Na parede, o emblema da folha de coca sobre o machado e o facão –eco do símbolo comunista da foice e do martelo– é o cartão de visitas da federação dos sindicatos de cocaleiros de Chimoré, no Chapare. No piso de cimento, milhares de folhas secam antes do ensaque. Até ali, o processo está dentro da lei, mas o destino final dificilmente será o consumo tradicional. A probabilidade maior é que vire pó.
O cenário sugere descontrole, mas os números revelam o contrário. Há mais de uma década, quando um cocaleiro do Chapare chegou à presidência, a Bolívia adota uma estratégia nunca admitida oficialmente, mas que resultou na mais bem-sucedida experiência mundial de controle da produção de cocaína: a legalização do plantio destinado ao narcotráfico.
A política foi comandada até há pouco por Evo Morales, que renunciou em outubro de 2019. Primeiro como líder dos produtores, ele enfrentou erradicações forçadas financiadas pelos EUA e tentativas frustradas de cultivos alternativos. Já presidente (2006-2019), expulsou a DEA (agência antidrogas norte-americana), delegou o controle dos cultivos aos sindicatos e elevou de 3.200 hectares para 7.700 hectares a área de coca permitida no Chapare, no centro do país.
Assim desmantelou-se a tutela norte-americana, baseada na erradicação agressiva dos plantios da Erythroxylum coca, cultivada nos Andes desde pelo menos 2.000 a.C. Foram mais de duas décadas de programas pouco eficientes de substituição de cultivos e de punições ao narcotráfico, estratégia que predomina nos outros dois países produtores do mundo, Colômbia e Peru.
Do tripé, a Bolívia de Evo manteve a legislação com penas duras, sem legalização de consumo nem da maconha. Mas o discurso oficial passou a ser “coca sim, cocaína não”, com ênfase no uso tradicional presente em vários países sul-americanos, inclusive no Brasil –no noroeste amazônico, a folha é chamada de epadu.
É fato que, além do crescimento populacional, a mastigação tradicional tem ganhado adeptos graças a novidades para melhorar o gosto amargo. A mais popular é a estévia, adoçante natural. Café e chocolate são outras opções.
Mas o consumo tradicional está longe de absorver a produção. Números do próprio governo Evo indicam que mais de 90% da coca do Chapare não passa pelos dois mercados legais da folha, em Cochabamba e na capital, La Paz.
Esse desvio é de fácil constatação nas ruas, inclusive no Chapare, onde a coca vendida para a mastigação tradicional costuma ser trazida dos Yungas, região perto de La Paz onde a sagrada planta andina é cultivada há séculos.
A folha de coca é um estimulante de potência média com alto poder nutritivo, fonte de calorias, proteínas, cálcio, ferro, vitamina A e outros nutrientes. Desde antes da invasão europeia faz parte da dieta de povos andinos e amazônicos.
Já a cocaína, extraída da folha, foi isolada pela primeira vez em 1860, na Alemanha. Por décadas, foi usada legalmente na medicina e de forma recreativa, até passar a ser proibida em vários países, na primeira metade do século 20.
A Bolívia é o principal fornecedor de cocaína do Brasil. Estudo de 2012 feito pela Polícia Federal revelou que 54,3% da cocaína que ingressa no país tem origem no Chapare ou nos Yungas. Em segundo lugar, aparece o Peru (38%).
O Brasil é o segundo maior consumidor mundial de cloridrato de cocaína (pó), depois dos Estados Unidos, e provavelmente o maior consumidor de derivados de cocaína (como o crack), segundo relatório do Departamento de Estado dos EUA.
Importante ponto de embarque para a Europa, o Brasil é o único país fronteiriço às três nações produtoras.
A reportagem procurou a PF em Brasília sobre a entrada da cocaína boliviana, mas não obteve resposta.
Diferentemente dos Yungas, o plantio intensivo da coca é recente no Chapare. O cultivo explodiu a partir do anos 1980 por causa da demanda e da mão-de-obra disponível após a demissão e a migração em massa de mineiros do Altiplano, a maioria do povo quéchua. Atualmente, as federações representam cerca de 50 mil famílias.
A legalização da coca no Chapare começou sob o governo Carlos Mesa, em 2004, após acordo com Morales. Desde então, uma família pode plantar no máximo um “cato”, correspondente a 1.600 m², ou duas quadras de futsal.
O excedente está sujeito à “racionalização”. O controle de quem tem direito a um cato e de quem excedeu o limite é dos sindicatos e das federações. Cabe ao governo combater o cultivo em áreas não autorizadas, como parques nacionais e regiões fora do Chapare e dos Yungas.
Não faltaram críticas ao que se fazia no Chapare, principalmente dos EUA. Opositores, como o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga, previam que a coca financiaria um novo narcoestado, como ocorrera no início da década de 1980.
Mas não foi o que ocorreu. Em 2008, quando Evo expulsou a DEA, a Bolívia tinha 25.400 hectares de coca. Onze anos depois, o país registrava superfície praticamente idêntica, 25.500 hectares.
No mesmo período, a Colômbia, que adota uma linha dura e recebe ajuda média de US$ 400 milhões (mais de R$ 2,1 bilhões) por ano dos EUA, viu a área plantada saltar 90%, alcançando 154 mil hectares. É, de longe, o maior produtor de cocaína, seguida de Peru e Bolívia. Os números são da UNODC (Escritório da ONU contra Drogas e Crime).
Outra comparação favorável é o nível de violência. Na Bolívia, a taxa de homicídios é de 6 por 100 mil habitantes, uma das mais baixas da América Latina. Na Colômbia, a taxa chega a 25 por 100 mil habitantes, uma das mais altas da região. Já o Peru ocupa posição intermediária.
“Não há cartéis [na Bolívia], como o de Cali ou de Sinaloa. Existem nexos com algumas organizações internacionais para transportar a droga, mas é uma delinquência boliviana, não tão agressiva como em outros países. E há um controle da polícia, das forças especiais”, diz o ex-diretor geral da Força Especial de Luta contra o Narcotráfico, general Luis Caballero, em La Paz, onde hoje é advogado.
Em relatório do Departamento de Estado americano, a Bolívia e a Venezuela aparecem como os únicos países que “comprovadamente falharam” em cumprir obrigações internacionais de combate ao narcotráfico. Ao justificar a classificação, que gera sanções à Bolívia, o documento menciona o aumento da área legal de 12 mil hectares para 22 mil hectares, em 2017.
A ampliação não tem respaldo técnico. Em 2013, levantamento financiado pela União Europeia concluiu que 14.700 hectares são suficientes para o consumo tradicional.
“Claro que se trata de uma legalização ‘de facto’", afirma o economista Roberto Laserna, que estuda a coca há mais de duas décadas. “Sabendo o destino dessa coca, foi permitido que ela seja produzida e comercializada. A ideia do governo era reprimir o narcotraficante e liberar o cocaleiro, mas obviamente há uma conexão direta entre ambos.
Defensor da regularização da coca e da cocaína, o pesquisador do Ceres (Centro de Estudos da Realidade Econômica e Social), de Cochabamba, ressalva que o controle deveria ser incumbência do Estado. No Chapare, afirma, o resultado foi uma “republiqueta” controlada pelos sindicatos, em que camponeses têm pouco poder de decisão enquanto o narcotráfico cresce.
“A solução ao problema da coca e da cocaína passa por alguma forma de legalização e regularização. E isso começa pelo controle da coca mediante permissões a produtores individuais. Isso é impossível de fazer agora pelo poder dos sindicatos, pela ausência do Estado e pela penetração que tem o narcotráfico nessa zona.”
Com a experiência de quase 30 anos combatendo o tráfico em Cochabamba, o coronel da Polícia Nacional Rolando Raya afirma que, a partir do governo Evo Morales, a produção “se autodisciplinou”, enquanto o cato fez com que o dinheiro fosse compartilhado de forma homogênea.
“Eles pensaram: ‘O que vai acontecer se produzirmos mais? Haverá intervenção. Então faremos uma política bem-sucedida. É legal ter o meu cato’. Ninguém cresceu mais do que tinha de crescer. É um narcotráfico disciplinado”, afirmou, em entrevista na sede do seu comando.
Ex-integrante da FELCN, Raya afirma que, por outro lado, há maior penetração e pulverização do tráfico, que passou de grandes chefes para clãs familiares. “As fábricas [de cocaína] estão em toda a Bolívia”, diz o coronel, que vê um crescente perda de controle territorial. “Se entramos, há morte. Nem o governo Morales conseguia entrar.”
Órfão aos 12 anos, Edgar Quispe migrou de Potosí ao Chapare nos anos 1980 para trabalhar nos cultivos de coca. Ele disse que, até o governo Gonzalo Sánchez de Lozada (2002-2003), o governo agia com violência para erradicar a coca. Já os cultivos alternativos, afirma, não funcionavam.
“Não havia mercado. A única forma de sobreviver no trópico de Cochabamba era a coca”, conta Quispe durante encontro de mulheres cocaleiras em Chimoré, em um ginásio de esportes cercado de barro e apinhado de vendedores ambulantes de comida. Apesar do nome do evento, só homens discursaram no dia em que a reportagem lá esteve, antes da pandemia do coronavírus.
No passado, Quispe teve seu plantio erradicado à força. Sem alternativa, em 1992 migrou para a Argentina, onde ficou até 2001. Como resultado da repressão, explica Quispe, os cocaleiros começaram a formar o partido Movimento ao Socialismo, que passou a controlar as prefeituras do Chapare e, na eleição de 2005, levaria Evo ao poder. Com o ex-cocaleiro no poder, a dinâmica mudou. “Se há coca excedente, isso tem de ser anunciado, e a pessoa tem de permitir a entrada em seu sítio.”
Hoje com 49 anos, ele cultiva coca legalmente. Com o dinheiro poupado na Argentina, comprou 25 hectares. A sua principal atividade é a criação de gado –tem 20 cabeças.
Assim como outros cocaleiros, Quispe passou a viver em Chimoré, a 10 km de seu cato, cidade de comércio informal, casas simples e ruas de pavimentação mal conservada.
A renda da coca é razoável. Na federação, o saco da folha (23 kg) é comercializado por 1.200 bolivianos (R$ 730). Cada cato produz, em média, três sacos a cada três meses.
A área dos plantios, antes acessível apenas após longas caminhadas, hoje está conectada por estradas de terra. Na região visitada pela Folha, o cocal ficava a cerca de 5 minutos a pé de uma via. Os cocaleiros trabalham ali durante o dia e à noite voltam à cidade.
Para complementar a renda, os camponeses também trabalham para outros camponeses. Todo o plantio da coca é manual –o machado e o facão são usados para abrir a roça na floresta. Uma diária sai por 120 bolivianos (R$ 73).
Ecoando o discurso de Evo, ninguém admite que a coca do Chapare vai principalmente para o narcotráfico. “Comercializamos nos nossos centros de armazenagem, despachamos à comercialização em nível departamental, em Cochabamba, e depois para o país. A coca é distribuída para o pijcheo [mastigação]”, afirma Leonardo Loza, um dos principais dirigentes do Chapare e filiado ao MAS.
A reportagem também visitou a região dos Yungas. Embora fique apenas a algumas dezenas de quilômetros de La Paz, a viagem é demorada devido às estradas precárias esculpidas nas serras que fazem a transição dos Andes para a Amazônia.
Assim como no Chapare, não há sinais de riqueza ou de desigualdade. As casas, construídas sobre encostas íngremes, são simples, e os carros, velhos -a maioria circula sem placas, contrabandeados do Chile.
Porém, ao contrário do Chapare, os principais líderes cocaleiros dos Yungas deixaram de apoiar Evo. Sempre latentes, as divergências se escancaram após a lei de 2017, que ampliou a área dos cultivos. A medida, afirmam os líderes, favoreceu o Chapare e legalizou produção que vai ao narcotráfico.
Em meio ao rompimento com Evo, vários dirigentes acabaram presos, incluindo seu principal líder, Franklin Gutiérrez. Na recente crise política, ele apoiou os protestos que provocaram a queda do ex-presidente e depois se aproximou do governo interino. O país é governado pela direitista Jeanine Áñez. Por causa da pandemia, a nova eleição presidencial foi adiada de maio para setembro, depois para outubro.
Entre os cocaleiros yunguenhos, no entanto, o ex-presidente guarda popularidade. É o caso de Elton Morán, 30. Morador do povoado de Huancané, ele aprendeu o ofício do pai e do avô.
“A coca é a atividade que mais nos dá sustento”, diz o agricultor no meio do seu cocal. Ele começou a ajudar o pai com 12 anos e hoje divide a tarefa com a mulher, com quem tem dois filhos.
“Evo Morales entrou quando eu estava no colégio. Meus pais se sentiam muito orgulhosos de que um camponês chegasse ao governo”, diz Morán, que aponta a substituição das paredes das casas do barro para o tijolo como uma das mudanças favoráveis do seu governo. “Muitos consideram que a sua entrada foi muito boa, e outros o rechaçam. Pessoalmente, vejo que foi bom. Daqui a cinco anos, já vamos saber quão bom foi Evo e também os que tanto o julgavam.”