Casas abandonadas em um bairro de Detroit - Lalo de Almeida/Folhapress

Os americanosOs anos Trump

Dias 5 e 6

‘Eu não votarei em qualquer democrata em 2020. É Bernie’

Marina Dias e Lalo de Almeida

Detroit (Michigan)Dirigimos pouco mais de uma hora de Brighton até Detroit, maior município de Michigan.

Apesar de o pico da crise na cidade do automóvel ter sido há mais de dez anos, ainda é fácil encontrar quarteirões inteiros de casas abandonadas e comércio falido, que refletem um cenário triste e decadente.

No alto, casas abandonadas em bairro de Detroit, no estado de Michigan; acima, antiga fábrica da Packard Motor Car Company - Lalo de Almeida/Folhapress

Mas bem perto dali também é possível ver o esforço da revitalização que começou em 2014, com a ocupação de áreas centrais por jovens que compraram e reformaram construções que caíam aos pedaços.

No bairro histórico de Corktown, por exemplo, bares e restaurantes descolados se enfileiram numa mesma rua, convidando visitantes a experimentarem de costelinha com batatas a doces veganos sem glúten.

Com ruas movimentadas, as pessoas passeiam mais à vontade entre lojas e galerias de arte que começam a dar nova vida à cidade que abriga muitos jovens e negros progressistas.

Pré-candidato à Casa Branca e ligado à ala mais à esquerda dos democratas, Bernie Sanders sabia que Detroit seria um destino estratégico para sua campanha. No dia seguinte à nossa chegada, em 27 de outubro, ele encheu de apoiadores o ginásio de esportes de uma escola pública para um comício no centro da cidade.

A decoração era modesta. Arquibancadas de madeira e a parede que fazia fundo ao palco eram apoio para um banner, algumas faixas e bandeiras dos Estados Unidos.

Apoiadores de Bernie Sanders aguardam início de comício do pré-candidato em escola em Detroit - Lalo de Almeida/Folhapress

O visual de campanha ficou por conta do placar eletrônico, onde lia-se 2020, e das plaquinhas azuis e brancas que os eleitores sacudiam energeticamente. Ainda faltavam três horas para Sanders subir ao palanque, mas centenas de pessoas já se amontoavam enquanto curtiam a trilha sonora, um destaque dos eventos do democrata.

“I’m Coming Out”, clássico na voz de Diana Ross, tocou pelo menos quatro vezes antes do show principal. Ao vivo, Jack White, artista local que se tornou mundialmente conhecido com a banda de rock White Stripes, transformou a tarde de domingo numa animada noite de sábado.

“É o nosso primeiro comício. Não sou muito envolvido com política, mas acredito em quem fala a verdade. E Bernie fala a verdade”, afirmou o guitarrista entre uma música e outra.

Aos 78, o senador por Vermont é um dos nomes que mais animam os eleitores democratas no Cinturão da Ferrugem.

Simpatizantes assistem ao discurso do pré-candidato à nomeação democrata Bernie Sanders em escola pública em Michigan - Lalo de Almeida/Folhapress

Eles respondem de pronto quando confrontados com as principais críticas que fazem a Sanders: a idade avançada e a insistência no discurso radical de esquerda em um país cada vez mais polarizado.

“Vão falar sobre a idade do Bernie para sempre, mas olha essa agenda, me deixa exausta e tenho menos da metade da idade dele. Bernie está em forma e é literalmente do povo. É o cara para vencer a eleição”, afirma Jennifer Toth, 34.

Vinte e três dias antes, o senador tinha sofrido um ataque cardíaco, mas voltou logo a campo após uma cirurgia.

Alternando entre a segunda e a terceira posição nas pesquisas, atrás do ex-vice-presidente Joe Biden e da senadora Elizabeth Warren, ele sabe que, se quiser concorrer contra Trump, precisa conquistar os votos de negros e de jovens.

Os negros representaram 24% dos eleitores nas primárias democratas em 2016 e somam 79% dos 670 mil habitantes de Detroit. No comício daquele domingo, no entanto, a maioria dos que esperavam por Sanders era branca.

Uma das exceções era Ryan Williams. Ele sabe que é o eleitor preferencial do senador –e também o pesadelo dos demais democratas.

Negro de 32 anos, Williams diz ter estudado o programa de governo dos principais pré-candidatos do partido e afirma que o de Sanders é o mais detalhado e compreensível.

“Ele se preocupa genuinamente com o povo. Eu confio nas pessoas baseado no caráter que elas mostram, e Bernie nunca mudou de lado, nunca mudou de ideias. Você tem que confiar em alguém assim.”

O jovem já havia feito campanha em 2016 para o senador que, apesar de concorrer à nomeação democrata, é um político independente, sem filiação ao partido. Na disputa interna de três anos atrás, Sanders foi derrotado por Hillary, no que parece ter sido o ensaio de Williams para 2020.

Se o escolhido nas primárias não for seu favorito, Williams alerta: nada o fará sair de casa no dia da eleição.

“Não votarei em qualquer democrata em 2020, assim como não votei em Hillary em 2016. É Bernie, e não tem outro jeito.”

Williams é a alegoria perfeita do que aconteceu em grandes cidades de maioria negra e progressista do Cinturão da Ferrugem, como Detroit.

Nesses casos, eleitores democratas não mudaram necessariamente de lado ao escolher Trump, como ocorreu em vários subúrbios e áreas rurais da região há três anos.

“O que aconteceu é que pessoas como eu não apareceram para votar. Nós avisamos que não gostávamos da Hillary, mas eles pressionaram, colocaram ela lá, e a gente não foi votar.”

Participantes de evento eleitoral de Bernie Sanders esperam entrada de pré-candidato democrata ao palco de comício - Lalo de Almeida/Folhapress

A conversa foi interrompida por gritos que anunciavam a presença de Rashida Tlaib no ginásio. A deputada muçulmana eleita por Michigan entrou sorridente, de saia e batom vermelho. Ao lado de Alexandria Ocasio-Cortez, a nova estrela do Partido Democrata, Tlaib tem acompanhado diversos comícios do senador.

E, ali, estava em casa. “Somos contra a desigualdade e contra os bilionários. Não podemos esperar até que eles se importem com a gente. Nossas vidas existiam antes de Trump e vão existir depois de Trump. Merecemos alguém que escreva as malditas leis, merecemos Bernie Sanders.”

Eram 17h56 quando o senador apareceu sob aplausos. Acenando timidamente aos presentes, andou do fundo do palco até o microfone ao lado da mulher, Jane, em quem deu um selinho antes de se dirigir diretamente aos eleitores.

Em pé, fez um discurso enérgico de 50 minutos, no qual defendeu suas bandeiras, respondeu aos opositores e fez piadas sobre Trump, a quem chamou de “idiota”.

Bernie Sanders discursa em escola em Detroit - Lalo de Almeida/Folhapress

“Vou dizer o que é radical e extremo: dar bilhões de dólares em subsídios para 1% [dos americanos] enquanto tem gente sem casa para morar. Justiça não é uma ideia radical, justiça é que nos tratem como humanos.”

Williams ouviu com atenção seu candidato dizer que o sistema americano hoje é falido e racista e que, se eleito, não nomeará juízes –de tribunais federais e de apelação– que sejam contrários ao aborto.

Por fim, Sanders vociferou sobre suas propostas mais populares –e também mais controversas: educação e saúde grátis para todos. “Como você vai pagar por isso? É o que eles me perguntam. Deixa eu explicar: o sistema de impostos hoje é corrupto, é assim [reformando o sistema] que vou pagar […] Não é só Trump e o establishment republicano [que fazem críticas], é o establishment democrata também.”

Sanders acena a apoiadores em evento eleitoral em Michigan - Lalo de Almeida/Folhapress

A fotógrafa Jennifer Kacher, 55, aplaudia. Levou os dois filhos adolescentes ao comício e gostou do que viu.

Ela afirma ter medo de que a nomeação democrata fique com um perfil considerado mais moderado, como o de Biden ou até mesmo o de Warren, e que os EUA acabem repetindo o que, na sua avaliação, foi o governo de Barack Obama.

“Obama só tinha o discurso bonito, mas era um mentiroso. Assim que tomou o poder, virou um conservador. Colocou os banqueiros dentro da Casa Branca e governou para eles.”

Escolher entre a moderação e a guinada definitiva à esquerda é o atual desafio do Partido Democrata para enfrentar Trump para o ano que vem. Biden e Pete Buttigieg, prefeito de uma pequena cidade do estado de Indiana, são os centristas mais bem colocados nas pesquisas pela vaga para enfrentar Trump.

Simpatizantes de Bernie Sanders aguardam início de evento em escola em Detroit - Lalo de Almeida/Folhapress

O primeiro tem apoio de parte do eleitorado negro devido ao período em que era vice de Obama, enquanto o segundo luta pela simpatia desse nicho, ainda sem sucesso.

A estratégia de ambos é se apresentar como capazes de conquistar os democratas e também os chamados eleitores independentes, que estão decepcionados com o governo, mas dificilmente aceitariam candidatos com bandeiras mais à esquerda.

Nessa arena estão Sanders e Warren, que motivam os eleitores mais progressistas.

Ao lado da família de Kacher, fomos os últimos a deixar o ginásio da Cass Technical High School. Era início da noite, e o movimento tinha diminuído do lado de fora, exceto pelos integrantes da banda de Jack White, que pareciam esperar por um carro logo na esquina.

Até pensamos em oferecer uma carona, mas desistimos da ideia. Pegaríamos a estrada muito cedo no outro dia e não podíamos nos distrair.

Jovens brincam no palco de escola público que recebeu comício do pré-candidato à Presidência Bernie Sanders - Lalo de Almeida/Folhapress

Texto: Marina Dias / Fotografia: Lalo de Almeida / Infografia: Catarina Pignato / Edição de fotografia: Fernando Sciarra, Lalo de Almeida e Daigo Oliva / Edição e revisão de texto: Daigo Oliva e Beatriz Peres / Tratamento de imagem: Edson Salles / Desenvolvimento: Pilker / Design: Fernando Sciarra e Irapuan Campos / Coordenação de arte: Kleber Bonjoan e Thea Severino / Edição e coordenação: Daigo Oliva