

No final de 1963/início de 1964, os jornais haviam convergido para uma oposição que endossava a tese da deposição do presidente. A justificativa era que ele próprio estaria caminhando para um golpe de esquerda ou armando uma manobra continuísta.

Estabelecido o viés geral, a variável ficou por conta do grau de envolvimento de cada veículo. Alguns tiveram papel periférico, como a Folha, com limitado peso editorial na época, e o "Jornal do Brasil", o último dos grandes jornais a romper com Jango.

Outros, como o "Estado" e a cadeia Diários Associados, foram protagonistas do golpe, devido ao envolvimento de seus dirigentes com os conspiradores.

Só um jornal esteve ao lado de Jango: a "Última Hora". Criado pelo repórter Samuel Wainer no início dos anos 50, a pedido de Vargas e com apoio financeiro do governo, o jornal, dirigido a operários e à classe média baixa, defendeu até o fim a herança política de seu padrinho.

A partir de abril de 1964, a mídia e os militares tiveram um período de lua de mel, que não foi interrompido mesmo quando ficou claro que a ditadura não seria tão breve quanto fora previsto.

O primeiro a enfrentar o regime foi o "Correio da Manhã". Ainda em 1964, o jornal, que publicara dois violentos editoriais defendendo a saída de Jango enquanto o golpe estava em andamento, denunciou torturas numa série de reportagens. Foi o começo do fim do jornal, que fechou em 1974.

O restante da imprensa, apesar de ressalvas pontuais contra abusos de poder e cassações, continuou apoiando a ditadura, sobretudo em sua diretriz econômica liberal.

A reação à censura, entre fins dos anos 60 e meados dos anos 70, se revelou um divisor de águas. Alguns jornais, como a Folha, acatavam as orientações dos censores, comunicadas por telex ou telefone, praticando a autocensura. Outros, como o "Estado", desafiavam as ordens, o que exigia a presença de censores na Redação, para impedir que o material vetado fosse publicado. O jornal denunciava a censura editando trechos de poesias no espaço aberto pela ação da censura.

Um dos episódios mais polêmicos da relação entre mídia e ditadura foi a guinada editorial da "Folha da Tarde", da mesma empresa que edita a Folha. A partir de 1969, durante a fase mais dura do regime, a "Folha da Tarde" –até então comandada por jornalistas ligados à esquerda armada– foi entregue a profissionais associados à polícia e chegou a cooperar com as forças da repressão, endossando versões dos órgãos de segurança para esconder torturas e assassinatos de presos políticos.

A empresa Folha da Manhã foi também acusada de emprestar veículos para órgãos da repressão. Se isso ocorreu, não é possível dizer que a prática foi autorizada pela direção da empresa.

Em meados dos 70, a Folha acreditou no projeto de abertura e fez uma reforma editorial que deu voz à sociedade civil, franqueando suas páginas a intelectuais de oposição.

Em fins de 1983, foi o primeiro jornal a encampar a embrionária campanha pelas Diretas Já, que, embora não tenha passado no Congresso Nacional, contribuiu para o fim da ditadura.