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Série ‘descolombianiza’ a história recente da Colômbia

Texto por: SYLVIA COLOMBO EM BUENOS AIRES 06/09

A tentativa de transformar a história do Cartel de Medellín em entretenimento acessível para audiências de norte a sul do continente levou os criadores de "Narcos" a tomarem decisões que descaracterizam a trama histórica, além de reforçarem as caricaturas e estereótipos por meio dos quais os norte-americanos veem a América Latina.

Não me refiro a liberdades poéticas como a inclusão de personagens e subtramas que não existiram na vida real, isso é aceitável e até desejável no jogo da ficção.

Vive o protagonista, Steve Murphy, agente da DEA (Drug Enforcement Administration) responsável pela caçada ao narcotraficante Pablo Escobar

O mais grave problema de "Narcos" é a adoção de um ponto-de-vista norte-americano que, desde o princípio, coloca o país do norte como o Bem --a história é narrada por um agente fictício da DEA (Drug Enforcement Agency)-- contra o Mal, no caso o narcotráfico, que segundo essa perspectiva surge como algo natural e típico da América Latina.

A narração dos fatos pelo personagem Steve Murphy (Boyd Holbrook) faz com que sejamos forçados a entrar na história pelas mãos do bom moço loiro e educado prestes a desembarcar num mundo "selvagem". Fica marcado de cara o caminho que seguiremos. Ele nos conta, por exemplo, que o general Pinochet foi um cara legal, afinal impediu que o narcotráfico se espalhasse pelo Chile. Não é?

A escolha da abordagem inicial é essencial para a interpretação de uma história complexa em que o crime deve ser entendido dentro de um cenário em que há também questões políticas, econômicas e sociais. Na colombiana "Escobar, el Patrón de Mal", produzida pela TV Caracol e fenômeno de audiência nos países de língua hispânica entre 2009 e 2012, os primeiros capítulos são dedicados a mostrar a infância de Escobar numa favela de Envigado (Medellín).

Interpreta o primo de Pablo Escobar (Wagner Moura) e braço direito Gustavo Gaviria

Humanizando o personagem, mas sem de nenhuma maneira o justificar, oferece uma ideia muito melhor do contexto que deu origem ao terrível criminoso. Mas o pior mesmo é a roupagem exótica que se dá à Colômbia de um modo geral, provavelmente de olho na venda do produto a plateias de outros continentes e no impulso ao turismo local.

Num dado momento, Pablo Escobar está pensativo, subindo a escadaria do Congresso colombiano, e a voz do narrador manda essa: "Há uma razão pela qual o realismo mágico nasceu na Colômbia, é um país em que os sonhos se confundem com a realidade e onde as pessoas, em suas mentes, voam tão alto quanto Ícaro". O uso de "realismo mágico" assim, de forma tão rasa, para explicar uma certa "excentricidade" colombiana faria, certamente, com que Gabriel García Márquez (1927-2014) se revirasse na tumba. Tomara que não tenha Netflix onde quer que ele esteja.

Se por um lado há uma celebração da Colômbia exótica, há uma "descolombianização" de todo o resto. Não me incomoda tanto que Escobar seja vivido por um brasileiro (Wagner Moura). Muito menos que seu sotaque seja ou não carregado (ninguém fala absolutamente sem sotaque, a não ser que seja educado de forma bilíngue desde cedo). Também há chilenos e norte-americanos no elenco e essa participação variada de atores bem dirigidos é um ponto positivo da série. Mas isso não era motivo para minimizar tanto os colombianos.

Atores que foram estrelas na minissérie da Caracol receberam um prêmio de consolação e aparecem como meros coadjuvantes em "Narcos". É o caso do excelente Christian Tappán, que no original interpreta Gonzalo Gaviria, primo e braço-direito de Escobar em "El Patrón del Mal". Com a diminuição da participação deles, perde-se todo o glossário e o falar típicos dos narcotraficantes e da região naquela época.

Joanna vive a enfermeira Connie Murphy, esposa de Steve Murphy, um agente da polícia antidrogas interpretado por Boyd Holbrook

A necessidade de "descolombianizar" a trama também levou a que alguns dramas de personagens reais não fossem bem explicados, fazendo com que seu papel nos acontecimentos praticamente sumisse. É o caso do diretor do jornal "El Espectador", Guillermo Cano, um dos principais antagonistas de Escobar e um dos únicos a apontar o dedo contra o criminoso por muitos anos, enquanto a maioria dos colombianos, amedrontada, estava muda. Pois Cano é apenas mencionado na atração. E seu assassinato a mando do cartel, em 1986, é mostrado de forma fugaz e burocrática.

Ainda nesse pacote da "descolombianização", desapareceu o conflito Medellín x Bogotá, que é fundamental para entender quem foi Escobar. O líder narco era muito popular em sua terra-natal, mas não só porque distribuía dinheiro aos pobres, como "Narcos" mostra. Os habitantes de Medellín se identificavam com sua postura política de confronto com a elite bogotana. Isso poderia ter sido melhor explorado, por exemplo, na passagem em que se relata o sequestro coletivo de personalidades da sociedade, entre elas o de Francisco Santos, dono do jornal "El Tiempo". Fala-se dele muito rapidamente e nem se diz que ele viraria vice de Alvaro Uribe e que é primo do atual presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos.

Portanto, a chance de trazer a trama para discutir questões de hoje tampouco foi utilizada.

Com relação a Wagner Moura, como disse acima, não me incomodou nem um pouco o sotaque, até vejo grande esforço na entonação e na pronúncia e controle total da gramática. O que me incomodou mesmo é que seu Pablo Escobar quase não ri e faz poucas piadas. O contrário do que dizem os relatos de quem o conheceu. Como atestam as próprias imagens verdadeiras do bandido exibidas na minissérie, Escobar era um homem divertido e que encantava as pessoas com quem convivia e a quem chefiava.

É provável que tenha havido temor de romantizar um personagem tão cruel, responsável pela época mais sangrenta da Colômbia. De fato, ali sempre há grande debate toda vez que se interpreta Escobar em um filme, um programa ou um livro. Muitos colombianos creem que sequer se deva voltar a falar dele, para não correr o risco de retratá-lo como herói ou glamourizar o crime, tamanho o carisma do monstruoso personagem real. Sou da opinião de que essas obras precisam ser feitas, para que se entenda razão do fascínio que esse tipo de figura suscita.

Falta um pouco mais de coragem a "Narcos" para propor de fato esse debate.